Lu�s Augusto Fischer abre sua metralhadora girat�ria contra a Semana de 22
Professor questiona o evento como �nica possibilidade de se entender a literatura brasileira e critica foco em M�rio de Andrade
06/01/2023 04:00
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atualizado 05/01/2023 23:29
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Paulo Paniago*
Especial para o EM
O cr�tico liter�rio e ensa�sta Lu�s Augusto Fischer, professor titular de literatura brasileira na UFRGS: insurg�ncia contra o "modernismo � paulista" (foto: LU�S AUGUSTO FISCHER)
O grande monstro do modernismo brasileiro, ou melhor, do modernismo � paulista, ganha finalmente o primeiro paladino disposto a enfrent�-lo de lan�a e tudo numa guerra que promete barulho, ou silenciamento vigoroso, que � a forma preferida �s vezes de escamotear problemas. � que o professor Lu�s Augusto Fischer decidiu abrir o berreiro contra a consagra��o do modernismo paulista no �mbito nacional e publicar “A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagra��o” (Todavia), em que passa em revista o m�todo sutil de constru��o de um discurso de que n�o apenas o �nico modernismo que vale a pena foi o paulista, decorrente da Semana de 1922, como tudo o que veio depois lhe � tribut�rio e deve prestar contas sob o mesmo altar.
O curioso � que Fischer havia lan�ado, em 2021, um estudo a respeito da cr�tica nacional, intitulado “Duas forma��es, uma hist�ria” (Arquip�lago Editorial), em que passa em revista a hist�ria da cr�tica brasileira recente e coloca em confronto dois modelos fundamentais, o de “forma��o”, relativo (mas n�o restrito) � obra de Antonio Candido, e o de “ideias fora de lugar”, que diz respeito a Roberto Schwarz, para avaliar n�o s� os percal�os e problemas, mas como plataforma para lan�ar novas possibilidades, que ele sinaliza no posf�cio do livro, embora desenvolva pouco. Em algum sentido, esses dois livros s�o parte de um mesmo conjunto, em que pese o primeiro parecer ser mais avan�ado, em certo sentido. Este aqui, no entanto, pode provar mais barulhos.
A introdu��o de “A ideologia modernista” diz a que veio. Nela, Fischer afirma que o modernismo paulista “foi sendo erguido � condi��o de ponto zero de tudo de bom que o Brasil produziu em sua cultura, ao longo do s�culo 20”, o que envolve desde a cria��o da Universidade de S�o Paulo, a USP, onde se produziu a cr�tica e a historiografia, paralelo ao fato de que o estado assumiu a ponta de lan�a do processo de domina��o econ�mica e cultural. A quest�o �: acaso se imagina que os envolvidos deveriam ter agido de outro modo? Se havia condi��es para assumir o comando, ocuparam os espa�os e geraram o discurso predominante. Mesmo que se esclare�am os “comos” e os “porqu�s”, o interessante � que a roda da hist�ria � implac�vel e se movimenta com indiferen�a.
Em termos de concep��o, o projeto � simples: analisar d�cada a d�cada como os textos cr�ticos foram puxando brasas para a sardinha do modernismo. A tese de Fischer � que existe um “mariocentrismo” exacerbado, ou seja: um privil�gio em torno da figura de M�rio de Andrade. A certa altura est� dito: “A vis�o de M�rio � o que hoje compreendemos como modernismo”. Mas ele tamb�m se det�m nos outros construtores da ideologia, para mostrar como intelectuais como Paulo Prado, Gilberto Freyre, Caio Prado J�nior e S�rgio Buarque de Holanda embarcaram na canoa (ou a ela resistiram em termos relativos, caso de Freyre).
H� tamb�m espa�o para discutir os aliados que se tornam fardos. O mais destacado � Gra�a Aranha, situa��o �nica de sujeito que faz a ren�ncia � Academia Brasileira de Letras para engrossar o caldo modernista. � o caso de perceber como o tecido de Fischer � cuidadoso em estabelecer filia��es devidas. As ideias de Gra�a Aranha expressas em “A est�tica da vida” encontram resson�ncia no estudo de Paulo Prado “Retrato do Brasil”. Os argumentos de Fischer s�o demolidores, mas todos muito sensatamente dispostos, em que pese a alta dosagem de deboche que �s vezes o texto assume. N�o � cr�tica, que fique logo entendido, esse tom de Fischer casa bem com a sisudez do assunto e torna-o muito mais palat�vel. A certa altura, ele diz, a respeito de “Retrato do Brasil”: “A ideia � apenas explicitar o estilo do ensaio, aos saltos, arbitr�rio, mas elegante na forma, e seu pensamento de fundo, largamente reacion�rio”. E tome-se malho.
Outro aspecto muito interessante do estudo � que mistura a an�lise cr�tica com um pouco de biografia, na medida certa para se perceber como os homens tamb�m s�o em certa medida frutos de circunst�ncias. As rela��es de Gilberto Freyre com a pol�tica, seja como secret�rio do governador de Pernambuco, seja na oposi��o a Get�lio Vargas e em carreira pr�pria como deputado constituinte em 1946, n�o ficam distantes dos modelos de ensa�smo que ele desenvolve, em que pese escorreg�es posteriores, como o apoio ao regime de 1964 e � ditadura de Ant�nio Salazar. A ideia de regionalismo pretende ao mesmo tempo ser modernista e combinar o diapas�o com o movimento que vem ocorrendo em S�o Paulo, mas ao mesmo tempo resguardar certas tradi��es – ser� que � poss�vel? Ao falar de regionalismo, Fischer aproveita o embalo para incluir os sulistas Moys�s Vellinho em confronto com Rubens de Barcellos, que discutem a obra de Alcides Maya e pouco depois entra em cena o precursor da turma, Sim�es Lopes Neto. Tamb�m os mineiros recebem um pouco de aten��o. Pequena, por enquanto. Mais adiante voltar�o com novas contribui��es.
O que faz o tempo sen�o avan�ar?
Passados 10 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, as comemora��es n�o correspondem. Oswald virou comunista, est� �s v�speras de publicar “Serafim Ponte Grande” (em 1933, em cujo pref�cio faz uma autocr�tica forte); Augusto Meyer escreve a M�rio com inten��o de escrever um guia de leitura para “Macuna�ma”; Ronald de Carvalho produzira em 1919 uma “Pequena hist�ria da literatura brasileira” e talvez tenha chegado a hora de entender por que ele se torna o grande esquecido do movimento. A sa�da de Fischer � avan�ar um pouco pela d�cada de 1930 e mencionar a vinda Claude L�vi-Strauss (em 1935), a constru��o do pr�dio do Minist�rio da Educa��o (em 1936), ou a ideia de M�rio de Andrade, como diretor do Departamento de Cultura do munic�pio de S�o Paulo, de criar museus, tamb�m em 1936, mesmo ano da publica��o de “Ra�zes do Brasil”, de S�rgio Buarque de Holanda.
Na d�cada seguinte, M�rio produz o balan�o do movimento, para comemorar os vinte anos, no famoso ensaio “O movimento modernista”, resultado de uma confer�ncia pronunciada no Rio de Janeiro. Em boa parte dos casos, parece haver um movimento org�nico. Ali�s, o adjetivo � de Fischer. Ele, a certa altura, vai us�-lo para subentender a ideia de que as coisas se deram de forma natural, quando n�o � o caso. O que est� em jogo, diz, � o modernismo paulistoc�ntrico. Em que pese um Erico Verissimo escrever tamb�m uma “Breve hist�ria da literatura brasileira”, depois da experi�ncia de temporadas nos Estados Unidos, e novamente o valor se confirma. Oswald � outro que faz balan�o. O ensaio “O caminho percorrido”, depois inclu�do em “Ponta de lan�a”, e resultado de uma palestra proferida em Belo Horizonte. Nele, Oswald aponta as vertentes do modernismo, um � esquerda, outro � direita, al�m de arrogar a import�ncia da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia. “De modesto ele n�o pode ser acusado”, ironiza Fischer, em que pese a simpatia que depois demonstrar� pelo autor.
H� espa�o ainda para breve an�lise do ensaio de Clodomir Viana Moog “Her�is da decad�ncia”, que talvez fuja um pouco do escopo, mas ajuda a entender a abrang�ncia do quadro. No entanto o foco � mesmo o estudo “Uma interpreta��o da literatura brasileira”, de 1942, em que ele desenvolve o conceito de “arquip�lago cultural” para tratar do caso nacional, com men��o �s ilhas (sete, na contagem do autor) que movimentam a literatura brasileira. A tese de Moog contraria a ideia de unidade defendida por M�rio. Fischer pormenoriza os problemas e fragilidades da tese de Moog, embora pare�a ter simpatia por ela. Na sequ�ncia, demole as teses de Caio Prado J�nior expostas em “Forma��o do Brasil contempor�neo”, livro de 1942. A f�rmula de Caio sintetizada nas palavras de Fischer: “O Brasil teria sido essencialmente e desde sempre uma economia monocultora, latifundi�ria, escravagista e exportadora”. Ele d� dois sopros, convoca Jo�o Lu�s Fragoso (“Homens de grossa aventura”) e Manolo Florentino (“O arca�smo como projeto”), de um lado, e Jorge Caldeira (“Hist�ria do Brasil com empreendedores”), de outro, e p�e tudo abaixo. Vai al�m: � fundamentado nas teses de Caio Prado que Candido e Schwarz v�o formular as pr�prias ideias. E, portanto, insistir em certos equ�vocos anal�ticos inevit�veis.
O coro dos contentes
A d�cada de 1950 ser� a da limpeza dos cariocas da equa��o modernista, para torn�-la ainda mais paulistoc�ntrica. � um dos momentos (raros) do estudo em que se convoca a imprensa, no caso, o “Di�rio Carioca”, com a volta de S�rgio Buarque de Holanda, agora como cr�tico militante. � tamb�m o momento em que aparece “Roteiro de Macuna�ma”, de Manuel Cavalcanti Proen�a, importante marco para estabelecimento da centralidade de M�rio de Andrade no pante�o. H� espa�o ainda para estudos inesperados, como o de Richard M. Morse “De comunidade a metr�pole: Biografia de S�o Paulo”, lan�ado em 1954, nas comemora��es do quarto centen�rio da cidade. Brasilianista com vis�o pr�pria, ele evita a ideia de ruptura com um modelo que relembra 25 anos anteriores, inclusive com participa��o de revistas que tomaram parte no processo. Mas de novo coloca M�rio como “a pr�pria personifica��o do modernismo”. No ano seguinte, � publicado o ensaio de Antonio Candido “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, depois reunido no volume “Literatura e sociedade”. � o texto em que talvez Candido esteja a preparar o roteiro do que vai ser o seu “Forma��o da literatura brasileira”, lan�ado no fim dos anos 1950, com inclusive mudan�as de enfoque cab�veis. Manuel Bandeira lan�a tamb�m as mem�rias liter�rias, “Itiner�rio de Pas�rgada”, sem pretens�es de disputar sentido ou abrang�ncia do termo “modernismo”, como aponta Fischer, que fala ainda na “sua vis�o amena de modernismo, com tra�os conciliadores mais do que vanguardistas, infensa ao debate pela hegemonia”. No meio da d�cada, Afr�nio Coutinho publica “A literatura no Brasil”, o que talvez seria “o ponto de vista da universidade carioca”. Mas essa vers�o, mesmo que coloque em xeque a centralidade paulista, mas n�o aposte todas as fichas na import�ncia carioca, ser� aos poucos varrida do mapa.
Uma voz efetivamente distinta parece ser a de Jo�o Cabral de Melo Neto, que publica “A Gera��o de 45” no “Di�rio Carioca” e depois o texto � recolhido na “Obra completa”. Aqui, um ponto de inflex�o. Se � poss�vel abrir o escopo para incorporar uma vertente que � diferente (embora, v� l�, decorra dele) do movimento modernista, por que a mesma coisa n�o se d� com os concretistas? Com a gera��o mime�grafo? Onde ficam os demais caminhos que surgiram (ou se opuseram, ou avan�aram) daquela turma de 22? Isso � um sen�o do estudo, em geral t�o minucioso. Jo�o Cabral, enfim, “reduz o problema a uma dimens�o real, concreta, a da cria��o liter�ria”, distante portanto das brigas pelo poder que parece ser a motiva��o fundamental do restante do pessoal.
A breve men-concretismo passa pela an�lise de Jos� Guilherme Merquior, na abertura da d�cada seguinte, e ocorre no estudo “As contradi��es da vanguarda” (recolhido em “As ideias e as formas”). O problema, segundo Fischer, � que o texto d� “de barato que modernismo j� estava assimilado”, justamente o calcanhar de Aquiles contra o qual vem se posicionando o cr�tico. Na sequ�ncia, M�rio da Silva Brito tem seu “Hist�ria do modernismo brasileiro: I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna” publicado, em 1958, e escrutinado agora, para reprova��o. O problema � “enaltecer apenas um lado da hist�ria, o lado paulista”. Imperdo�vel. A festa dos 40 anos ganha Suplemento de “O Estado de S. Paulo”, mais do mesmo. Raul Bopp publica uma mem�ria em 1966, “Movimentos modernistas no Brasil: 1922-1928”, com pretens�o de anotar casos pelos pa�s afora, ele tamb�m n�o disputando interpretar a tradi��o modernista. Wilson Martins publica o volume “O modernismo (1916-1945)”, um livro mais descritivo do que anal�tico, segundo Fischer, e embora tenha ampliado o escopo, tem problemas. Em seguida, uma discuss�o acalorada a respeito inclusive da terminologia pr�-modernismo, cheia de contradi��es e problemas. Culpa de Alfredo Bosi, que publica em 1966 “O pr�-modernismo”, que enfeixa as obras de uns quantos, mas se esquece dos �bvios, Euclides da Cunha, Lima Barreto, at� porque s�o autores que n�o se enquadrariam na categoria anal�tica criada.
Balan�o de meio s�culo e al�m
Para o cinquenten�rio da Semana, na d�cada de 1970, todos os excessos comemorativos. Gilberto Mendon�a Teles lan�a “Vanguarda europeia e modernismo brasileiro”, que recebe a miseric�rdia do analista, afinal n�o eleva o modernismo paulista “� condi��o de ponto inultrapass�vel da cria��o e do pensamento”. Augusto de Campos finalmente aparece, com o “Balan�o da bossa”, de 1968, mas como analista do modernismo anterior, n�o exatamente como produtor do concretismo, embora uma breve articula��o entre este e a Tropic�lia seja objeto de an�lise. Na sequ�ncia, Ferreira Gullar surge com “Vanguarda e subdesenvolvimento”, de 1969, que procura, entre outras coisas, enxergar benef�cios na politiza��o oswaldiana. Outra inflex�o importante: a an�lise de como a unifica��o do vestibular deu for�a � centraliza��o do modernismo na vertente paulista. Um livro de Bosi comparece, “Hist�ria concisa da literatura brasileira”, que at� tem m�rito de tentar articular variantes fora do eixo Rio de Janeiro e S�o Paulo e mesmo um esfor�o de distinguir entre moderno e modernista, mas sem “oferecer ganho relevante para a reflex�o”. Uma entrevista de Afr�nio Coutinho para o “Correio da Manh�”, em janeiro de 1972, merece vistoria. Afr�nio n�o passa pelo crivo. E como se fala de jornal, volta nova an�lise do Suplemento do “Estad�o”. Mesmo o deboche promovido pelo “Pasquim”, um escape delicioso, termina por confirmar que a imprensa de modo geral n�o entende bem do que fala, quando o assunto � de gente grande. � tamb�m a d�cada em que se inicia a republica��o das obras dos Andrades, M�rio e Oswald. Volta Wilson Martins, agora como “escassa exce��o dessa consagra��o”, ao publicar seu “O modernismo (1916-1945)”, mas entra aqui agora num brev�ssimo par�grafo, apenas para afirmar o “malogro” do “Macuna�ma”, entendido num sentido positivo (tal como “Garg�ntua” ou como “Ulysses” foram malogros). Vale lembrar que Tel� Ancona Lopez lan�a em 1974 o “Macuna�ma: a margem e o texto”, que logo se transforma numa importante refer�ncia para os estudos. No fim da d�cada, a contribui��o � de Gilda de Mello e Souza (cujo marido � Antonio Candido, vale lembrar), que lan�a um estudo a respeito de “Macuna�ma”, “O tupi e o ala�de”. A tese � que M�rio � a �ltima metamorfose do mito que come�a no romance arturiano e desemboca no “Dom Quixote”. “Estava fechado o circuito de entroniza��o de ‘Macuna�ma’ e de seu autor no centro de interpreta��o do Brasil postulada desde a famosa Semana paulista de 22 e agora consagrada na USP, a mais autorizada voz cultural”, anota Fischer. Os estudos que aparecem, mesmo n�o feitos por paulistas, surgem para afirmar o que se sabe: o modernismo brasileiro � mesmo o da Semana. Ent�o Ligia Chiappini Moraes Leite, com “Modernismo no Rio Grande do Sul”, ou a colet�nea “O modernismo”, organizada por Affonso �vila, v�o acender o incenso no altar dispon�vel. Este �ltimo assume mesmo tom celebrat�rio, sem crise.
Quantos Brasis cabem no Brasil
Se Jos� Guilherme Merquior tem o m�rito de apresentar os pensadores da Escola de Frankfurt aos brasileiros, quando publica “Cr�tica (1964-1989)”, em 1982, ele resvala para a premissa da “m�stica da transgress�o”, mesmo com a contradi��o de se situar � esquerda, moderada ou radical (pense em M�rio e Oswald), enquanto o financiamento vem da aristocracia cafeeira. Na sequ�ncia, entra Nicolau Sevcenko com “Literatura como miss�o”, que tem o m�rito de mostrar os talentos anteriores � eclos�o da Semana, e Jos� Miguel Wisnik, com “O coro dos contr�rios”, analisado com o devido cuidado por se tratar, em grande medida, de um estudo a respeito da m�sica, mas que tamb�m respinga ideologia, como n�o pode deixar de ser. A birra de Fischer faz sentido: por que os modernistas n�o enfrentaram os grandes nomes anteriores e ficaram se batendo contra peixes pequenos? � uma quest�o que perpassa todo o estudo e volta e meia sobe novamente � cena. Enquanto isso, Sergio Miceli publica, em 1979, “Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)”, mais tarde republicado, com acr�scimos e novo t�tulo: “Intelectuais � brasileira”, no qual discorre a respeito da “vit�ria pol�tica do modernismo”, ou seja, aqui e ali, de quando em quando, Fischer encontra alguns pensamentos similares ao pr�prio. E Antonio Arnoni Prado combate o fantasma de vanguarda direitista com “1922 — Itiner�rio de uma falsa vanguarda”. A quest�o, novamente, � atribuir culpa a advers�rios mais ou menos irrelevantes.
O pr�ximo ponto de interesse � a d�cada de 1990, e Sevcenko volta a atacar, dessa vez como autor de “Orfeu ext�tico na metr�pole”, um estudo a respeito das tens�es em S�o Paulo durante os anos 1920. Movimentos migrat�rios, crescimento veloz, circula��o de dinheiro, tudo passa pelo crivo de Sevcenko. A tese, que Fischer voltar� a discutir ao fim do livro, � que houve uma coes�o interna �nica e quem sabe irrepet�vel, tanto do ponto de vista econ�mico quanto cultural, “uma impressionante converg�ncia de interesses e possibilidades tendo como ponto nodal uma cidade apenas”. � esse o mist�rio a desvendar: como foi poss�vel? Ponto curioso na jornada: o texto a ser analisado a seguir � o de Franklin de Oliveira, “A Semana de Arte Moderna na contram�o da hist�ria e outros ensaios”, publicado em 1993. Como � que os modernistas queriam passar o Brasil a limpo se mal conheciam a capital, “fora a mans�o dos Prado e a reda��o do ‘Correio Paulistano’?”, pergunta Franklin. A avalia��o leva em conta que os generais do golpe militar de 1964 se apropriaram da Semana para convert�-la � agenda do golpe. E, de passagem, Fischer recorda que “de fato foi naquela altura cinquenten�ria que as teses modernistas paulistas alcan�aram a for�a quase de lei”.
Outro encontro interessante � o livro da historiadora M�nica Pimenta Velloso, “Modernismo no Rio de Janeiro”, em que o contraste entre Rio e S�o Paulo, desfavor�vel ao primeiro, nas p�ginas do “Correio Paulistano”, ganha contraponto com o estudo da revista carioca “D. Quixote”. Em S�o Paulo, unidade; no Rio, descentraliza��o em atividade. Com isso, S�o Paulo ficou com a exclusividade e for�a de reconhecimento. Outro brasilianista aparece, esse residente, o psicanalista Contardo Calligaris, autor de “Hello Brasil”. N�o � o �nico. Mais adiante, na an�lise da d�cada de 2010, comparece Benjamin Moser com “Autoimperialismo”. Ambos preferem Oswald, em vez de M�rio, o que parece agradar bastante a Fischer.
No in�cio dos anos 2000, Roberto Schwarz volta a comparecer, agora como autor de “Duas meninas”, que faz reflex�o a respeito de M�rio de Andrade. Na verdade, Fischer relembra, no primeiro livro de Schwarz, “A sereia e o desconfiado”, havia um estudo com o protagonista do modernismo paulista, “O psicologismo na po�tica de M�rio de Andrade”. Outra historiadora, �ngela de Castro Gomes, tamb�m comparece, com “Essa gente do Rio...”, t�tulo pescado de uma carta de M�rio para Manuel Bandeira. A historiadora estuda duas revistas cariocas, “Festa” e “Lanterna Verde”.
Na d�cada seguinte, Marcos Antonio de Moraes lan�a uma biografia de M�rio por meio das cartas que escreveu com gosto, o livro “Orgulho de jamais aconselhar”, coisa que, ali�s, M�rio de Andrade se exacerbou em fazer. Fischer chega a mencionar “sua impressionante voca��o para a pedagogia das cartas”. N�o se esquece de mencionar o pendor de Marcos Augusto Gon�alves, autor de “1922: A Semana que n�o terminou”, tamb�m pelas ideias oswaldianas, numa linha que questiona a “suposta preval�ncia de uma perspectiva excludente, linear e triunfalista na narrativa hist�rica sobre o modernismo”, e que o jornalista situa como algo que ocorre desde os anos 1980. Mas nem tudo � assim promissor. Na biografia que Jason T�rcio faz de M�rio, “Em busca da alma brasileira”, a hagiografia volta a dar as caras, qualificada por Fischer como “pura e lament�vel”. Um contraponto interessante acontece com Jorge Caldeira e seu “Hist�ria da riqueza do Brasil”, e com Ruy Castro e o n�o menos desafiador “Metr�pole � beira-mar”, que passa em revista a modernidade carioca, depois acrescido de novo volume, “As vozes da metr�pole”, que complementa o volume anterior.
No �ltimo cap�tulo, Fischer se pergunta o quanto, afinal, vale o modernismo paulista, sem fazer apologias que santificam nem fazer a nega��o pura e simples da validade. Apresenta seis argumentos de for�a para explicar a coes�o do estado, que ajudam a compreender e dimensionar o fen�meno, aliado � ocupa��o por parte dos intelectuais dos �rg�os de gest�o no campo cultural — M�rio no Departamento de Cultura, Augusto Meyer na chefia do Instituto Nacional do Livro, Rodrigo Melo Franco de Andrade no Servi�o de Prote��o ao Patrim�nio Art�stico Nacional, por exemplo —, tudo isso alinhavado com surgimento de novos temas e inquieta��es forma o caldo complexo, que al�m disso reaviva as ideias de sert�o e plantation (o que volta a fazer a articula��o deste livro de Fischer com o seu anterior, “Duas forma��es, uma hist�ria”), e que deixa de fora a dimens�o do mundo da floresta, que configuraria uma terceira vertente importante.
O esfor�o entre a min�cia do acompanhamento sistem�tico da produ��o bibliogr�fica ao longo de cem anos e a promo��o de ideias que sintetizem o conjunto mostra um f�lego de maratonista e que tudo isso se articule num conjunto de argumentos consistentes � o grande m�rito deste (e do outro anterior) livro de Lu�s Augusto Fischer, que se qualifica como um dos mais impactantes pensadores das quest�es liter�rias contempor�neas. Resta saber com que resist�ncia (ou com que estrat�gias de silenciamento) os advers�rios v�o reagir.
* Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia
“A ideologia modernista: a semana de 22 e sua consagra��o”
.Lu�s Augusto Fischer
.Todavia
.448 p�ginas
.R$ 99,90
.e-book: 59,90
O escritor M�rio de Andrade, considerado o principal motor da Semana de Arte Moderna de 1922 e um dos respons�veis pela vis�o paulistoc�ntrica do modernismo brasileiro: alvo das cr�ticas de Lu�s Augusto Fischer (foto: ARQuivo EM)
Trechos
“O que por�m realmente precisa ser esmiu�ado analiticamente � a primeira frase. S�o duas afirmativas enganchadas na reda��o. A primeira delas � uma peti��o de princ�pio: n�o h� literatura paulista, ga�cha ou pernambucana. N�o h�? Nunca h� nem houve? Por qu�? Qual o crit�rio? Vejamos um paralelo: um cientista social da economia ou da hist�ria n�o poderia falar na economia pernambucana, no PIB de S�o Paulo ou nas guerras ga�chas? N�o se trata de imaginar uma ess�ncia estadual para nada disso, economia, PIB ou guerras; mas sim de reconhecer que o �mbito estadual pode perfeitamente ser uma baliza, um limite, um �mbito cab�vel para estudar esse ou aquele problema. Ent�o, por que n�o se pode falar em uma literatura pernambucana, paulista ou ga�cha? Por que s� pode haver uma literatura se ela for nacional? (E o que � ‘ser nacional’?)
Acresce que os tr�s estados mencionados s�o por si significativos. Candido poderia, pergunto, ter substitu�do algum desses tr�s por outros? Se sim, quais? Talvez maranhense, cearense, paraense – se trata tamb�m de prov�ncias com alguma vida liter�ria localmente articulada, com autores, obras e p�blico, eventualmente criando uma tradi��o local, para citar aqui o mesmo Candido. Mas n�o poderia citar outros, como baiana, mineira ou carioca, acho: estas tr�s nunca se compreenderam nem foram compreendidas como ‘provinciais’, porque s�o, dizendo sumariamente, as tr�s matrizes da literatura ‘brasileira’ dos s�culos 17, 18 e 19, respectivamente.
Ao contr�rio, S�o Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco (mais que o Maranh�o, o Cear� e o Par�) representam tend�ncia centr�fuga: em diferentes momentos da hist�ria brasileira foram prov�ncias significativas, de tradi��o mais republicana do que mon�rquica, mas nunca centrais, nunca hegem�nicas. Quer dizer: S�o Paulo nunca tinha sido, mas agora, em 1954, sentado sobre o patrim�nio dos trinta anos da Semana e com a for�a da grana cafeeira e industrial, est� se apresentando para ser um novo centro hegem�nico, e o ser�.”
Sobre o autor
Nascido em Novo Hamburgo (RS), o cr�tico liter�rio e ensa�sta Lu�s Augusto Fischer � professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com p�s-doutorado na Sorbonne (Paris VI). Entre os livros que escreveu, est�o “Duas forma��es, uma hist�ria: das ‘ideias fora do lugar’ ao perspectivismo amer�ndio”, “Machado e Borges” e “Intelig�ncia com dor: Nelson Rodrigues ensa�sta”, entre outros.