Daniel Galera: 'Fizemos a transi��o para o tempo das crises planet�rias'
'Barba ensopada de sangue' completa 10 anos e ganha edi��o comemorativa. Em entrevista, escritor analisa a repercuss�o do livro e mudan�as ao longo desta d�cada
Daniel Galera: reler "Barba ensopada de sangue" reavivou desejo de criar longas narrativas
(foto: marco antonio filho )
Em julho do ano passado, em entrevista ao Pensar, perguntamos justamente sobre os 10 anos de “Barba ensopada de sangue”: o que significou esse romance na sua trajet�ria e se pretendia escrever novamente um livro com mais de 400 p�ginas. Na resposta, voc� afirmou ter orgulho do livro, mas n�o ter interesse em produzir um livro t�o longo. � luz dessa celebra��o de 10 anos, considerou rever esta posi��o e tentar de novo escrever um livro de 400 p�ginas? Ou segue sem disposi��o para narrativas t�o longas?
Sei que meu pr�ximo livro ser� um romance, mas sinceramente n�o consigo dizer qual � minha disposi��o em termos de forma e extens�o. Reler "Barba ensopada de sangue" este ano pode ter reavivado meu desejo de produzir uma narrativa muito longa. Mas a ideia acaba ditando a sua extens�o. Vou ter que escrever pra descobrir.
Considera que algumas quest�es levantadas em “Barba ensopada de sangue” apareceram tamb�m em seus romances subsequentes?
Seria mais f�cil discutir a partir de quest�es espec�ficas. Mas, de modo geral, penso que "Meia-noite e vinte" e "O deus das avencas" s�o romances bem diferentes de seu antecessor, tanto no estilo quanto nos temas. Neles, lidei mais diretamente com quest�es sociais e pol�ticas do presente. "Barba ensopada de sangue" mimetiza a realidade em alguma medida, mas depende muito mais de assuntos e de uma sensibilidade que poder�amos chamar de atemporal: � sobre a solid�o, a morte, a natureza, a propaga��o fractal de mitos e hist�rias. Ele gira em torno de certas premissas metaf�sicas, como o determinismo. Nos livros seguintes, considera��es desse tipo deixaram de ser centrais. Vejo mais diferen�as do que semelhan�as.
A primeira vez que tivemos contato com “Barba ensopada de sangue” foi na revista “Granta”, na edi��o que reuniu o que chamou de "os melhores jovens escritores brasileiros" e publicou o primeiro cap�tulo do livro, sob o t�tulo "Apneia". Do que se recorda da recep��o e da expectativa que a divulga��o do trecho trouxe para o lan�amento do livro?
A recep��o foi muito positiva, me surpreendeu e certamente gerou alguma dose de interesse pr�vio no romance que viria a ser publicado. Por muito tempo, tudo que eu tive de "Barba ensopada de sangue" era esse cap�tulo de abertura e pilhas de anota��es. Talvez eu o tenha escrito para demonstrar a mim mesmo que seria capaz de fazer o resto do livro.
O que a repercuss�o de “Barba ensopada de sangue” trouxe de positivo e negativo para sua vida e para a sua atividade liter�ria?
Acho que o positivo � um tanto �bvio: alguns pr�mios, algum dinheiro, edi��es estrangeiras. De negativo n�o trouxe nada. Exceto, talvez, a decep��o de quem o considera meu melhor trabalho e espera encontrar mais do mesmo nos meus livros subsequentes.
Em 2012, ano de lan�amento do livro, havia ainda um otimismo do mundo em rela��o ao Brasil, como se n�s estiv�ssemos finalmente encontrado um caminho rumo ao desenvolvimento. A pr�pria repercuss�o global de “Barba ensopada de sangue” reflete um pouco isso: o Brasil era "hot", estava na moda. Dez anos depois, qual lugar que o Brasil ocupa no imagin�rio mundial? E qual o espa�o que a literatura contempor�nea ocupa na produ��o cultural brasileira?
Nas presid�ncias petistas, houve investimento s�lido e inteligente em cultura. Desde a cria��o de bibliotecas e a distribui��o regional de recursos at� a promo��o da cultura brasileira no exterior. Na literatura, isso se expressou em bolsas de tradu��o e no apoio a delega��es de autores que viajaram a feiras onde o pa�s foi homenageado, como em Frankfurt e Paris. Meu romance se beneficiou desse vento favor�vel, assim como ocorreu com outros autores na �poca. O governo Bolsonaro se esfor�ou para desmontar essas conquistas e, n�o contente, transformou o pa�s numa piada de mau gosto. Em outros pa�ses, creio que a cultura brasileira � um dado que simplesmente se apagou, pois empalidece diante de quest�es como a devasta��o ecol�gica e as amea�as � democracia e aos direitos humanos. � de se esperar que a vit�ria de Lula reverta isso. Com sorte, a promo��o da nossa cultura guardar� uma esp�cie de "mem�ria muscular" da era pr�-Bolsonaro e novos e diferentes autores ter�o seu trabalho levado a leitores de outros pa�ses.
Dez anos depois, estamos em um lugar bem diferente. Como voc� mesmo escreve nas palavras finais da edi��o comemorativa: "Na �poca em que foi escrito e na qual se passa a narrativa, o iPhone era uma novidade, n�o t�nhamos passado pelos protestos de 2013, pelo impeachment, pela elei��o da extrema-direita. A inoc�ncia pol�tica do romance (...) � algo que me chama a aten��o hoje". Acredita que cruzamos alguma linha rumo a um pessimismo? Teme que isso deixe o livro datado, de algum modo?
Se cruzamos alguma linha de l� para c�, creio que foi a �ltima linha do local para o global. "Barba ensopada de sangue" foi escrito quando ainda era poss�vel abordar os impasses do dia a dia como problemas locais e individuais, ou no m�ximo concernentes a certos grupos bem delimitados de pessoas. Em 15 anos, fizemos a transi��o definitiva para o tempo das crises planet�rias. As crises do clima e do capitalismo global for�am a humanidade toda a reconhecer que pertencemos a um s� mundo interconectado, um mundo que est� em veloz processo de destrui��o devido � a��o humana. A aldeia como mundo autossuficiente deixa de fazer sentido, e ao mesmo tempo � pra essa aldeia que um vasto contingente da sociedade deseja retornar para enfrentar as crises do presente: o pertencimento a uma terra, a disputa com o diferente e o estrangeiro, os modelos patriarcais e religiosos de fam�lia et cetera. A Garopaba do romance � retratada como uma aldeia isolada, assim como a jornada do protagonista � essencialmente individual. N�o acho que isso deixe o livro datado, mas somente porque � poss�vel l�-lo criticamente da perspectiva do presente. � um livro transicional, sem d�vida, escrito e publicado num momento crucial de inflex�o. Assuntos que nele eram mais circunstanciais na �poca do lan�amento, como ecologia, masculinidade t�xica e polariza��o pol�tica, se tornam prismas dominantes para o leitor atual. Relendo o livro, acho que ele traz elementos de reflex�o que se atualizam. Minhas conversas recentes com leitores e an�lises cr�ticas feitas em torno desse relan�amento refor�am isso.
No pref�cio da edi��o comemorativa, Carol Bensimon fala que “Barba ensopada de sangue” funciona como uma esp�cie de pren�ncio da cat�strofe ambiental que hoje, 10 anos depois, ainda estamos come�ando a entender, mas j� estamos sofrendo as consequ�ncias. Quando escrevia o livro, j� vislumbrava o caminho rumo � cat�strofe ambiental que estamos tomando?
A discuss�o ambiental ocorre pelo menos desde os anos 1970, mas at� cerca de uma d�cada atr�s esse assunto ainda parecia um capricho de ambientalistas, ou um perigo distante que demoraria para nos alcan�ar, ou que alcan�aria somente outras pessoas, em outros lugares. Vivendo em Garopaba no fim da d�cada de 2000, percebi ao meu redor, de maneira muito mais direta e urgente, a velocidade e a gravidade da destrui��o ambiental. Ela estava nos morros tomados de mans�es constru�das ilegalmente, no esgoto que j� tornava as �guas polu�das demais para o banho (embora esses dados sejam desde sempre maquiados), no avan�o da cidade sobre a orla, na eros�o, na perda de biodiversidade, na pura e simples feiura da ocupa��o humana descontrolada. Se isso n�o me entristecesse tanto, talvez eu tivesse me estabelecido na cidade e ficado.
Recentemente, a prosopagnosia, condi��o do protagonista, ganhou as manchetes ap�s o ator Brad Pitt revelar que sofre do problema. Muita gente relacionou a not�cia ao protagonista de “Barba ensopada de sangue”? Essa not�cia chamou a sua aten��o?
No Twitter, algumas pessoas fizeram essa rela��o, eu mesmo postei alguma brincadeira. A prosopagnosia em sua forma atenuada n�o � um problema t�o raro, acomete quase 5% das pessoas. � at� hoje um diagn�stico dif�cil, mas que pode estar relacionado a transtornos de comportamento s�rios. � bom quando uma celebridade consegue trazer um pouco mais de luz a um problema de sa�de meio obscuro, do tipo que soa como inven��o para muita gente.
A adapta��o de “Barba ensopada de sangue” para o cinema teve suas filmagens conclu�das recentemente, com dire��o de Aly Muritiba, e Gabriel Leone no papel principal. Chegou a se envolver, de alguma forma, com a produ��o ou o roteiro? Visitou o set?
Li algumas vers�es recentes do roteiro, dei sugest�es, mantive um di�logo muito legal com o Aly e a Jessica, que tamb�m assina a adapta��o. Conversei com o Gabriel Leone por v�deo. Gostaria de ter visitado o set, mas n�o foi poss�vel devido a quest�es pessoais. Estou muito entusiasmado com o que compartilharam comigo das filmagens. Algumas imagens me emocionaram. Acho que h� uma afinidade est�tica e narrativa entre o filme e o romance. Estou louco para ver mais.
Como apresentaria hoje, 10 anos ap�s o lan�amento, “Barba ensopada de sangue” para um leitor que ainda n�o teve contato com sua obra?
� um romance sobre um homem sozinho encontrando seu lugar numa pequena cidade litor�nea, buscando reconhecer a si mesmo, a seus la�os afetivos e sangu�neos, ao mesmo tempo em que encontra alento na companhia de uma cachorra e no contato corporal com o mundo f�sico, com as ondas, os ventos, os outros corpos. � sobre reconhecer que tudo tem uma causa fora do nosso controle, mas que muitas vezes essa causa n�o pode ser sen�o um mist�rio, e que conciliar esses dois conhecimentos � nossa melhor esperan�a de minimizar o sofrimento.
“Barba ensopada de sangue (Edi��o especial de 10 anos)”
Daniel Galera
Companhia das Letras
456 p�ginas
R$ 99,90
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