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Estado de Minas PENSAR

Editora mineira Relic�rio lan�a poesia completa de Samuel Beckett

Mais famoso por suas pe�as de teatro, autor irland�s estreou profissionalmente na escrita com um poema


16/12/2022 04:00 - atualizado 16/12/2022 00:11

Samuel Beckett
Samuel Beckett: autor de "Esperando Godot" dividiu sua produ��o po�tica em duas fases: antes e depois da Segunda Grande Guerra (foto: arquivo)

Cl�udia Maria de Vasconcellos* 
Especial para o EM

O irland�s Samuel Beckett (1906 - 1989) aportou em solo nacional com o teatro. “Esperando Godot” foi montada pela primeira vez em 1955, em S�o Paulo, por Alfredo Mesquita, na Escola de Arte Dram�tica da USP. Nas d�cadas seguintes, montagens dessa pe�a sucederam-se regularmente e um interesse constante e crescente pelo autor fez com que aos poucos sua obra passasse a ser publicada. N�o apenas de seu teatro – rotulado inicialmente como teatro do absurdo –, mas tamb�m de seus romances e contos, apareceram tradu��es. As d�cadas de 1980 e 1990 testemunharam o interesse por sua prosa, e, a partir do s�culo 21, seus textos teatrais e em prosa t�m aparecido em novas tradu��es, beneficiadas pela primeira gera��o de especialistas no autor de “Esperando Godot” e “Dias felizes”. No entanto, Beckett n�o escreveu apenas pe�as, romances e contos, mas praticou modalidades menos can�nicas como teatro para r�dio, pantomimas, roteiros televisivo e cinematogr�fico, produziu ensaios sobre literatura e artes, e – o que � geralmente ignorado pelo p�blico –, um corpus vigoroso de poemas.

Pensar em um Beckett poeta pode parecer surpreendente a alguns. Deve-se lembrar, contudo, que o autor estreou profissionalmente com um poema – “Whoroscope” (“Horosc�puta”) – em 1930, e sabe-se que seu �ltimo texto, escrito quando adoentado em um asilo, foi tamb�m um poema. Aquilo que explica a pouca familiaridade do p�blico leitor com esta faceta da obra � talvez o modo como o pr�prio autor a tratou. Diferentemente do drama e da prosa, seus versos n�o contaram com um minucioso trabalho de reuni�o e organiza��o. Estes, depois de sua morte, apareceram como coisa dispersa, desafiando especialistas e editores a encontrarem nela uma unidade.

A rec�m-lan�ada “Poesia completa – Samuel Beckett”, organizada e traduzida pelos brav�ssimos Marcos Siscar e Gabriela Vescovi, e publicada pela Relic�rio, traz para o p�blico de l�ngua portuguesa a reuni�o mais bem-sucedida e recente de seus versos. Trata-se de publica��o baseada no volume “The collected poems of Samuel Beckett”, da Grove Press, lan�ado em 2012, sob os cuidados de dois scholars de peso nos estudos do autor irland�s: John Pilling e Sean Lawlor. A edi��o norte-americana, como explica Marcos Siscar na apresenta��o da “Poesia completa”, organizou os poemas em ordem cronol�gica, incluiu textos in�ditos e corrigiu erros encontrados em outras publica��es. A edi��o brasileira se beneficia desses feitos e poderia ser nomeada de edi��o tril�ngue, pois ao lado dos poemas em ingl�s e em franc�s escritos por Beckett – e, em muitos casos, por ele mesmo vertidos ou transcriados em um ou outro idioma –, t�m-se as vers�es em l�ngua portuguesa (acompanhadas, diga-se de passagem, de notas esclarecedoras).

� preciso destacar, contudo, a import�ncia desta publica��o, e n�o apenas para os interessados em poesia contempor�nea – pois Beckett, desde o princ�pio, anunciou um modo de entender esta arte que foi consolidado no s�culo 21 –, mas tamb�m nos interessados na vasta e variada obra do autor – uma vez que seus poemas iluminam suas outras pr�ticas liter�rias e vice-versa. 

Se, em linhas gerais, pode-se dividir a poesia beckettiana em duas fases, uma anterior � Segunda Grande Guerra e outra a ela posterior, pode-se refinar a classifica��o. Como nota Marcus Siscar, os poemas pr�-guerra misturam erudi��o com sarcasmo, criticam a vida burguesa e a religi�o, enaltecem a indol�ncia, e usam tonalidade er�tica. Ao final deste per�odo, Beckett passa a escrever em franc�s, o que ser� decisivo e distintivo de sua obra p�s-guerra, momento f�rtil que lan�a as bases para uma po�tica (em sentido largo) com dic��o pr�pria. Ap�s a guerra, portanto, a obra d� uma guinada estil�stica, e, no que tange � poesia, assume-a como jogo sonoro-r�tmico, fazendo amplo uso das repeti��es, como acontece emblematicamente em “Mirlitonnades” (Gaiteados), compostos na d�cada de 1980.

� fascinante acompanhar o progresso da obra beckettiana com a leitura dos poemas. Se escolhermos, por exemplo, o primeiro do livro, “The vulture” (“O abutre”, 1935), que abre o conjunto “Echo’s bones and other precipitates” (“Ossos de Eco e outros precipitados”), encontramo-nos diante de uma par�dia de Goethe, em que a rom�ntica ode “Harzreise im winter” � transformada por tons perturbadores, e a criatividade art�stica passa a ser representada como um abutre consumindo, no cr�nio do poeta, o que seria pura carni�a. Como comentou recentemente Marjorie Perloff, umas das maiores cr�ticas da poesia contempor�nea, Beckett redige seu “O abutre” na qualidade de um jovem profundamente erudito e profundamente infeliz, desafiando a cultura oficial (em “Infrathin, an experiment in micropoetics”, The University of Chicago Press, 2021). E, no entanto, esse poema, apesar do tra�o �cido e parod�stico, respeita as normas da versifica��o e da composi��o em estrofes, e, nota Perloff, vale-se do modo simbolista de poetas de gera��o antecedente. 


Substitui��o da sintaxe

Mas paisagem estil�stica e tom mudar�o, transformados talvez por uma inquieta��o est�tica, confessada por Beckett em 1937, em carta ao amigo alem�o Axel Kaum. Nesta famosa carta, fala ao amigo da necessidade de se libertar da l�ngua inglesa, que, como um v�u, tramado por estilo e gram�tica, impede-o de chegar �s coisas (ou ao Nada). Beckett clama por uma nova era em que a linguagem ser� “mais eficientemente empregada, quando mal-empregada”. Se aqui se anuncia a ado��o do franc�s como novo meio lingu�stico, esclarece-se tamb�m que o processo perfurador recusar�, no campo da poesia, o g�nero l�rico, com suas odes e elegias – enfim, com toda a tradi��o formal –, e recusar� tamb�m uma certa sintaxe, que ser� substitu�da por outra mais desafiadora. 

Os aspectos soantes, r�tmicos, repetitivos, mal ditos e mal empregados, compreendidos na divisa “tentar de novo, falhar de novo, falhar melhor”, afirmam-se ent�o com uma nova via. Em “Comment dire” (“Como dizer”), �ltimo poema do livro, l�-se: “folie -/ folie que de -/ que de -/ comment dire -/ folie que de ce -/ depuis -/...”. Longe da seara l�rica, Beckett se interessar� em reconfigurar a linguagem po�tica. � esse caminho que se divisa nesta “Poesia completa”. Melhor dizendo, a “Poesia completa” ilumina, em sentido muito amplo, a linguagem po�tica de Beckett, praticada nos textos curtos e sem classifica��o gen�rica, textos compostos a partir dos anos 1950 e interessados, como no poema acima citado, na loucura (folie) de dizer e na loucura de investigar como dizer (comment dire).

Esta “Poesia completa” � leitura obrigat�ria para os admiradores de Beckett, bem como para todos os interessados e/ou intrigados pela poesia contempor�nea.
Capa do livro %u201CPoesia completa%u201D
(foto: Relic�rio/divulga��o )

 “Poesia completa”
• Samuel Beckett
• Relic�rio-Edi��o bil�ngue
• 288 p�ginas
• R$ 82,90


“O abutre”
arrastando sua fome pelo c�u
de meu cr�nio concha de c�u e terra

precipitando-se sobre os propensos
que logo tomam suas vidas e andam

tra�do por tecido que talvez n�o sirva
at� que fome terra e c�u virem carni�a



“Ossos de Eco”
asilo em meu passo ao longo deste dia
seus surdos festins se a carne decai
largando ventos sem medo ou permiss�o
vai o corredor da morte entre tino e desatino
tomados por caprichos pelo que s�o


“Ascens�o”
atrav�s da fina divis�ria
no dia em que a filha 
a seu modo pr�diga
voltou para a fam�lia
eu ou�o a voz
que comenta comovida
a copa do mundo de futebol

sempre jovem demais

ao mesmo tempo da janela aberta
vindo pelos ares
o som abafado 
de fi�is em vagas

seu sangue jorrou abundante
em len��is ervilhas-de-cheiro em seu amante
com dedos abjetos ele lhe cerrou as p�lpebras
sobre os grandes olhos verdes espantados

agora sobrevoa leve
minha l�pide de ar


Novas edi��es dos primeiros romances

Al�m da “Poesia completa”, editada pela Relic�rio, as livrarias do Brasil recebem mais dois lan�amentos de Samuel Beckett (1906-1989), Pr�mio Nobel de Literatura em 1969. O romance de estreia, “Murphy”, escrito entre 1935 e 1936, ganha edi��o da Companhia das Letras, com tradu��o de F�bio de Souza Andrade, que tamb�m assina um dos posf�cios. “Salvo engano, Murphy � o primeiro desaparecido beckettiano”, aponta Nuno Ramos, autor do outro pref�cio: “� ao desaparecido que cabe o interesse, a espessura e a gra�a, e nisso Murphy rascunha Godot.” O outro lan�amento � “Watt”, o segundo romance do irland�s, escrito durante a Segunda Grande Guerra e publicado apenas em 1953. A tradu��o do livro que o autor, nascido em Dublin, considerava “um exerc�cio” � de F�bio de Souza Andrade, com posf�cios de Luciano Gatti e Ruby Cohn. Os dois foram concebidos antes dos grandes cl�ssicos de Beckett: “Esperando Godot” (1949), “Molloy” e “Malone morre” (ambos de 1951) e as pe�as “Fim de partida” (1957) e “Dias felizes” (1961). 


*Cl�udia Maria de Vasconcellos � professora doutora do Departamento de Teoria Liter�ria e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas da Universidade de S�o Paulo (USP), e autora de “Samuel Beckett e seus duplos: Espelhos, abismos e outras vertigens liter�rias” (Iluminuras, 2017)


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