"Quando minha prima e eu descemos do t�xi j� era quase noite. Ficamos im�veis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no ch�o e apertei o bra�o da prima.
- � sinistro.
Ela me impeliu na dire��o da porta. T�nhamos outra escolha?"
(Trecho de "As formigas", conto de "Semin�rio dos ratos", de 1977)
A honra de uma amizade
“� uma amizade dedicada, s� me deu alegrias essa amizade, e muita honra. Foi uma amizade que me deu muita honra porque foi rec�proca e de grande lealdade, ambas am�vamos a literatura, um amor t�o bonito por essa arte extraordin�ria que se reveste de grande humanismo. Acho que Lygia Fagundes Telles, al�m da grande escritora que ela �, porque a obra fica, foi um ser exemplar, digna, leal ao Brasil, uma grande cidad�. E era uma pessoa que tinha um esp�rito c�vico, tinha no��o do que � uma p�tria, uma na��o. Ela ingressou, com todas as gl�rias e pompas, no pante�o da p�tria. Um pa�s t�o carente quanto o Brasil de grandes feitos e vidas exemplares que deixam lastro nas novas gera��es… Lygia � capaz de deixar esse patrim�nio, essas pegadas hist�ricas.
Os contos de Lygia s�o primorosos. O conto � muito dif�cil; para atingir a culmin�ncia de qualquer obra, tem que ser um escrito de exce��es. Al�m de dominar a l�ngua, tem que ter uma capacidade extraordin�ria de ver a realidade de forma singular. A boa literatura combina a vis�o do mundo, a vis�o da realidade e uma linguagem adequada, original, imageticamente original, com extremo bom gosto liter�rio. E Lygia tinha filigranas estil�sticas, combinava certa transpar�ncia do real com o concreto brutal da realidade. O texto dela podia ser fino e cruel ao mesmo tempo. Quando criamos o primeiro manifesto da sociedade civil contra a ditadura e censura, o Manifesto dos 1000, precis�vamos entregar o documento em Bras�lia, ao ent�o terr�vel (ministro da Justi�a) Armando Falc�o. Ela aceitou ir comigo, H�lio Silva e Jefferson de Andrade. Ela foi corajosa, porque n�o sab�amos como ser�amos recebidos. Fomos com muita coragem e irmandade. O conv�vio dela na Academia (Brasileira de Letras) foi fant�stico. Ela e Jorge Amado foram as pessoas que me estimularam a me candidatar. Devo meu ingresso na Academia inicialmente aos dois. S� posso me despedir dela emocionada, pensando o quanto n�s brasileiros devemos agradecer a ela todo o patrim�nio que nos deixou com a obra e a personalidade que foi.”
N�lida Pi�on, autora de “A rep�blica dos sonhos”
A marca da eleg�ncia
“Penso que a obra de Lygia � fundamentalmente marcada pela eleg�ncia. Sem deixar de tratar de temas complexos, como o abandono, a solid�o e o feminismo, ela consegue manter, ao longo de seus contos e romances, uma sutileza na linguagem, pouca adjetiva��o, concis�o e quase nenhum transbordamento. Isso se demonstra tamb�m na precis�o com que ela sabia escrever contos, um g�nero que a caracterizou sobremaneira. Suas narrativas curtas s�o redondas como a bolha de sab�o, de que ela fala num de seus contos mais conhecidos. Penso que ela � uma esp�cie de contraparte de Clarice Lispector, de quem foi amiga, porque aquilo que Clarice explora com a verticalidade do subjetivo e do misterioso, Lygia tamb�m aborda, mas com mais objetividade e clareza. � como se as duas partes fossem necess�rias para uma compreens�o da alma humana e, principalmente, da alma feminina.”
Noemi Jaffe, autora de “Lili: novela de um luto”
Nenhuma palavra sobra
“Eu penso em Lygia e vejo o sorriso, por vezes a gargalhada. A liberdade que s� quem se sabe uma grande escritora pode ter. Me lembro do espanto ao descobrir ‘Antes do Baile Verde’, a aula de escrita que esse conto �: nenhuma palavra sobra, nenhum ponto fora do lugar. Ali, e em tudo o que Lygia escreveu, as constru��es s�o cuidadosamente pensadas, o mist�rio na medida certa, o lapidar de todas as frases, para se conseguir o efeito exato que ela sempre conseguiu: o impacto de uma hist�ria contada com perfei��o. Lygia ensinou isso. � genial, � necess�ria, � absoluta. E nem assim precisou subir num pedestal, a aura inating�vel daqueles escritores que sabem que escreveram o que vamos ler para o resto das nossas vidas. Celebremos essa vida com leveza, ainda que a sua obra n�o tenha sido nada disso. Todo texto na sua medida, sem concess�es ao leitor, sem atalhos banais, e, ao que parece, sem sofrimento. Com a maestria e a ousadia de uma mulher que sempre soube onde ia.”
Marcela Dant�s, autora de “Nem sinal de asas”
A f�ria da delicadeza
“Me leia enquanto estou quente. Esse � o pedido que Lygia Fagundes Telles fez aos leitores em 1977, no fim de uma entrevista concedida � sua amiga Clarice Lispector, que morreria mais tarde nesse mesmo ano. Al�m do erotismo latente nesse chamado, h� a ideia de valorizar quem escreve em vida – e nisso, acredito, Lygia teve absoluto sucesso. Lida e celebrada em vida como poucas escritoras, a heran�a que ela deixa pra n�s que escrevemos � imensa, incalcul�vel. O projeto est�tico de Lygia Fagundes Telles tem um trunfo muito seu: ela organiza a linguagem at� atingir um impressionante caos exato. Literatura � a ordem desordenada, e Lygia domina como ningu�m o equil�brio preciso entre tens�es: ordem & desordem, dever & prazer, encontro & desencontro. As personagens lygianas andam nessas cordas bambas com eleg�ncia, conscientes tanto do medo de altura quanto da gra�a em cair. Declaradamente feminista e socialista, ela nunca teve medo de se posicionar politicamente, sempre tocando em problemas sociais em suas obras, mesmo correndo o risco da censura durante a ditadura militar. Quando falava do seu of�cio, lembrava sempre do pai jogador, que, apesar de perder continuamente, dizia: amanh� a gente ganha. Jogadora implac�vel na f�ria de sua delicadeza, Lygia Fagundes Telles se foi, mas o legado que ela deixa � a sua derradeira vit�ria. � o jogo, � o jogo.”
Bruna Kalil Othero, autora de “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas”
A luz que n�o se apaga
“Pessoalmente, para minha sensibilidade leitora, � uma escritora do meu cora��o e minha mente. Amo e admiro sem restri��es e com entusiasmo — e continuo falando dela no presente, pois � eterna. Discret�ssima nestes tempos midi�ticos; o fato de estar longe dos holofotes n�o a diminui. Sua luz pr�pria n�o se apaga, est� cada vez mais forte.”
Ana Maria Machado, autora de “Bisa Bia Bisa Bel”
A pot�ncia m�xima da linguagem
“Na literatura, dar t�tulos tamb�m � uma arte, como nos mostra Lygia Fagundes Telles. Repare como s�o imag�ticos e sugestivos alguns de seus t�tulos: ‘A estrutura da bolha de sab�o’. ‘Antes do baile verde’. ‘Semin�rio dos ratos’. ‘Meia-noite em ponto em Xangai’. ‘Crach� nos dentes’. ‘Durante aquele estranho ch�’. ‘A noite escura e mais eu’. Isso aponta uma escritora que n�o desperdi�ava nada, sempre incans�vel na tarefa de tirar da linguagem e da forma a sua pot�ncia m�xima. O narrador de um de seus contos, ‘Verde lagarto amarelo’, diz em certo momento: ‘Asim queria escrever, indo ao �mago do �mago at� atingir a semente resguardada l� no fundo como um feto’. Nem sempre a opini�o de um narrador reflete a opini�o do autor, mas aqui creio ser Lygia quem falava. Quis ir at� a alma. E como conseguiu.”
Giovana Madalosso, autora de “Su�te T�quio”
Aprender a amar
“Sinto-me privilegiada porque, no ano em que ganhei o Jabuti, a homenageada era a Lygia e eu pude v�-la ao vivo, cumpriment�-la, v�-la falando. Fico muito feliz de ter podido escrever ao mesmo tempo que ela, de ter sido influenciada pelos contos especialmente dela, por aprender a amar a literatura com as coisas que ela escrevia. Me lembro do meu espanto ao ver a Lygia sentada duas fileiras � frente de onde a gente estava. Foi bem emocionante.”
Nat�lia Borges Polesso, autora de “A extin��o das abelhas”
Corajosa e consistente
“Lygia Fagundes Telles foi uma escritora magn�fica, que se dedicou intensamente � literatura desde muito cedo e construiu uma obra corajosa e consistente. Conheci seus livros ainda na adolesc�ncia, quando passei a cultivar uma enorme admira��o por ela e tudo o que escrevia. Foi ao ler “Ciranda de pedra” que escrevi minha primeira resenha para um jornal estudantil que criamos em Patos de Minas, no final dos anos 1970. O romance “As meninas” tamb�m teve uma presen�a incisiva em minha forma��o, sobretudo por seu vi�s revolucion�rio. � impressionante sua habilidade em sondar os meandros ps�quicos de suas personagens, com uma destreza �mpar no manejo da narrativa. Ela foi tamb�m uma ex�mia contista. Permanecer� viva em meu imagin�rio e no de quem teve o privil�gio de ler sua obra.”
Maria Esther Maciel, autora de “Pequena enciclop�dia de seres comuns”
Exata e sens�vel
“Lygia Fagundes Telles foi uma das minhas primeiras paix�es liter�rias, � de uma �poca em que mulheres na literatura eram minoria e que n�o havia muitos modelos para quem estava come�ando e queria escrever. Uma das coisas que aprendi com a literatura dela foi que sempre me fascinou essa capacidade que ela tinha, de forma muito aparentemente simples, de falar de coisas muito complexas e criar climas, ambientes, como se houvesse uma esp�cie de cen�rio ou de m�sica ambiente, ou de uma pe�a teatral onde aqueles personagens caminhavam e era sempre muito v�vido, muito imag�tico. Ela foi para mim, uma luz que guiava um caminho muito dif�cil e com poucas vozes de mulheres que pudessem abrir caminhos, guiar, servir como modelo e ajudar a gente que estava come�ando a pensar ‘para onde quero ir?’, ‘quais s�o as possibilidades?’. Al�m disso, acho que ela falava muito de tem�ticas relacionadas a esse olhar para esse mundo das mulheres de uma forma t�o exata e sens�vel e ao mesmo tempo sem nunca explicar mais do que o necess�rio. Nunca nada era explicado mais do que o necess�rio. Acho que foi uma das coisas mais bonitas que a gente teve e tem na nossa literatura.”
Carola Saavedra, autora de “Com armas sonolentas”
Entrela�amento entre o pol�tico e o pessoal
“Li ‘As meninas’, de Lygia Fagundes Telles, aos 18 anos, e reli muitas vezes depois, como se aquelas personagens continuassem dialogando comigo e de vez em quando eu precisasse encontr�-las novamente. Tempo depois, entendi, quando j� escrevia os meus primeiros contos, que era o entrela�amento entre o pessoal e o pol�tico na obra dela que me fascinava tanto, o comprometimento com o seu tempo vivo nas subjetividades dos personagens. Lygia nos dizia de uma forma muito corajosa, inteligente e sutil que n�o podemos fugir do nosso tempo, que o que ele nos traz � nosso, e o que fazemos com isso somos n�s, nos define. Eu sou leitora da Clarice e da Lygia desde adolescente, dois far�is para qualquer jovem escritora brasileira. Saber que foram amigas me dava uma felicidade imensa, como companheiras na mesma luta de escrever literatura, as nossas quest�es, as nossas hist�rias, num meio liter�rio dominado pelo masculino em todos os sentidos, conte�do, forma e defini��o de c�none. Elas ousaram muito, e Lygia fez isso sempre sorrindo, apesar de Clarice aconselhar o contr�rio. Mas Lygia n�o abriu m�o da coragem nem do riso. Clarice infelizmente partiu muito cedo e saber que a Lygia permanecia entre n�s era uma lembran�a constante dessa coragem e alegria.”
Claudia Lage, autora de “O corpo intermin�vel”
Machismo resistiu por 80 anos na ABL
Lygia Fagundes Telles, que morreu no domingo passado, foi a terceira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (eleita em 1985 e empossada na cadeira 16, em 1987). Mas, de 1897, quando a academia foi fundada por Machado de Assis e contempor�neos ilustres, a 1977, foram oito d�cadas de absoluto machismo, que acabou se curvando ao talento feminino quando a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), finalmente, assumiu uma cadeira. Mesmo assim, at� hoje, 125 anos depois, s�o apenas nove mulheres na academia, incluindo tamb�m Dinah Silveira de Queiroz (1981), N�lida Pi�on (1990 – hoje com 84 anos), Z�lia Gattai (2002), Ana Maria Machado (2003 – hoje com 80 anos), Cleonice Berardinelli (2010 – hoje com 105 anos), Roziska Darcy de Oliveira (2013 – hoje com 78 anos) e Fernanda Montenegro (2022 – com 92 anos). No ano do centen�rio, N�lida Pi�on se tornou presidente da academia.
Em “Tantos anos”, seu livro de mem�rias, Rachel de Queiroz conta como foi alvo de machismo logo no in�cio da carreira, em 1930, quando lan�ou seu primeiro livro, “O quinze”, aos 19 anos. E se vingou, de maneira inusitada, de um escritor e poeta “brilhante” (ela n�o revela o nome), que tinha publicado artigo desmerecendo o livro e o atribuindo ao seu pai, Daniel de Queiroz. “Naquela hora da tarde fazia um sol terr�vel. Abri a sombrinha e ia sozinha pela cal�ada deserta, a fim de pegar a condu��o l� perto do passeio p�blico, e eis que avistei, vindo do lado da Santa Casa, o tal cara. (…) Quando �amos nos cruzando, na cal�ada estreita, quase colidimos. Ele parou, assim de repente. (…) Sei que fechei a sombrinha, segurei o cara pela gola do palet� e bati nele nos ombros, na cabe�a, at� quebrar a sombrinha. Depois o larguei, joguei fora a sombrinha quebrada e nunca dissemos a ningu�m nenhuma palavra sobre isso”, conta ela no livro.
Na mesma �poca, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), que em 1938 lan�aria “Vidas secas”, surpreso com a qualidade de “O quinze”, romance de realismo social que trata do drama de retirantes da grande seca de 1915, disse: “Uma garota assim fazer romance. Deve ser pseud�nimo de sujeito barbado”. Anos depois, ele se redimiu ao reconhecer o pr�prio preconceito e admitir o talento da ent�o jovem Rachel de Queiroz.
A primeira candidatura feminina rejeitada na ABL foi a da pi auiense Am�lia Bevil�qua (1860-1946), em 1930, que, do ponto de vista da academia, n�o tinha valor liter�rio, porque apenas os homens recebiam essa qualifica��o. Em 1950, a escritora paulista Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982) fez a primeira tentativa de ingressar na ABL, mas tamb�m foi barrada. A regra era clara: apenas o g�nero masculino era permitido. Foi s� em 1981 que Dinah acabou aceita na porta aberta por Rachel de Queiroz quatro anos antes.
PRECONCEITO
Mas o caso mais absurdo envolvendo escritoras na ABL foi o da carioca J�lia Lopes de Almeida (1862-1930). Hoje, ela � desconhecida do grande p�blico brasileiro, mas suas obras, de conte�do feminista, eram “fen�meno de sucesso editorial”, no fim do s�culo 19 e no in�cio do 20, nas palavras do jornalista e bi�grafo Ruy Castro. No seu livro “Metr�pole � beira-mar – O Rio moderno dos anos 20”, ele fala da import�ncia da literatura e do papel feminista de J�lia. Autora de cerca de 40 obras, entre romances, contos e pe�as de teatro – com destaque para “A fal�ncia” –, e at� livros sobre viagens, ela estava entre os 40 fundadores da ABL, mas o machismo impediu que ocupasse uma cadeira na entidade rec�m-criada.
“A explica��o era que, a exemplo da Academia Francesa, em que se inspirava, a Brasileira n�o podia admitir mulheres. � macaquice os acad�micos acrescentaram o rid�culo: em lugar de J�lia, deram a vaga ao seu menor�ssimo marido, o parnasiano Filinto – cujos livros de poesia era J�lia quem organizava e ajudava a publicar. (…) Mas nunca se ouvira queixa de J�lia a respeito. Mesmo porque ela teria outra bandeira com que se ocupar: a luta das mulheres”, conta Ruy Castro.
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