
A chama de Leonard Cohen se apagou em 7 de novembro de 2016, mas a velha alma ardente permanece viva em sua m�sica, sua poesia e no extraordin�rio poder agregador de suas palavras. A cada vez que seus versos emanam de alguma fonte e se misturam ao ar, � como se aquela voz profunda e sedutora voltasse a soar. � o que acontece agora, quando a Companhia das Letras lan�a seu livro derradeiro, cujo t�tulo � justamente “A chama”, com tradu��o de Caetano W. Galindo.
“Meu pai era, acima de tudo, um poeta”, observa o filho de Leonard, Adam Cohen, tamb�m compo- sitor, um dos organizadores do livro e quem lhe deu o t�tulo “The flame”. “Escrever era sua raz�o de existir. Era o fogo que ele mantinha aceso”, afirma no pref�cio. Nascido em 21 de setembro de 1934 em Montreal, no Canad�, de influente fam�lia judaica, Leonard Cohen encontrou a poesia ainda na adolesc�ncia. Ao lan�ar seu primeiro �lbum de can��es, em 1967, j� havia publicado quatro livros de poesia e dois romances.
“As letras das m�sicas de Leonard sempre tiveram rela��o mais pr�pria com a p�gina do que, por exemplo, as de Bob Dylan”, diz Caetano W. Galindo, tamb�m tradutor de Dylan. Ele explica que seu projeto de tradu��o reflete a preocupa��o com a forma dos poemas, a tentativa de responder � variabilidade de rimas, metros e desvios m�tricos.
“Eu sempre trabalhei / E nunca disse que era arte / Financiava a depress�o / Vendo Jesus e lendo Marx / Minha fogueira fracassou / Mas essa chama ainda � forte / Relate ao jovem messias / que o cora��o se parte”, brada Leonard logo no primeiro poema do volume, “O cora��o se parte”.
A poesia e a m�sica de Leonard Cohen estabelecem imediato v�nculo entre ele e o leitor/ouvinte, talvez por serem constru�das sobre sua pr�pria intimidade. Tudo que Leonard fez tem forte tom autobiogr�fico. Pode levar o ouvinte �s l�grimas, ao cantar seus males de amor embalados por crises de depress�o, ou faz�-lo sorrir ao ironizar consigo pr�prio (“Adoro conversar com Leonard / Ele � um atleta e um bom pastor / � um pregui�oso desgra�ado / que mora num terno” – “Indo pra casa”, do �lbum “Old ideas”, de 2012).
Leonard n�o finalizou o livro, mas deixou instru��es quanto � sua organiza��o. Aos 82 anos, ele sofria o enfraquecimento do corpo e muitas dores, provocadas por uma leucemia, aliviadas com a pr�tica da medita��o. Deixou 63 poemas que considerava finalizados, trechos de cadernos de anota��es, incluindo frases, estrofes, versos e o que chamou de “retalhos”, e sugeriu que fossem inclu�dos desenhos e autorretratos. Assim foi composto o livro, acrescido de letras das can��es de seus �ltimos �lbuns e do discurso que fez na Espanha, ao receber o mais importante pr�mio liter�rio daquele pa�s, o Pr�ncipe das Ast�rias.
Os leitores de “A chama”, especialmente aqueles que t�m familiaridade com a obra de Leonard Cohen, v�o perceber que este livro, como tudo o que fez, vem de suas entranhas. Organizado e editado pelos professores e amigos Robert Faggen e Alexandra Pleshoyano, al�m do filho Adam, � um encontro final com um profeta de si mesmo. Assim como outros encontros finais, como os �lbuns “You want it darker”, lan�ado poucos meses antes da morte de Cohen, e “Thanks for the dance”, que ele tamb�m deixou encaminhado, mas n�o viu pronto.
“Thanks for the dance” (“Obrigado pela dan�a”) � um poema que ele fez para a cantora havaiana Anjani Thomas, sua parceira e uma das muitas mu- lheres de sua vida. O poema aparece em duas vers�es no livro, diferentes de uma terceira que comp�e o disco p�stumo de Leonard. Neste, embora as can��es tenham arranjos instrumentais sofisticados, Leonard praticamente n�o canta, apenas declama. S�o suas �ltimas grava��es, e o �lbum foi lan�ado em 2019, um ano depois da primeira edi��o de “A chama”, pu- blicada simultaneamente no Canad�, Estados Unidos e Reino Unido. Dos nove poemas/can��es do CD, apenas tr�s foram inclu�dos no livro.
As letras das can��es de “Blue alert” (“Alerta azul”), de Anjani Thomas, produzido por Leonard e lan�ado em 2006, est�o na segunda parte de “A chama”, assim como as de “Old ideas” (“Ideias antigas”) de 2012, “Popular problems” (“Problemas po- pulares”), de 2014, e “You want it darker” (“Voc� quer mais escuro”), de 2016, estes do pr�prio Leonard.
“Como a n�voa n�o marca / O morro verde-escuro / Assim meu corpo n�o marca / O seu, nem no futuro / (...) / Como as noites, perdurando / Sem astros, sem luar / Assim n�s, perdurando / Quando um se apagar” – (“A n�voa”). Sempre com lirismo, Leonard Cohen tratou nos textos de “A chama” de uma diversidade de temas, frequentes em suas preocupa��es existenciais. Em tom quase sempre melanc�lico e �s vezes ir�nico, h� refer�ncias ao juda�smo e ao holocausto, � religiosidade, � senilidade, � morte. Quest�es sociais e hist�ricas, perso- nagens b�blicos, homenagens a amigos pr�ximos s�o temas presentes. O mosteiro de Mount Baldy, onde Leonard viveu cinco anos como monge bu- dista, e seu l�der, o monge japon�s Roshi, que morreu em 2014, aos 107 anos, tamb�m s�o lembrados.
Leonard Cohen escrevia aos jorros, como se deduz dos “Cadernos de notas”, e sua cria��o po�tica precedia a cria��o musical. � interessante ler suas reflex�es sobre poesia, expostas no discurso que leu ao receber o Pr�mio Pr�ncipe das Ast�rias. “Sempre tive ideias amb�guas a respeito de pr�mios de poesia. A poesia prov�m de um lugar que ningu�m controla e ningu�m conquista. Portanto, me sinto um pouco como um charlat�o ao aceitar um pr�mio por uma atividade que n�o controlo. Em outras palavras, se eu soubesse de onde v�m as boas can��es, visitaria mais vezes esse lugar.”
Leonard esperava a chegada da morte e se preparou para ela, usando a energia criativa para manter-se vivo enquanto necess�rio para a conclus�o do livro. Desde que lan�ou “You want it dar- ker”, com o verso “Estou pronto, meu Senhor”, isso j� n�o se discutia. “Eu rezo por coragem / Que consiga / A morte vem chegando / Como amiga”, diz o poema “Eu rezo por coragem”. Se o tempo passou depressa e n�o permitiu que muitos poemas se tornassem m�sica, ao menos o livro “A chama” nos traz um pouco desse jorro que eternizou o artista Leonard Cohen. Embora sintamos falta de sua voz marcante, temos a� sua caligrafia, seus desenhos e autorretratos, sua personalidade exposta sem qualquer autocensura. � a presen�a poss�vel de uma vida feita de m�sica e poesia.
Poemas de Leonard Cohen, com tradu��o de Caetano W. Galindo
Banjo
Tem algo que olho
A que dou significado
Um banjo que boia
No mar infestado
Como chegou n�o sei
Talvez levado pela onda
Do ombro de algu�m
Ou de tumba hedionda
Vem me pegar, amor
Mesmo se eu me esconder
Pretende me ferir
Pretendo s� saber
Tem algo que olho
A que dou significado
Um banjo que boia
No mar infestado
Rouxinol
No mato ergui minha cabana
Pra ent�o te ouvir cantando
E era doce, era bacana,
E o amor s� come�ando
Adeus, adeus, meu rouxinol
H� anos vim te achar
O teu agora � s� bemol
A mata vem cercar
Um v�u j� tolda o arrebol
Quando me chamarias
Descansa em paz, meu rouxinol
No ramo de azevinho
Adeus, adeus, meu rouxinol
Vivi s� pra te achar
Embora ainda cantes sob o sol
N�o posso te escutar
A aparente turbul�ncia
Voc� foi a �ltima mulher jovem
que me olhou daquele jeito
E quando mesmo
algum momento entre 11/9 e o tsunami
Voc� olhou para o meu cinto
e a� eu olhei para o meu cinto
voc� tinha raz�o
nada mau
a� voltamos �s nossas vidas.
Eu n�o sei da sua
mas a minha � curiosamente tranquila
por tr�s da aparente turbul�ncia
dos lit�gios e da idade que avan�a
Metade de um mundo perfeito
Toda noite ela vinha me encontrar
Eu cozinhava e lhe servia ch�
Ela n�o tinha quarenta anos feitos
Ganhou dinheiro, morou com uns sujeitos
Deitados, nos entreg�vamos inteiros
Cobertos pelo branco mosquiteiro
E como havia c�mputo nenhum
Viv�amos mil anos em um
Que as velas queimem
Que a lua impacte a
Colina lisa
Cidade l�ctea
Transl�cida, leve, luminosa
Desvele a dupla nossa
Naquele solo sem defeitos
Onde o amor � liberto, direto,
Direito
Onde h� metade de um mundo perfeito
* Alexandre Marino � jornalista e poeta, autor dos livros “Arqueolhar” e “Ex�lia”

“A chama”
De Leonard Cohen
Tradu��o de Caetano W. Gallindo
Companhia das Letras
608 p�ginas
R$ 99,90