
Quanto tempo dura uma paix�o? Noventa minutos, mais os acr�scimos? E depois do apito final, o que sobra? Desilus�o. E muitas lembran�as, ainda que embaralhadas com o andamento, minuto a minuto, de um jogo de futebol: a �ltima partida do goleiro Yuri Cantagalo, protagonista de “A falta” (Tusquets), segundo romance do jornalista e cronista Xico S�.
Nascido no Crato (CE), em 1962, Xico iniciou a carreira profissional no Recife, onde assistiu a in�meros cl�ssicos entre os tr�s grandes clubes (Sport, Santa Cruz e N�utico) da cidade “onde cada ponte e cada ilha s�o postais da separa��o”. Sempre acompanhado por um radinho de pilha, ele resgatou as lembran�as de vozes marcantes das jornadas esportivas para emoldurar a hist�ria narrada em “A falta”. “A estrutura do livro foi influenciada pelos narradores do r�dio, estes grandes ficcionistas do futebol, com suas marca��es do tempo, com suas hip�rboles, aquele exagero que mata o ouvinte do cora��o”, conta o autor, conhecido tamb�m pelas participa��es em programas da GNT e SporTV, em entrevista ao Estado de Minas.
Em cap�tulos curtos, introduzidos pela cronometragem dos dois tempos de uma partida de futebol, Xico apresenta ao leitor Yuri Cantagalo, goleiro mergulhado em crise profissional e existencial. “Ao meu of�cio cabe sobretudo a espera, o luto estampado na camisa negra com o solit�rio e esquel�tico, o tuberculos�ssimo e mag�rrimo 1 �s costas. H� toda tristeza e solid�o nesse n�mero”, reflete o ocupador da posi��o “que atrai as tempestades”. Entre refer�ncias liter�rias, musicais e cinematogr�ficas, v�o sendo reveladas as desventuras amorosas, as frustra��es e as nuances da carreira de Cantagalo. O �ltimo cap�tulo, talvez o mais inspirado, ainda fornece um outro – e poderoso – significado � falta do t�tulo. Assim, Xico marca, no apagar dos refletores, um gola�o. E pelas m�os de um goleiro.
A seguir, a entrevista de Xico S� ao Pensar, com perguntas elaboradas a partir de trechos do segundo romance do escritor (o primeiro, “Big Jato”, foi lan�ado em 2012).
Como voc� trabalhou as suas mem�rias para a fic��o de “A falta”? Qual a diferen�a para as lembran�as que o levaram a “Big Jato”?
A solid�o do goleiro me chamou a aten��o desde que comecei a gostar de futebol, ainda na inf�ncia. Aquela criatura pisando uma terra desolada onde n�o nasce grama, vestida de preto, como estivesse de luto, sempre sujeito a uma trai��o da bola e da exist�ncia. Quando me tornei rep�rter de futebol, cobrindo jogos nos Aflitos, Ilha do Retiro e Arruda (est�dios do Recife), aprofundei esse olhar sobre os arqueiros. Foi essa mem�ria que me ajudou agora na escrita do romance. Em “Big Jato”, valeu o del�rio autobiogr�fico, a tentativa de reinventar a inf�ncia e a transi��o para a vida adulta, l� no Cariri, o que acabou gerando uma bagaceira freudiana dos infernos.
O que � mais fascinante no goleiro como personagem liter�rio?
Ant�nio Lobo Antunes, um escritor portugu�s que uso na ep�grafe do livro, trata o goleiro como um deprimido debaixo dos paus, um deprimido ao lado de sujeitos euf�ricos. O que enxergo de fascinante no guarda-metas, al�m da solid�o, � a ang�stia (aquela mesma cantada por Belchior na sua “Divina com�dia humana”) diante da obriga��o de n�o poder falhar. � uma cobran�a sem fim, uma vigil�ncia medonha, assustadora. N�o desejo essa sina a ningu�m, como diz Yuri Cantagalo, o meu personagem condenado ao gol e ao infort�nio.
Como surgiu a estrutura do livro, que reproduz o andamento de uma partida de futebol, minuto a minuto? O que surgiu primeiro? O personagem ou a estrutura?
A obsess�o antiga era entrar na cabe�a de um goleiro para saber o tamanho do seu desespero. Primeiro veio esse personagem, com rostos que variavam entre Barbosa, Manga, Yashin, Castilho... A estrutura � influ�ncia dos narradores do r�dio, estes grandes ficcionistas do futebol, com suas marca��es do tempo, com suas hip�rboles, aquele exagero que mata o ouvinte do cora��o – mesmo quando a bola passa longe da trave.
“Assim como a bola chega a um goleiro, uma pessoa entra na vida de outra.” Quais foram as “pessoas” (personagens, autores) que entraram na sua vida de leitor e nunca mais sa�ram?
Converso com o Lu�s da Silva, de Graciliano Ramos, no “Ang�stia”, quase todos os dias. J� fiz at� o seu roteiro, seus passos, em Macei�. Tomei umas boas lapadas de cana com essa figura inesquec�vel. Vejo tamb�m a Macab�a na esta��o Consola��o do metr� paulistano. De vez em quando, imagino o pai do menino Bandini cal�ando caixas de papel�o para esquentar os p�s de imigrante italiano naquele frio miser�vel da Am�rica – espero a primavera com eles. Jim Dodge com todo o universo de “Fup” � outro livro que n�o desgruda do couro do ju�zo. Sem se falar no estir�o de R�sia (“As mulheres de Tijucopapo”, de Marilene Felinto) de volta para sua terra. E j� emendo em “A balada do caf� triste”, onde ajoelho aos p�s de Miss Amelia, criatura de Carson McCullers.
O livro tem passagens que evocam lembran�as de transmiss�es de jornadas esportivas. Por que esses profissionais s�o t�o marcantes?
Coloquei l� o D�blio D�blio (apelido de Walter Wanderley) como narrador de r�dio e o Tir�sias Cavalcanti, o comentarista que enxerga al�m do jogo. S�o dois homens fict�cios do r�dio pernambucano, mas criados � semelhan�a de tantos profissionais do ramo. Aquele radinho de pilha, o radinho fanhoso das transmiss�es esportivas, � algo que marca nossas vidas, � a voz melanc�lica ou feliz dos domingos. Tem ainda uma rep�rter de campo que se chama Vera Dubeux, uma homenagem �s amigas Vera Ogando e Ana Dubeux (diretora de reda��o do Correio Braziliense), as duas primeiras mulheres que vi cobrindo bastidores de futebol no Recife.
O que o romance permite dizer que a cr�nica e a reportagem n�o alcan�am?
Na cr�nica, trato, com algum lirismo, sobre o drama e a agonia dos goleiros em alguns jogos. No romance, entro na cabe�a do Yuri Cantagalo (o personagem do livro) e relato seu desespero, sua ang�stia, suas maquina��es mentais, vivo o absurdo de ser o goleiro tamb�m – no mesmo sentido que o Flaubert dizia ser a Madame Bovary.
Quais as tabelinhas inesquec�veis entre a literatura e o futebol em nosso pa�s?
Come�o por Graciliano Ramos e Lima Barreto. Os dois, por raz�es diferentes, odiaram o futebol e escreveram textos antol�gicos sobre essa antipatia. Na fic��o, S�rgio Sant’Anna de “P�ginas sem gl�ria” e outros contos – dedico “A falta” a ele, � o mestre. A� temos tamb�m “O para�so � bem bacana”, de Andr� Sant’Anna, pra continuar na fam�lia; “O drible”, gol de placa absoluto de S�rgio Rodrigues; “A cobran�a”, romance matador de M�rio Rodrigues; “A sa�da do primeiro tempo”, de Renato Pompeu, � coisa de g�nio torcedor da Ponte Preta. Recentemente, um livra�o de Emmanuel Mirdad, “Oroboro Baob�”, com um goleiro no comando. Sim, Nelson Rodrigues � um cronista � prova de VAR.
Podemos considerar “A falta” tamb�m como uma hist�ria de paix�o e desilus�o?
Sem a menor d�vida. A Sevilhana deixa o goleiro em frangalhos. � uma dor de amor para estremecer a terra. S� lhe resta assobiar aquele Nelson Cavaquinho de rachar o cora��o. S�o muitas faltas em uma s�: a aus�ncia da mulher, a paternidade desconhecida e um Brasil que Yuri Cantagalo n�o reconhece mais como o seu pa�s, o seu lugar.
TRECHO
“Ela nunca me prometeu amor eterno, nem sequer falou sobre perman�ncia de nada, e eu bem sabia do perigo. N�o direi que vivia o mesmo risco de levar um gol aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo porque a esta altura da vida odeio as met�foras do jogo. Prefiro falar o que tem de tr�gico da forma mais direta poss�vel. Sabia que Ela ia desaparecer, e, durasse o que durasse, a agonia seria a mesma. Uma ou mil e uma noites. Foi embora e me deixou na vastid�o deste pa�s que me parece mais estrangeiro do que qualquer prov�ncia de ex�lio.”
“A falta”
• Xico S�
• Tusquets
• 158 p�ginas
• R$ 47,90