
Os rel�gios da sala est�o parados, o tempo parece sepultado, as vidas ficaram enclausuradas entre as paredes do casar�o. Mas nas veias ainda corre o sangue da soberba – e h� sentimentos latejando, basta talvez despert�-los –, quase clamando por uma ressurrei��o dos corpos esquecidos nas entranhas do interior de Minas.
Denso como o ar que Rosalina respira ou permeado de sil�ncios como o universo de Quiquina, o livro “�pera dos mortos”, do mineiro Autran Dourado (1926-2012), vai fundo nos guardados das fam�lias, segredos da alma e abismos de um cora��o ressentido. M�goas, perdas, lembran�as, avers�o ao mundo al�m-muros, orgulho e o breu da solid�o andam pelos corredores, qual espectros.
“Meu pai dizia que ‘�pera dos mortos’ era para ser lido como uma trag�dia, e n�o como um romance, pois remete a ‘Ant�gona’ (trag�dia grega de S�focles). Uns veem o livro como uma met�fora da loucura, outros da morte”, diz o filho mais novo de Autran Dourado, o tamb�m escritor L�cio Autran.
Selecionado pela Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, a Ci�ncia e a Cultura (Unesco) para integrar a cole��o de obras representativas da literatura universal, o livro do mineiro de Patos de Minas, na Regi�o do Alto Parana�ba, ganhou nova edi��o pela HarperCollins. Esse � o segundo livro do autor relan�ado pela editora – o primeiro foi “Os sinos da agonia” – e completa 55 anos de publica��o em 2022, ano que marca uma d�cada da morte de Autran Dourado. Na sequ�ncia, vir�o “O risco do bordado” e “A barca dos homens”.
Espet�culo barroco
Na avalia��o do escritor e cr�tico liter�rio Silviano Santiago, mineiro de Formiga radicado no Rio de Janeiro (RJ), “�pera dos mortos” � uma das tr�s obras-primas de Autran Dourado, ao lado de “A barca dos homens” e “O risco do bordado”. Para ele, “�pera...” � um livro fascinante, seguindo uma linha oposta a um certo engrandecimento de Minas Gerais, “que herdamos do s�culo 18”. Portanto, fala da decad�ncia de uma fam�lia, “a exemplo do que fez outro escritor mineiro, L�cio Cardoso (1912-1968), em ‘Cr�nica da casa assassinada’”.
Considerando a hist�ria ambientada em Minas um “espet�culo oper�stico barroco”, Santiago v� a fam�lia Hon�rio Cota como a �ltima grande express�o do patriarcado mineiro. Nas p�ginas, est� retratado um “tempo morto, parado, paralisado pela perda do apogeu do poder” e uma “severidade mineira”. Ao destacar a erudi��o e a sofistica��o da escrita de Autran Dourado, Silviano Santiago afirma que o livro tem uma composi��o semelhante � obra do irland�s James Joyce (1882-1941) por ser m�tica e n�o hist�rica. Dessa forma, � uma narrativa mais ampla, universal, sobre a decad�ncia da cultura ocidental.
O palco � o sobrado
A palavra �pera vem do italiano (“opera”) e, conforme o dicion�rio “Aur�lio”, significa “drama inteiramente cantado, com acompanhamento de orquestra, ou intercalado com di�logos falados, ou com recitativos acompanhados por um instrumento de teclado”. Mas pode ser tamb�m “teatro onde se representam esses dramas”. Nessa segunda explica��o, o palco � o sobrado de uma pequena cidade do interior de Minas, com sua pra�a, igreja e casario, onde vive Rosalina e sua fiel e muda empregada Quiquina.
O casar�o foi erguido pelo av� de Rosalina, o coronel Lucas Proc�pio Hon�rio Cota, e ganhou continuidade nas m�os do pai dela, Jo�o Capistrano Hon�rio Cota. A rotina da solit�ria herdeira, que se dedica � cria��o e venda de flores de papel e tecido, vira de ponta-cabe�a com a chegada de Jos� Feliciano, o Juca Passarinho. Para quem se mantinha sempre distante, com ar de superioridade, de cabe�a erguida na sua clausura, tal presen�a causa mudan�as.
A edi��o rec�m-lan�ada tem pref�cio assinado pelo escritor baiano Itamar Vieira Junior, o premiado autor de “Torto arado”. Assim escreveu Itamar: “O sobrado � um ambiente singular, orgulho da pequena cidade do interior. � o mundo da fam�lia Hon�rio Cota sofrendo a a��o implac�vel do tempo – que, por ironia, se encontra paralisado no rel�gio parado da casa – e da hist�ria. A trama atravessa as paredes da casa, que, por sua vez, � atravessada por personagens fantasmag�ricos e, na mesma medida, inesquec�veis. A casa � habitada por Rosalina e a empregada Quiquina no presente. A elas se une um misterioso forasteiro, Jos� Feliciano. Mas o romance carrega consigo os fantasmas de Rosalina e de uma cidade. A casa-grande que ostenta a gl�ria do passado se deteriora, e nela o legado de seus fundadores: o av�, Lucas Proc�pio, e o pai, coronel Hon�rio, antigos moradores do im�vel.”
Asas e ouvidos
As cidades coloniais mineiras s�o povoadas por sobrados – os casar�es de dois andares –, embora muitos tenham desaparecido ou deteriorado pelo descuido ou a��o do tempo. No caso de “�pera dos mortos”, o im�vel � tamb�m personagem. A cada p�gina, � de se ficar pensando na curiosidade da popula��o sobre o que se passava al�m da porta da rua. Aquele sabedoria popular que diz “as paredes t�m ouvidos” ganha, aqui, outra dire��o: a imagina��o tem asas para voar alto, tecer suas hist�rias, e, quando poss�vel, entrar e ficar bem � vontade. Como se estivesse em sua pr�pria casa. Nada fica no lugar.
Trechos
“Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabe�a erguida, digna, soberba, que nem uma rai- nha – os olhos postos num fundo muito al�m da parede, os passos medidos, nenhuma vacila��o; trazia alguma coisa bri- lhante na m�o. Rosalina era uma figura recortada de hist�ria, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistente, et�rea, luar. Tudo podia acontecer, esperava-se a noiva descer as escadarias do pal�cio, o vestido arrastando na passadeira de veludo, os pajens, os nobres, o cortejo: aguardava-se a rainha que vinha vindo. Nada a gente deixava de ver, mesmo n�o vendo. Podiam-se ouvir a respira��o, os m�nimos ru�dos, tudo mat�ria fantasmal.”
“Quanto tempo faz que Quiquina saiu? Quando nada, mais de uma hora. Ser� que aconteceu alguma coisa com Quiquina? N�o, n�o aconteceu nada. Deve ter ficado parada boba assuntando conversa dos outros, na via-sacra. Ainda bem que ela n�o vinha contar depois. Os gestos de Quiquina quando aflita, os olhos esbugalhados, os grunhidos. Voc� vai, entrega as flores. Volta logo, temos ainda muitas d�zias para fazer, disse devagar, claro, explicando direitinho. Tem horas que Quiquina � dura de entender.”

- “�pera dos mortos”
- Autran Dourado
- HarperCollins
- 240 p�ginas
- R$ 54,90 e R$ 39,90 (e-book)