
Stefania Chiarelli*
Especial para o EM
O Nobel de Literatura para Annie Ernaux gera repercuss�o, aumentar� vendas, p�e o nome da escritora ainda mais em evid�ncia. � merecido. Sua literatura � fascinante. A escritora, nascida em 1940 em Lillebonne, na regi�o francesa da Normandia, desde os anos 1970 constr�i uma obra que entrela�a aspectos da intimidade e quest�es sociais. Fora da escala da grandiloqu�ncia, sua literatura apresenta o oposto: Ernaux celebra o pequeno, p�e a lupa no detalhe, cultiva a capacidade de pensar o que parece desprez�vel ou comum. Uma lista, algumas fotos, um gesto banal s�o pontos de partida para reflex�es nunca �bvias, embora ancoradas no prosaico e no cotidiano.
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A escritora cresceu em uma fam�lia de oper�rios. Fez os estudos em Rouen e Bordeaux, cidade em que se tornou professora de literatura durante tr�s d�cadas. De origem modesta, galgou muitos degraus na escala social. Em “O lugar”, lan�ado em 1983, na Fran�a, se concentra na morte do pai, ocorrida muitos anos antes, e lembra como foi determinante o analfabetismo do av� paterno, elemento definidor do estrato social que ocupavam e dado estruturante de sua literatura.
A partir desse livro se afasta da fic��o mais convencional e principia a narrar a pr�pria vida, abandonando o g�nero romance e se instalando em uma fronteira que propositalmente confunde o biogr�fico e o ficcional. � da pr�pria autora a defini��o de que faz uma autossociobiografia, esp�cie de reconstitui��o cr�tica do passado. Como em “O acontecimento”, de 2000, em que retoma o epis�dio do aborto feito aos 23 anos, no momento em que na Fran�a pr�-maio de 1968 o procedimento ainda n�o era legal, penalizando com pris�o as mulheres que decidissem interromper a gesta��o.
Como em outros de seus livros, a for�a desse relato � evidente no mundo de hoje, em oportuna e necess�ria discuss�o sobre o direito das mulheres ao aborto, ou pela contundente reflex�o que faz a respeito da barreira erguida entre os membros de uma fam�lia a que n�o foi dada a oportunidade de estudar. � um sentimento de vergonha o que experimenta em rela��o aos pais a partir do momento em que se escolariza. Eles se dedicam ao pequeno com�rcio; ela ser� professora e escritora. Como lidar com o abismo criado entre eles? “A vergonha” (1997), lan�ado no Brasil este ano, aborda o percurso do fazer-se escritora Para uma filha da classe oper�ria, afastar-se do mundo provinciano dos pais e construir-se como intelectual s� � poss�vel por meio do estudo. Da� a centralidade da escola como espa�o de forma��o do sujeito e possibilidade de ascens�o social: nesse lugar, a menina envergonhada e pautada por preceitos conservadores ver� abrir-se um mundo desconhecido e cheio de possibilidades.
A casa estar� associada ao dialeto, linguagem que expressa a tradi��o e a vis�o de mundo dos mais velhos. Falar o “pato�” – variante marcada pela oralidade e distinta da l�ngua oficial – � compartilhar uma mesma experi�ncia. Falar a l�ngua francesa equivale a se esfor�ar para pertencer a um universo oposto ao familiar, rompendo com seu universo original. O dialeto, nesse sentido, � a “l�ngua presa ao corpo”, que n�o obriga a pensar nas palavras: uma dimens�o lingu�stica que revela a permanente tens�o entre a l�ngua francesa e o l�xico utilizado em fam�lia. Transitar entre esses dois mundos evidencia a condi��o de tr�nsfuga de classe, conforme as pr�prias palavras da autora.
Reflex�o sobre a linguagem
A partir desse v�o instalado entre o �ntimo e o coletivo, a grande literatura acontece e Ernaux reserva importante espa�o para refletir sobre a linguagem. Trata-se menos de um dizer “eu” e mergulharr nas idiossincrasias, e mais um pensar conjunto, que inclui modos de partilhar a linguagem. Porque a l�ngua inventa o mundo com palavras, como sustenta em “Os anos”, publicado em 2008 na Fran�a. A obra, que recebeu o pr�mio Marguerite Duras, recupera sua biografia e a hist�ria coletiva do pa�s. Traz um in�cio brilhante, ao anunciar que todas as imagens v�o desaparecer, desnudando um repert�rio pessoal em que cabem desde um antigo comercial de televis�o a frases terr�veis que dever�amos esquecer. De modo paralelo, a autora faz um invent�rio das palavras que ir�o sumir, frases que ser�o esquecidas, que organizaram o mundo conforme o conhecemos. Eis que surge um grande tema que atravessa seu escritos, a mem�ria: “Assim como o desejo sexual, a mem�ria nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imagin�rias, sonho e hist�ria”.
A narrativa de “Os anos” n�o se d� em primeira pessoa, mas a partir de um “n�s” que estabelece um modo coletivo de narrar. Embora a perspectiva sempre acolha o pessoal, opera-se um descolamento do biogr�fico – como quando, ao descrever uma foto de inf�ncia, a narradora fala de si como uma outra, utilizando o “ela”: “A camisa dela est� apertada, a saia com suspens�rio levantada na frente por causa de uma barriga proeminente, talvez sinal de raquitismo (...)”. Falar de si � falar de uma outra pessoa. Eu � uma outra, parafraseando a conhecida senten�a de Rimbaud.
Fotografias antigas surgem a cada tanto nesse relato, acolhendo aspectos de si. Mas n�o nos enganemos, descrever uma foto n�o equivale a alcan�ar o que est� dentro dela. Nisso reside uma das tantas belezas da prosa de Ernaux, a capacidade de mobilizar nosso olhar para o insuspeitado, como o repert�rio de gestos, h�bitos, modos de falar, de rir, de segurar um objeto. Ernaux pensa a linguagem e pensa o corpo, seja o corpo feminino, como em “O acontecimento”, seja o corpo da fam�lia, em seus humores e desaven�as, como em “A vergonha”. O resultado � sempre um texto que suscita enorme prazer na leitura, seja porque nos identificamos com as vidas pequenas que a autora escolhe narrar, seja pela perspectiva ampla em que se inserem todos esses fatos. � profundamente humana a prosa de Ernaux, porque n�o se exime de constatar nossa mis�ria, nossas culpas e vergonhas. Ao trazer essa dimens�o ao plano liter�rio, n�o abdica de pensar a coletividade. Entre a mulher que escreve os textos e a menina presente nas fotos h� uma disjun��o. Elas s�o a mesma pessoa, mas tamb�m n�o s�o. Entre elas, instaurou-se a palavra, essa, sim, uma conquista que n�o conhece ponto de retorno.
* Professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em estudos de literatura pela PUC-Rio; Stefania Chiarelli � autora do livro “Partilhar a l�ngua: Leituras do contempor�neo” (7Letras).
Entrevista / Mar�lia Garcia
(Tradutora das edi��es da F�sforo, as mais recentes da obra de Annie Ernaux no Brasil)
O que mais chama a aten��o na prosa de Annie Ernaux?
A maneira como ela parte de uma linguagem extremamente objetiva, seca e sint�tica – que traz muitas vezes uma arqueologia de elementos materiais e concretos, de express�es da �poca, por exemplo, listas de objetos e lembran�as, acontecimentos hist�ricos etc – para criar um mundo com m�xima pot�ncia de emo��o, espessura de experi�ncia e transbordamento afetivo. Por outro lado, como ela costura o pessoal e individual com o coletivo e pol�tico, mostrando que os dois lados s�o uma coisa s�.
Quais os maiores desafios para transpor a obra para o portugu�s?
A dificuldade mais imediata e reconhec�vel � de contexto: por exemplo, o uso de express�es e termos do dialeto normando, ou as muitas refer�ncias hist�ricas que fora de contexto podem ser dif�ceis de identificar e traduzir. Mas acho que existe tamb�m um tom, uma forma de narrar que � muito objetiva, que � dif�cil tamb�m de traduzir porque se trata de um tom justamente. Por fim, lembro de uma dificuldade na tradu��o de “Os anos” ligada ao uso do impessoal no livro (� uma esp�cie de autobiografia impessoal e coletiva, sem o uso do “eu”). Ela usa o pronome “on”, sem tradu��o muito �bvia em portugu�s, e foi um exerc�cio para chegar em modos e formas indefinidas e impessoais dentro do livro.
Quais os pontos em comum e as principais diferen�as que anota na tradu��o da obra de Ernaux em rela��o aos demais livros que voc� traduziu?
Traduzi outros livros que fazem parte de uma tradi��o em l�ngua francesa que trabalha com mat�ria autobiogr�fica, como Violette Leduc, Mathieu Lindon, Scholastique Mukasonga. Acho que existe uma diferen�a de tom na linguagem: Ernaux tem uma linguagem bem mais seca e objetiva e tamb�m no tipo de projeto, t�o bem ancorado nessa arqueologia de objetos, acontecimentos, falas e imagens.
Depoimentos
(� Bertha Maakaroun)
“Annie Ernaux chegou ao Brasil em um momento de muitas publica��es autorreferenciadas, muitas disserta��es e teses sobre autofic��o. Esse � um tema caro aos franceses, pesquisado por Philipe Lejeune, entre outros, mas que Annie Ernaux elevou a outro patamar. No seu projeto est�tico e liter�rio, ela ensina que falar de si nunca deve ser um ato isolado, mas um ato pol�tico. Ser algu�m � sempre estar inserido em um contexto hist�rico, pol�tico e social e isso � o ponto mais importante. As dores de uma vida s�o sempre ecos de outras dores, de outras vidas. ‘O acontecimento’, por exemplo, ecoa um dos temas mais dolorosos na vida de uma mulher que passa por ele: o aborto. Em breve, Annie Ernaux estar� na nossa Flip e todas essas not�cias, o acerto da F�sforo, a excelente tradu��o feita pela poeta Mar�lia Garcia e a presen�a dela em um dos nosso eventos liter�rios mais importantes s�o boas not�cias em um momento de ang�stia. A literatura ainda existe e nos salva. Muito bom lembrarmos disso”
Socorro Acioli, jornalista e escritora, doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense e autora de “Cabe�a de santo”
“Ainda que o Pr�mio Nobel seja euroc�ntrico, e quase sempre privilegie autores das l�nguas europeias e mesmo autores que vivem na pr�pria Europa, acho que a premia��o de Annie Ernaux � bem-vinda. Ela, de fato, tem uma obra impactante, profunda, pol�tica, e uma literatura que dialoga com a antropologia, com a sociologia e com a hist�ria. Tem um forte vi�s de classe. Mostra para todos n�s que a literatura pode e deve ser um instrumento pol�tico, uma arma pol�tica”
Itamar Vieira Junior, escritor, autor de “Torto arado”
“Annie Ernaux � uma das autoras contempor�neas mais importantes e vai ficar por muitos anos em nossa leitura. Eu conhecia a obra dela antes mesmo de ser publicada aqui no Brasil. Adorei. Agora, � medida que a F�sforo vem publicando, estou relendo em portugu�s. � uma autora excepcional. Tem um aspecto na obra dela ainda pouco explorado no Brasil, que � o fato de ela pertencer a uma gera��o e a uma classe social, que est� sendo chamada de transclasse, porque � uma mulher que vem de uma origem humilde e, atrav�s dos estudos e depois com o sucesso como escritora, fez essa transposi��o de classe. Hoje habita a intelectualidade francesa e agora mundial. Gosto muito desse conceito, me identifico pessoalmente. Ela soube fazer lindamente, da literatura, o lugar para essas pessoas que pela educa��o e estudos transformam a sua pr�pria vida e sofrem com uma certa falta do sentimento de pertencimento. Muito feliz com o pr�mio dela”
Simone Paulino, da Editora N�s