Gustavo Werneck
Um quarteto muito especial est� eternizado na frente da Biblioteca P�blica Estadual de Minas Gerais, na Pra�a da Liberdade, em Belo Horizonte. Mais do que homenagem a ilustres figuras, as est�tuas em bronze convidam � leitura, abrem portas ao conhecimento e apontam os guardados da alma mineira.
Est�o l�, uns de p�, outros sentados, os escritores Fernando Sabino (1923-2004), H�lio Pellegrino (1924-1988), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Otto Lara Resende (1922-1992), autoproclamados “os quatro cavaleiros de um �ntimo apocalipse”. Todos de uma gera��o talentosa da literatura brasileira, que, com a mudan�a para o Rio de Janeiro (RJ), ent�o capital federal, nas d�cadas de 1940 e 50, ganharam notoriedade e imprimiram ideias em livros, artigos de jornais, mat�rias de revistas, roteiros de cinema e outras formas de express�o.
Neste ano, dois dos quatro escritores mineiros – Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende – estariam completando, se estivessem vivos, o centen�rio de nascimento. Vale lembrar que, se n�o se encontram presentes fisicamente neste mundo, fizeram por merecer a imortalidade pela obra, pelas frases antol�gicas e pelo amor �s palavras. � mem�ria deles, portanto, todas as honras em 2022.
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Um obsessivo “despiorador”
“O genial frasista de S�o Jo�o del-Rei” – assim era chamado o mineiro Otto Lara Resende pelo carioca S�rgio Porto (1923-1968), famoso com o pseud�nimo Stanislaw Ponte Preta. Realmente, entrou para a hist�ria uma frase atribu�da a Otto – “O mineiro s� � solid�rio no c�ncer”, cuja autoria ele “jamais confirmou”, segundo Humberto Werneck em seu livro “O desatino da rapaziada”. Esse autor conta mais: “Para essa folcloriza��o, que o incomodava, ningu�m contribuiu mais que Nelson Rodrigues (1912-1980), ao transform�-lo em personagem obsessiva de suas cr�nicas e em t�tulo alternativo da sua pe�a ‘Bonitinha mas ordin�ria’”.
Pulando das palavras impressas para o viva voz, o escritor e jornalista belo-horizontino Humberto Werneck, residente em S�o Paulo (SP), real�a a import�ncia de Otto Lara Resende, com quem conviveu e aprendeu muito. “Ainda � pouco reconhecido como artista. Era talentoso, levava a escrita �s �ltimas, sempre buscando a exatid�o. Guardo os originais do meu livro ‘O desatino da rapaziada’ com as anota��es feitas por ele, que leu em primeira m�o”, conta Humberto.
Entre os ensinamentos do mestre, est� um m�todo que pode guiar aqueles que t�m a palavra como of�cio. “Escrevia e depois modificava tudo, dizendo que precisava ‘despiorar’ o texto. Era um trabalho que Pedro Nava (1903-1984, escritor mineiro) chamava de ‘cata-piolho’. Para mim, foi uma boa escola: cortar palavras, tirar o que n�o precisa, deixar o essencial.”
Um exemplo dessa forma de “despiorar” o texto ocorreu quando Otto escreveu “O bra�o direito”, publicado pela primeira vez em 1963. “Meses antes de morrer, em 1992, ele disse, com bom humor, que j� n�o sabia, ap�s tantas ‘despioradas’, se era ‘O bra�o direito’ ou ‘O bra�o esquerdo’, recorda-se Humberto, certo de que Lara Resende era “um perfeccionista, um supercraque”.
Humberto Werneck guarda in�meras hist�rias sobre Otto Lara Resende, o terceiro dos “quatro cavaleiros” a se transferir para o Rio de Janeiro, mais exatamente em 14 de janeiro de 1946: Fernando Sabino foi em abril de 1944; Paulo Mendes Campos, em agosto de 1945; e H�lio Pellegrino, tamb�m psicanalista, em 1952. “No fim da d�cada de 1950, Otto morou na Europa e trabalhou como adido cultural, em dois per�odos, na embaixada do Brasil na B�lgica. “Em Bruxelas, escreveu muito, foi uma fase produtiva. Mas tempos depois, j� no Brasil, quando algu�m lhe perguntava como era o servi�o, respondia assim: ‘Adido e mal pago’”.
H� outras hist�rias que se tornaram inesquec�veis, como esta de Rubem Braga (1913-1990, escritor capixaba radicado no Rio): “Otto � um passarinho...� de quem pegar primeiro”. E, de volta ao come�o, est� Nelson Rodrigues em cena, com sua voz caracter�stica. “Ligava constantemente para Otto, que atendia o telefone e respondia ao pedido de falar com ele, dessa maneira: ‘Eu n�o estou!’.”
Sobre o autor de “Bonitinha mas ordin�ria”, Otto escreveu em 22/3/1992: “Nelson Rodrigues foi desde criancinha homem de jornal. A partir de certa altura, quando come�ou a publicar suas mem�rias e confiss�es, Nelson repetiu sem parar certos lances de sua biografia. Era de fato a flor de obsess�o, como ele pr�prio se definia. O jornal, pode-se dizer, estava no seu ber�o. Ou no seu sangue, a partir do pai, M�rio Rodrigues. Quando conheci, era j� autor de ‘A mulher sem pecado’ e acabava de estourar com ‘Vestido de noiva’, em 1943. Virou uma celebridade nacional. Uma �nica pe�a de estrondoso sucesso, ainda que controvertida, apagou o nosso complexo de inferioridade dramat�rgico. Dizia-se que a literatura brasileira em todos os g�neros florescia exuberante de talento e criatividade. S� o teatro tinha ficado para tr�s”.
Na edi��o lan�ada em 1993, pela Companhia das Letras, a escritora Ana Miranda escreveu no pref�cio: “‘O bra�o direito’ foi publicado pela primeira vez em 1963. Desde ent�o, durante tr�s d�cadas, Otto Lara Resende reescreveu seu precioso romance. Chegou a terminar tr�s diferentes vers�es, entre v�rias outras inacabadas. � comovente o exame desse material. S�o milhares de p�ginas datilografadas, rabiscadas, com anota��es manuscritas de palavras a serem usadas no texto, ou um coment�rio a ser inclu�do; coisas que Otto Lara Resende leu em algum lugar ou vindas do rec�ndito de sua mem�ria”.
As mem�rias, ressaltou Ana Miranda, poderiam vir “de uma velha igreja mineira com altares de ouro, fantasmas de sua inf�ncia, seres que conheceu, hist�rias que ouviu contar, registros da maneira de falar de sua gente, o desenho de um crucifixo, um odor, um ru�do, um raio de luz, o mart�rio de um santo; tudo que pudesse enriquecer o romance era anotado. Pode-se dizer que ‘O bra�o direito’ � um livro de uma vida inteira”.
E mais escreveu Ana Miranda, em 3 de junho de 1993: “Havia diferentes vers�es da �ltima parte, 'O n� cego'. Uma delas era a que Otto Lara Resende havia dito ser o texto sobre o qual ele reescreveria o final do livro. Essa foi a vers�o escolhida para fechar o romance. Embora se tratasse de um texto considerado, pelo autor, ainda inacabado, poucas mudan�as se fizeram necess�rias para adequ�-lo ao corpo do livro. Assim foi conclu�da a edi��o de 'O bra�o direito', um romance �nico, perturbador, espl�ndido, em que Otto Lara Resende, ao mostrar uma parte profunda da sua mente, nos leva ao mundo obscuro e silencioso da mais misteriosa de todas as Minas Gerais”.
Um mineiro cosmopolita
Foi em meados da d�cada de 1950, numa livraria de Belo Horizonte, que os leitores quase “sa�ram no tapa” para comprar “A terra in�til”, tradu��o feita por Paulo Mendes Campos de “The waste land”, do poeta de l�ngua inglesa T. S. Eliot (1888-1965). Quem conta o epis�dio – e estava l� – � o romancista e cr�tico liter�rio Silviano Santiago, mineiro de Formiga (Centro-Oeste de Minas) e residente em S�o Paulo (SP). “Havia poucos volumes na loja, mas consegui garantir o meu, que tenho at� hoje”, conta o romancista, que teve ali seu primeiro grande contato com o trabalho de quem depois conheceu pessoalmente e considera grande cronista e tradutor.
Silviano Santiago j� acompanhava as cr�nicas de Paulo Mendes Campos publicadas na revista Manchete e admirava, paralelamente, suas tradu��es, para o portugu�s, de obras em ingl�s e espanhol. Mas um fato desandou a carreira brilhante do cronista mineiro. “Nos anos 1950, quando o neoconcretismo estava no auge, ele publicou, na hora errada, o livro de poemas ‘O domingo azul do mar’, de poemas l�ricos, que recebeu uma cr�tica c�ustica de M�rio Faustino (1930-1962) no suplemento liter�rio do Jornal do Brasil. Isso foi um baque para ele”, conta Silviano Santiago.
�guas passadas, pois, segundo o romancista e cr�tico liter�rio, Paulo Mendes Campos era um homem muito bem preparado, “mas prometeu um romance que nunca saiu. deixou algumas coisas no ar”, embora a lacuna tenha sido preenchida, na d�cada de 1980, com a publica��o de uma antologia com cr�nicas, poemas e tradu��es.
Quando se pergunta sobre a mineiridade em Paulo Mendes Campos, Silviano Santiago vai al�m do conceito. “Era um mineiro cosmopolita, morou na Inglaterra, era universal.” Em 1949, foi � Europa pela primeira vez, e, dois anos depois, casou-se com Joan Abercrombie, de origem inglesa. “Paulo fez parte de uma grande gera��o de escritores”, resume.
For�a do tempo
“Na carreira liter�ria, a gl�ria est� no come�o. O resto da vida � aprendizado intensivo para o anonimato, o olvido.” A frase � de Paulo Mendes Campos j� perto dos 60 anos. Mas o tempo � o senhor da hist�ria e mostra que, passadas d�cadas, ele continua atual. “� o cronista brasileiro menos datado”, diz o jornalista carioca Fl�vio Pinheiro, ex-diretor do Instituto Moreira Salles (IMS), destacando a perenidade do trabalho de Paulo Mendes Campos, mesmo sendo a cr�nica um recorte do cotidiano, um flagrante, em palavras, do momento. “Voc� l� as cr�nicas dele e parece que � hoje, basta trocar algumas palavras.”
No IMS, Fl�vio Pinheiro fez a coordenador editorial de “Di�rio da Tarde”, que abriga as edi��es imagin�rias de um jornal planejado por Paulo Mendes Campos – o fundador, diretor de reda��o e revisor. Mas antes desse trabalho, Pinheiro foi respons�vel por outra empreitada, dessa vez pela Editora Civiliza��o Brasileira: a cole��o em sete volumes com parte da obra do mineiro. S�o eles “O amor acaba”, contendo cr�nicas l�ricas e existenciais; “Brasil brasileiro”, sobre Minas e o Brasil; “Alhos e bugalhos”, com narrativas de humor; “Artigo indefinido”, sobre livros e cr�nicas liter�rias, “Gol � necess�rio”, cr�nicas esportivas e foco no seu time, o Botafogo; “Murais de Vin�cius e outros perfis”, sobre o poeta carioca Vin�cius de Moraes; e “Cisne de feltro”, cujo t�tulo � tirado de um poema do chileno Pablo Neruda (1904-1973), de quem Paulo Mendes Campos era grande admirador.
Ap�s citar um por um os t�tulos dos livros, Fl�vio Pinheiro enaltece o zelo que Paulo tinha pelas palavras, o uso precioso de cada uma na sua prosa po�tica, seu original�ssimo repert�rio vocabular. “Tinha erudi��o, conhecimento, preparo. Gostava de ler, era um leitor atento”, revela.
Em dezembro, a Companhia das Letras vai lan�ar um volume de poesia completa, organizado por Luciano Rosa e composto por “Balada de amor perfeito”, “Arquitetura”, “O domingo azul do mar” e “O testamento do Brasil”, reunidos previamente em “Poemas”. Estar�o tamb�m os publicados no volume “Trinca de copas”, e mais 30 poemas recolhidos nos arquivos do Instituto Moreira Salles, in�ditos em livro. Outra novidade estar� em uma pequena antologia bil�ngue com poemas traduzidos de T. S. Eliot, W. H. Auden e Ezra Pound.
Livro aberto
Um misto de curiosidade e mergulho no tempo guiam a leitura de “Di�rio da Tarde”. Ao longo das p�ginas do seu jornal imagin�rio, Paulo Mendes Campos criou algumas se��es, como Coriscos, Bar do Ponto, Grafite e Pipiripau.
Veja esta, leitor, denominada “Duplex”, em Pipiripau: “Minha duplicidade aqui est�: sei desatar muito bem, e culpar, o n� original, inelut�vel, de que resulta o embrulho dos meus malfeitos. E jamais me ocorre descobrir e apontar as causas, igualmente inelut�veis, dos meus acertos”.
J� em Bar do Ponto, registrou, de forma bem divertida, a “Prociss�o do desencontro”: “Em Minas, era visual a libidinagem. Donzelas e damas dos meus vinte anos eram shelleyanas... Mas n�o assumiam a negativa. Os olhos delas se amarravam ao mesmo tempo em que iam desatando os la�os er�ticos assim: ‘I can’t give you what men call love...porque papai n�o deixa’. Ou assim: ‘I can give you what men call love... mas meu marido me mata”.
E mais uma, de Grafite, “Revolu��o espiritual”: “Quase todos vivem em permanente rendi��o. Os melhores alternam per�odos longos com tumultos libert�rios. E s� os raros vivem em guerra permanente pela independ�ncia”.