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'Dois irm�os' ganha nova edi��o para comemorar os 70 anos de Milton Hatoum

Um dos romances mais aclamados da literatura brasileira das �ltimas d�cadas recebe novo projeto gr�fico e texto do professor em�rito da UFMG Wander Melo Miranda


06/01/2023 04:00 - atualizado 06/01/2023 09:42

Wander Melo Miranda*  

ilustração
 

Sem ceder �s facilidades de um exotismo que poderia ser duplamente equivocado, o escritor se nega a reduzir os termos da quest�o a um choque simplista entre culturas. Ao contr�rio, estrangeiros, imigrantes e manauenses compartilham o mesmo espanto diante de um territ�rio enigm�tico na sua for�a sempre estranha e familiar. A cidade de Manaus, contornada pela imensid�o do Rio Negro e cortada pela f�ria das tempestades, � a imagem emblem�tica desse espanto, tornado m�tico na mem�ria



A “lembran�a de uma ruptura” � o horizonte da escrita de “Dois irm�os”. Por meio da hist�ria de uma fam�lia de imigrantes libaneses em Manaus, a ruptura apresenta-se sob a forma de um dissenso na origem, a que a retomada do mito dos irm�os inimigos d� uma inflex�o bastante peculiar, sem que se abandone sua natureza universalizante. Ao reinventar esse tema, “Dois irm�os” revigora uma linha sutil da fic��o brasileira, que une romances t�o distintos quanto “Esa� e Jac�”, de Machado de Assis, e “A menina morta”, de Corn�lio Penna. Nesses antecessores ilustres, a trama que enla�a o destino dos personagens pode ser lida como o enredo aleg�rico de impasses e contradi��es da nossa forma��o nacional — pela ironia arrasadora de Machado, ao tratar da rivalidade entre os g�meos Pedro e Paulo e, atrav�s dela, das f�teis querelas entre monarquia e Rep�blica; pelas fantasmagorias neog�ticas de Corn�lio, ao abordar a viol�ncia desmedida da fam�lia patriarcal e o horror da escravid�o. 

Milton Hatoum insere um outro fator na equa��o — a perspectiva do imigrante —, abrindo-lhe espa�o atrav�s da configura��o de uma Amaz�nia oriental, vista como fronteira extrema do imagin�rio brasileiro. Sem ceder �s facilidades de um exotismo que poderia ser duplamente equivocado, o escritor se nega a reduzir os termos da quest�o a um choque simplista entre culturas. Ao contr�rio, estrangeiros, imigrantes e manauenses compartilham o mesmo espanto diante de um territ�rio enigm�tico na sua for�a sempre estranha e familiar. 

Originalidade 

A cidade de Manaus, contornada pela imensid�o do Rio Negro e cortada pela f�ria das tempestades, � a imagem emblem�tica desse espanto, tornado m�tico na mem�ria. O narrador vai buscar as diferen�as que impulsionam as proje��es de identidade, individual ou coletiva, nas “�guas sem nenhum remanso” do passado, por meio de um ato de imers�o laboriosa no tempo, at� que “s�bitas imagens” afluam ao presente e possam dar a medida desconsolada das ru�nas do que se perdeu, mas persiste e perdura na linguagem. Desde “Relato de um certo Oriente”, seu romance de estreia, publicado em 1989, Hatoum se tem dedicado � tarefa minuciosa de recompor vozes silenciadas, gestos invis�veis, objetos em vias de desaparecimento ou perdidos para sempre. A originalidade do romancista reside em fazer com que pequenas coisas, retiradas do esquecimento, se coagulem em torno de certos eventos traum�ticos — no caso do “Relato”, o atropelamento de Soraya Angela, o afogamento de Emir —, at� que umas e outros revelem uma significa��o inesperada. S� assim o “horizonte aqu�tico, brumoso e ensolarado”, que � o ponto de chegada da reminisc�ncia, pode mostrar-se em toda sua extens�o como uma insufici�ncia cr�nica, uma falta que � raz�o e possibilidade do movimento da escrita. Por isso, o olhar que Nael, o narrador de “Dois irm�os”, lan�a ao passado �, ainda que por vezes � sua revelia, um “olhar � deriva” de si mesmo. 

Exclus�o

A condi��o de filho bastardo da empregada da fam�lia com um dos g�meos — Yaqub (Jac�, em �rabe) e Omar — lhe propicia um espa�o liminar de observa��o e testemunho da hist�ria familiar e social. Lugar vantajoso, sem d�vida, embora mediado pelo sofrimento e pela exclus�o, ele lhe permite acompanhar com uma aten��o flutuante os passos da paix�o incestuosa de Zana pelo filho Omar, a rivalidade deste pelo irm�o, o afastamento de Yaqub, engenheiro formado pela Polit�cnica de S�o Paulo e depois empres�rio favorecido pela ditadura militar p�s-64, a morte de Halim, o pai, e a solid�o de R�nia, a irm�.  

Transforma��o

A funda��o paradoxal de uma casa em ru�nas ou uma “casa assassinada”, para lembrar aqui o t�tulo de L�cio Cardoso, � a origem que cabe � escrita simular, mesmo sabendo-a desde logo perdida, como indicam os versos do poema “Liquida��o”, de Carlos Drummond de Andrade, que servem de ep�grafe ao livro. O acontecimento origin�rio s� � dito na sua falta, sob a forma de uma torrente de imagens e sons que fazem passar quase despercebida na sua revela��o — tal a maestria do narrador — a travessia do factual ao m�tico, a conflu�ncia de temporalidades distintas da hist�ria. � o modo que o romance encontrou para dar conta da complexidade do andamento do processo de moderniza��o no pa�s, do ritmo comum que o une a processos mais gerais e do ritmo pr�prio de uma entre as variantes locais, cuja vers�o “oriental” nos oferece. Para tanto, cabe � narrativa acompanhar a transforma��o paulatina das rela��es privadas e p�blicas, que se efetiva no curso das mudan�as por que passam a loja da fam�lia e a casa. 

Antes indistintas quando sob a administra��o de Halim, loja e casa s�o o signo de formas de vida e atividade humana que n�o foram ainda transformadas em mercadoria, em novidade prestes a virar sucata. Pertencem a um momento que resiste ao seccionamento mort�fero do tempo capitalista, momento no qual os objetos ainda s�o, como as palavras, signos de interc�mbio e relato: as pessoas “entravam na loja, compravam, trocavam ou simplesmente proseavam, o que para Halim dava quase no mesmo”. Sob a dire��o de R�nia e reformada com dinheiro de Yaqub, a loja deixa de ser como que a outra parte da casa, ent�o invadida pelos novos utens�lios dom�sticos, in�teis, vindos de S�o Paulo: “O maior problema era o corte quase di�rio de energia, de modo que Zana decidiu manter ligada a geladeira a querosene”. O descompasso entre tempos distintos marca-se pela descontinuidade espacial que se imp�e entre a casa e a loja, resultante que � de um processo mais amplo de exclus�o e apagamento do heterog�neo e da diferen�a – “Noites de blecaute no Norte, enquanto a nova capital do pa�s estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil t�o distante, chegava a Manaus como um sopro amornado”. A margem escura �, pois, o entrelugar formado pelo impulso modernizante e a persist�ncia dif�cil de uma tradi��o desmantelada, o hiato que se apresenta como o territ�rio conflagrado de mutila��es, cortes e rupturas que a mem�ria transforma em linguagem. Desenha-se a� o espa�o luminoso da a��o �tica e pol�tica do narrador contempor�neo, a que Milton Hatoum vem dando forma com rigor e for�a art�stica incomuns. Nas p�ginas finais de “Dois irm�os”, Zana recebe a visita da matriarca Emilie, personagem central de “Relato de um certo Oriente”. A presen�a inesperada da velha senhora no novo romance, mais do que interligar a trama de ambos os livros, reafirma a aposta do escritor na continuidade do trabalho paciente de indaga��o do que seja o “oriente” do Brasil. Em tempos globais, a aposta �, mais do que nunca, imprescind�vel e quem sai ganhando � o leitor. 

*Wander Melo Miranda � professor aposentado de teoria da literatura e literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor em�rito da Faculdade de Letras da UFMG. Inclu�do na nova edi��o de “Dois irm�os”, o texto de Melo Miranda foi publicado originalmente sob o t�tulo “Dois destinos” em 1o/7/2000, no caderno Ideias do Jornal do Brasil

Capa do livro 'Dois irmãos' (nova edição)

“Dois irm�os” (nova edi��o)
• Milton Hatoum
• Companhia das Letras
• 280 p�ginas
• R$ 74,90


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