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Estado de Minas PENSAR

'Os �rf�os' recria hist�ria real de crian�as entre o nazismo e o apartheid

A escritora Bessora conta como �rf�os alem�es da 2� Guerra Mundial foram enviados � �frica do Sul para irrigar com "sangue puro" a sociedade separatista do pa�s


27/01/2023 04:00 - atualizado 26/01/2023 23:23

Escritora Bessora
Autora de "Os �rf�os", Bessora tem tripla cidadania: francesa, su��a e gabonense
Por serem “arianos”, os g�meos Wolfang e B�rbara foram, aos 8 anos, “selecionados” para um projeto financiado pelo Fundo Teut�nico para a Inf�ncia, organiza��o nazista, de cunho religioso protestante, em atua��o na �frica do Sul. Vivendo num orfanato em Lahn, cidade alem� da Baixa Sax�nia, os irm�os integraram o grupo de 83 crian�as enviadas para a ado��o que, em 8 de setembro de 1948, desembarcaram na portu�ria Cidade do Cabo. O pa�s vivenciava, naquele momento, com a ascens�o pol�tica do Partido Nacional, de extrema-direita, a institucionaliza��o e o desabrochar do apartheid, primo-irm�o do nazismo. Muito al�m do prop�sito da acolhida “crist�”, os �rf�os alem�es da Segunda Guerra Mundial chegaram � �frica do Sul para irrigar, com “sangue puro”, a reprodu��o humana naquela sociedade. Afric�neres (ou b�eres) de origem europeia n�o inglesa cultivavam a obsess�o da expans�o demogr�fica ariana e o dom�nio pol�tico, econ�mico e social sobre as popula��es aut�ctones de povos Khoisan, Xhosa e Zulu, a quem chamavam bantus. Afric�neres tamb�m viviam em permanente conflito com a heran�a da coloniza��o angl�fona, ap�s a derrota nas duas Guerras B�eres – entre 1880 e 1902 –, que reafirmaram o dom�nio ingl�s.

A hist�ria acima � recriada em “Os �rf�os”, de Sandrine Bessora Nan Nguema, conhecida apenas como Bessora, de 53 anos, primeiro romance lan�ado no Brasil da escritora e editado pela mineira Relic�rio. Ficcional, tem personagens inspirados na vida dos g�meos alem�es Peter e Birgit Ammermann, que ilustram a capa do romance, em foto documentada na exata data do desembarque das crian�as arianas na Cidade do Cabo. De apurada pesquisa e reconstru��o do contexto hist�rico, a obra se respalda tamb�m em entrevistas com Peter Ammermann e outras pessoas ainda vivas que estavam l�, sem a possibilidade de escolha, na conturbada exist�ncia de um per�odo, oscilando sob a espada do apartheid, que nascia em forma constitucional, e a ideologia de Hitler, �quela altura em desintegra��o numa Alemanha derrotada, sob pol�tica norte-americana para a desnazifica��o.

Todo o romance se constr�i a partir de um di�logo mental entre Wolfang, perto de morrer, e a g�mea B�rbara. Aos 78, Wolfang est� em coma. Moribundo, para ele, n�o h� futuro. Fora baleado na cabe�a, em seu anivers�rio, por Samora, filho de seu melhor amigo, Thanon, ambos carregando na testa, pela vida, a marca de uma estrela branca, que os associavam � fazenda em que passou a viver Wolfang na �frica do Sul. O tiro, que sela o destino do narrador, fora disparado na mesma data em que o pa�s celebrava o centen�rio de nascimento de Nelson Mandela (1918-2013). Como num filme acelerado, a vida, em reprise, lhe turva a mente. Tempo e espa�o se misturam para Wolfang, entre as cenas do passado e o presente num hospital, rodeado pelas duas filhas. � uma narrativa n�o linear do irm�o � irm�, que vai aos poucos reconstituindo o percurso de ambos da Europa � �frica do Sul. 

Mesmo no outono de sua exist�ncia, os g�meos n�o conseguem se desvencilhar da dupla culpa de terem sido parte, ainda que involuntariamente, da a��o e transitado entre as realidades dist�picas do nazismo e do apartheid. Entretanto, apesar do fim dos dois regimes, outras distopias segregacionistas persistem duradouras no tecido social de v�rias na��es do mundo, e, em seu conjunto, � sobre elas que tamb�m versa a obra de Bessora. 

As mem�rias de Wolfang, escavadas e remendadas num minucioso quebra-cabe�a, desvendam o racismo, presente em democracias ocidentais cultuadas, como a francesa, estendendo-se por diferentes pa�ses e em intensidades moduladas, como no caso do racismo estrutural brasileiro. “Escolhi a fic��o porque me parece que a hist�ria s� entra na mem�ria coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”, afirma Bessora em entrevista ao Estado de Minas. Com tripla cidadania – francesa, su��a e gabonense –, a autora se sentia preparada para escavar e identificar o DNA das ideologias segregacionistas com o rigor de sua forma��o na antropologia. Nascida na B�lgica, Bessora tem m�e su��a e pai diplomata do Gab�o, o que a levou a viver entre os Estados Unidos, a Europa e a �frica. 

As duas crian�as aparecem no livro em permanente busca pela identidade, de um lugar no mundo, tanto ao migrar para a �frica do Sul e, mais tarde, no retorno ao pa�s de origem, quando descobrem, j� maduros, que a m�e estava ainda viva e os abandonara para ter outros filhos com o segundo marido. J� cinquenten�rio, Wolfang se d� conta, ent�o, de que seu nome de batismo e da irm� foram modificados: o dele H�nsel; o dela, Gretchen. S� localiza o paradeiro da m�e depois de alcan�ar a tanoaria da fam�lia, legada ao pai e ao tio, a partir de informa��es de uma prima.


Desnazifica��o


Em tenso di�logo com a m�e biol�gica, Wolfang ouve dela que o primeiro marido, morto na Crimeia – portanto, o pai dele –, n�o fora um “bom alem�o”, porque nunca acreditara no Reich e n�o queria a guerra. Indignado pelo abandono materno, Wolfang lhe indaga: “Por que n�o nos afogou como cachorrinhos?”. Lac�nica e fria, ela retruca: “N�o afogamos crian�as arianas”. Para parcelas daquela sociedade, a ideologia nazista seguia inabal�vel, apesar de todo o processo de desnazifica��o, que nas escolas apresentava o genoc�dio promovido por Hitler e do rebatismo for�ado de in�meros “Adolfs” em “Rudolphs”, entre outros nomes. 

Sob a �gide da Guerra Fria, em 1961, ano em que foi erguido o Muro de Berlim, a perspectiva da “superioridade ariana” seria substitu�da pela narrativa de “superioridade” dos alem�es ocidentais em rela��o aos orientais. Em di�logo entre Wolfang e Heidi, antiga namorada de inf�ncia, ouve dela a manifesta��o de desprezo pelos alem�es orientais: “N�o quero chocar ningu�m, mas � preciso ser realista. Se n�o nos protegermos, como voc�s fazem na �frica do Sul, desapareceremos. Sem um muro, n�s ser�amos invadidos”. Heidi explica o seu argumento: as pessoas do Leste s�o, segundo ela, “pregui�osas, despidas de senso de humor”. Wolfgang n�o contesta Heidi. Por isso � repreendido pela esposa, Frances, ela pr�pria mesti�a e v�tima do apartheid. Wolfang reflete: “Ela fica sem ar n�o somente porque o apartheid a alcan�a onde ela jamais acreditou encontr�-lo, mas porque, apesar do desprezo demonstrado por Heidi, eu continuo a escut�-la, enlevado. Eu mesmo estou chocado. Mas h� pessoas que voc� ama incondicionalmente. As que s�o do seu sangue. As que s�o da sua inf�ncia. N�o rompemos com o nosso sangue. E nossa inf�ncia, n�o a deixamos, jamais. Porque, no meio daquilo que te desloca, do que te substitui, ela � tudo o que faz com que voc� se mantenha no mesmo lugar”. 



Falso moralismo


Wolfang e B�rbara nasceram em 18 de julho de 1940, em Bremen, na Alemanha, pouco menos de um ano antes de Adolf Hitler romper com o pacto germano-sovi�tico e dar in�cio � opera��o Barbarossa, de invas�o � Uni�o Sovi�tica, que mobilizou, em princ�pio, 3,6 milh�es de soldados alem�es, abrindo um dos flancos que levaria � derrota do nazista, no teatro de opera��o mais violento da Segunda Guerra Mundial. Largados pelo futuro marido da m�e, Ludwig Mahler, num orfanato da cidade de Lahn, dali partiram, ap�s a “sele��o”, para a Cidade do Cabo, onde foram adotados por afric�neres calvinistas, de ascend�ncia francesa. “O cais est� cheio de gente, pais, estivadores, curiosos. Nossa chegada � um acontecimento. Motivo de falat�rio”, relembra Wolfang em seu di�logo mental � irm�, B�rbara. Ele prossegue recordando-se de como foram apresentados � m�e adotiva, Mich�le, e ao pai, Lothar: “Eles s�o alem�es. Sim, senhora, todos �rf�os. Protestantes (...) Nenhuma gota de sangue judeu, de sangue polon�s, russo ou ingl�s (...) Est�o cansados, mas n�o bonitos! Passaram por testes muito dif�ceis”. 

As crian�as est�o maravilhadas com a paisagem da fazenda onde passariam a viver, quando ali entram pela primeira vez. Observam os empregados pretos, entre os quais crian�as, sem compreender por que todos trazem uma estrela branca marcada na testa. Gra�a, que cuida da casa e foi bab� de Mich�le, filha de Jacob, carrega o mesmo sinal, mas tem verdadeira devo��o pelo senhorio, e parece considerar natural que o seu filho, Thando, uma crian�a de aproximadamente 10 anos, apanhe dos patr�es como puni��o pelo trabalho n�o feito e receba, como pagamento, garrafas de vinho, que o tornam alco�latra na inf�ncia. Naquela fazenda, o pagamento � a moradia, o direito a lavar a pr�pria roupa e as garrafas de vinho, em “agradecimento” pela for�a de trabalho agr�cola n�o remunerada em esp�cie. Se Lothar, pai adotivo dos g�meos, se encanta por B�rbara, – de quem abusaria sexualmente mais tarde –, Jacob, o patriarca, pai de Mich�le, s� tem olhos para o neto. Como Mich�le ainda n�o tivera filhos, ele anuncia Wolfang como herdeiro e representante da s�tima gera��o da fazenda familiar, batizada com o nome de seu fundador, Th�ophile Terre’Blanche, pastor do Poitou, 1688. 

Jacob Terre’Blanche cultiva os 22 hectares com uvas muscat, sauvignon e cabernet, para a produ��o de vinho e aguardente. Ali tamb�m se plantam frutas, criam-se avestruzes para consumo. A sua fam�lia de calvinistas franceses foi atra�da pela coloniza��o protestante holandesa, que se segue 150 anos depois da descoberta, por navegadores portugueses, da rota mar�tima do Cabo para as �ndias Orientais. Ao longo dos s�culos 17 e 18, acorreram � Cidade do Cabo calvinistas provenientes, sobretudo, dos Pa�ses Baixos, mas tamb�m da B�lgica, Alemanha, Esc�cia e Fran�a. Os protestantes de origem europeia n�o inglesa constituem a base da gera��o de afric�neres – tamb�m chamados bo�res –, em forma��o na �frica do Sul, que v�o se conflitar com o dom�nio ingl�s a partir de 1795, quando estes dominam a Cidade do Cabo e abolem a escravid�o, prejudicial aos interesses comerciais brit�nicos. 

A estrutura de domina��o da coloniza��o europeia na �frica do Sul sobre as popula��es aut�ctones, destitu�das de suas terras e, em muitos casos, escravizadas, � o substrato sobre o qual se alimenta e se institucionaliza o apartheid, em 1948, a partir da ascens�o da extrema-direita. Reverberava entre brancos daquela sociedade a ideia de que as popula��es originais iriam, um dia, se rebelar e aniquilar afric�neres. Jacob doutrina o neto Wolfang: “O apartheid vai nos proteger do suic�dio nacional. Refletimos bastante antes de coloc�-lo em pr�tica (...) Sem isso – diz ele – um dia v�o nos matar a todos”. Ele me lan�a um sorriso e acrescenta que eu, seu neto, “vou impedir o suic�dio nacional: ‘Sou uma sentinela, eu tamb�m’”. Mas Wolfang n�o apenas refuta a ideologia, como mais tarde se casaria duas vezes com mulheres n�o brancas, com as quais teve duas filhas. 

A narrativa da supremacia branca sobre pretos se respalda na ideologia protestante e em sua interpreta��o b�blica. Em sala de aula, Mich�le recorda aos alunos brancos da escola onde leciona a hist�ria de Davi, o rei “ruivo” que descende diretamente de Ad�o, atrav�s de uma linhagem que tamb�m inclui No�. “Somos o povo Dele – ela nos assegura com emo��o (...)– Pois, no fundo, pertencemos todos � mesma fam�lia, essa fam�lia que os ingleses torturaram e fizeram passar fome, essa fam�lia que vive sob o risco de desaparecer e ser substitu�da pelos negros, mas que descende do rei Davi, em linha direta!.” A mesma ret�rica � repisada nos cultos das igrejas: o pastor proclama que “Deus elegeu nosso povo!”. Revisa toda a hist�ria dos afric�neres, “um povo forte, mas fr�gil, que o mundo inteiro pode bem invejar. Ele tem provas. Mas o verdadeiro crente n�o precisa de provas, porque tem f�”.


Labirinto de viol�ncias 


Para al�m do apartheid, o romance percorre muitas camadas de um labirinto de viol�ncias praticadas sob o moralismo b�blico, anunciado por pastores e professores b�eres, ide�logos do segregacionismo. Nas fam�lias, a mulher � permanentemente reprimida e condenada a um papel secund�rio, de obedi�ncia e servi�os ao homem e, tristemente, como no caso de Mich�le, uma pedagoga, incorpora e reproduz tal ideologia. 

H� viol�ncias de professores contra crian�as, em pr�ticas abusivas e de humilha��o em sala de aula; de m�es contra filhos, em agress�es psicol�gicas e em puni��es f�sicas desproporcionais a “ofensas” question�veis. E sob o moralismo religioso, se esconde, entre os segredos das fam�lias, Lothar, que, al�m de abusar sexualmente da filha adotiva, B�rbara, mant�m romance com a esposa do pastor que prega o “Davi ruivo”. Mich�le, esposa tra�da, desqualificada pelo pai, Jacob, r�i os dedos em ansiedade permanente. Fruto de um caso extraconjugal de sua m�e, quando Mich�le enfim consegue engravidar procura esconder os cabelos crespos do filho, “denunciado” pelo pr�prio Jacob, que v�, no neto, a infidelidade da esposa, morta ao dar � luz Mich�le.

Quando avan�a, armado, sobre a fazenda proven�al do Cabo Th�ophile Terre’Blanche, pastor do Poitou, 1688, Samora quer vingan�a. Pelas injusti�as cometidas por aquela fam�lia contra o pai, Thanon; pela av�, Gra�a, de vida dedicada �quela servid�o. Ambos mortos. Na testa, a mesma cicatriz branca em forma de estrela; nas costas, um fuzil bate contra os seus rins; Samora anota o centen�rio de Mandela e pensa, beijando a cruz que um dia servira de pendente ao pai: “Papai e Gra�a n�o devem lamentar estar mortos. Porque nada mudou, n�o. E nada mudar� jamais. Os negros n�o est�o em casa aqui. A casa deles n�o fica em lugar nenhum”. � assim que Samora vai � forra. Mira num sistema segregacionista que n�o se extinguiu com o fim do apartheid, e que perpetuou o dom�nio colonizador europeu sobre a �frica, ap�s expropriar os povos originais da terra e escraviz�-los. Samora acerta a cabe�a Wolfang, amigo de seu pai, um homem atormentado pela “culpa” de ter vivido o nazismo e o apartheid, ainda que sem jamais apoi�-los. 
Ao reconstituir sua hist�ria, Wolfang se despede de B�rbara procurando dar sentido a tudo o que viveram: “Tenho a impress�o de dormir. Mas n�o consigo acordar. Barbie? Voc� tamb�m est� dormindo?”
 

“Os �rf�os”

  • De Bessora
  • Tradu��o de Adriana Lisboa
  • Relic�rio
  • 244 p�ginas
  • R$ 62,90

 

“Parece que a hist�ria s� entra na mem�ria coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”

Entrevista | Bessora

 

Como se inspirou para o romance “Os �rf�os”? Os personagens s�o reais?

Assisti a um document�rio que se chama “Du sang blanc pour l’Afrique du Sud” (“Sangue branco para a �frica do Sul”). Foi produzido por R�gine Dura e data de 2008. Peter Ammermann, � �poca com 68 anos, e Werner Schellack, com 62, deram testemunho sobre a sua infeliz ado��o na �frica do Sul, em 1948. Tinham, respectivamente, 2 e 8 anos. 

 

Fiquei impressionada com o testemunho de Peter e decidi escrever um romance sobre a culpa dessas “crian�as”, mas tamb�m sobre a sua resili�ncia. Carregam uma dupla culpa: por terem sido um emblema do nazismo e do apartheid. Mas a �frica do Sul � agora tamb�m o lugar da sua “resili�ncia”. Fui � �frica do Sul � procura de Peter, em 2018, exatamente 70 anos ap�s a sua ado��o (que bela coincid�ncia). Werner, infelizmente, falecera algum tempo antes. Encontrei Peter depois de uma r�pida apura��o. Ele e a sua esposa, Rabia, me receberam de bra�os abertos. Contei-lhes sobre meu projeto de romance, baseado em sua hist�ria, e nas hist�rias das 83 crian�as envolvidas nesse projeto pol�tico e ideol�gico, em 1948. As personagens de Barbara e Wolf de “Os �rf�os” s�o, portanto, fict�cios, mas a jornada deles � inspirada na de Peter, Werner e das outras crian�as da �poca. Escolhi a fic��o porque me parece que a hist�ria s� entra na mem�ria coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela. No entanto, o menino na capa do livro � de fato Peter, com a sua irm� Birgit, em 8 de setembro de 1948, quando eles chegaram � Cidade do Cabo.

 

Como, em sua avalia��o, a viol�ncia da coloniza��o europeia na �frica criou as condi��es para a instaura��o do apartheid em 1948?

As condi��es de viol�ncia est�o postas por uma conjun��o de fatores: primeiro, a coloniza��o inglesa, e tamb�m a autarquia das popula��es afric�neres, que se sentem em perigo por parte das popula��es n�o brancas, mas tamb�m se sentem amea�adas pelos ingleses. S�o os ingleses que de fato reprimem violentamente os africanos e afric�neres. H� tamb�m a viol�ncia ligada a uma forma de fundamentalismo religioso, protestante: a “B�blia” serve de legitima��o para a viol�ncia e o separatismo. A popula��o afric�ner tamb�m se sustenta na “B�blia” para se designar como um povo escolhido. A “B�blia” ainda serve de pretexto para a imposi��o de modelos morais, que permeiam as leis e moldam as fam�lias: nas fam�lias (a de Peter, em particular), exerce-se uma viol�ncia mais ou menos expl�cita, como um eco do apartheid, mesmo que j� n�o seja uma viol�ncia racista. Mas estamos na presen�a de abuso infantil e difama��o das esposas. As fam�lias nacionalistas se atribuem o papel de encarnar a perfei��o b�blica. Mas como pessoa alguma faz jus a tal ideal, da�, as viol�ncias... No que diz respeito ao apartheid (que tamb�m reprime a homossexualidade), o que foi implantado em 1948 apenas aperfei�oou um certo n�mero de leis que j� existiam � �poca. Assim, popula��es negras, mesti�as ou ind�genas j� haviam sido expropriadas em 1913. O apartheid, implantado em 1948, foi obra do Partido Nacional, grande vencedor das elei��es daquele ano. Este �, sem d�vida, o arsenal jur�dico, dentro de seus prop�sitos (de manuten��o de uma supremacia branca, baseada numa r�gida hierarquia de castas raciais, em que a cor da pele define as chances de acesso aos direitos civis e ao poder), mais bem-sucedido at� hoje. Seria ainda aperfei�oado por muitos anos... 

 

O apartlheid � apresentado em sua obra como “primo-irm�o” do nazismo. Como classificaria o racismo, ainda t�o atual e presente em intensidades distintas em diferentes pa�ses do mundo, dentro desta �rvore genal�gica?

As crian�as foram adotadas na �frica do Sul por iniciativa de uma “associa��o beneficente”. Antissemita e anti-inglesa, essa associa��o simpatizava com os nazistas e lamentava a derrota de Hitler. Werner Schellack, um dos filhos adotivos, dedicou grande parte de sua vida a esse assunto. Dele extraiu uma tese de doutorado, publicada em 1988. Infelizmente, sua tese n�o est� dispon�vel e nunca foi traduzida! O envio de crian�as “arianas” para a �frica do Sul – deveriam ser 10 mil – reiterou o projeto “purificador” realizado pelos nazistas: tratava-se de “purificar” o sangue dos afric�neres e de torn�-los, a longo prazo, a maioria da popula��o. O racismo � intr�nseco a essa ambi��o: alega-se que as ra�as existam biol�gica, fisiologicamente, procura-se argumentar que sejam puras, e que devam ser “preservadas”, imperme�veis.

 

Em diversos pa�ses, os movimentos pol�ticos de extrema-direita retomam as agendas neofascistas. Como explicar tal fato, apesar das li��es hist�ricas de barbaridades cometidas por esses regimes?

Parece que a hist�ria � um c�rculo... Continuamos repetindo, sem cessar, os mesmos erros... Talvez porque nos esquecemos. Mas esquecer tamb�m � necess�rio para a cura. Ent�o, o paradoxo... Acredito tamb�m que � dif�cil medir a gravidade do que n�o vivemos: o sofrimento dos outros nem sempre nos � acess�vel. �s vezes nos falta empatia. Nesse sentido, as artes t�m o poder de desencadear e promover a empatia. Uma pintura, um filme, uma can��o, um romance permitem-nos viver o que n�o vivemos, ser o que n�o conhecemos. � uma experi�ncia formid�vel.

 

Como as tem�ticas abordadas em “Os �rf�os” dialogam com o conjunto de sua obra?

Cada novo romance constitui uma nova partida, um novo come�o. Inicio sempre com a impress�o vertiginosa de nada saber. Mas sem d�vida tenho neste meu “trabalho” os temas favoritos. Gosto de pessoas comuns, que s�o arrastadas, volunt�ria ou involuntariamente, para vidas extraordin�rias. E costumo contar, creio eu, de jornadas de emancipa��o, individuais ou coletivas.  

 
“Parece que a hist�ria s� entra na mem�ria coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”

Cada novo romance constitui uma nova partida, um novo come�o. Inicio sempre com a impress�o vertiginosa de nada saber. Mas sem d�vida tenho neste meu “trabalho” os temas favoritos. Gosto de pessoas comuns, que s�o arrastadas, volunt�ria ou involuntariamente, para vidas extraordin�rias. E costumo contar, creio eu, de jornadas de emancipa��o, individuais ou coletivas.  

Trecho 

(De “Os �rf�os”, de Bessora) 


“L� fora, ele avan�a. Sua testa est� marcada com uma cicatriz branca em forma de estrela. Um fuzil pendurado nas costas bate contra seus rins. Samora caminha com passos leves em dire��o � fazenda proven�al do Cabo, Terre’Blanche, o pastor do Poitou chamado Th�ophile, que, em 1693, louvava a Deus em seu di�rio �ntimo por t�-lo levado at� os desertos da �frica, onde havia passado por provas muito dif�ceis. Mas Davi e os outros santos homens de Deus n�o compuseram a maior parte dos seus c�nticos no deserto, e nas maiores agonias? 

Samora avan�a. Em alguns momentos, beija a cruz que servia de pendente ao seu pai. Murmura por tr�s de sua barba. Mandela festeja seus cem anos. Mas papai e Gra�a n�o devem lamentar estar mortos. Porque nada mudou, n�o. E nada mudar� jamais. Os negros n�o est�o em casa aqui. A casa deles n�o fica em lugar nenhum. (...)

L� fora, ele se aproxima. O pendente de Thando colado � boca, Samora pede perd�o ao seu pai e � sua av� Gra�a. N�o p�de proteg�-los, n�o. N�o foi capaz de salv�-los. Perd�o. Promete honr�-los, antes de partir por sua vez. Justi�a. Vai fazer justi�a. Vai matar esse homem, o herdeiro de Terre’Blanche. Um sorriso de anjo se pinta em seus l�bios, o mesmo de Mich�le. Em sua janela, ela compreendeu que ele n�o veio busc�-la. Vendo-o se aproximar da desgra�ada fazenda proven�al do Cabo, ela se d� conta de que, mesmo contra sua vontade, ele veio vingar ela tamb�m. Em seguida, ele ser� eliminado por sua vez. Um a menos.  

(...)

– De uma vez por todas, papai. O nazismo n�o � voc�. O apartheid n�o � voc�. Voc� n�o � culp�vel. 

– N�o � culpado – corrige Marianne. 

Eu escorro por toda parte, l�grimas, muco, � nojento. Louise me enxuga delicadamente o rosto com seus peda�os de papel mastigados, colando de saliva. 

Em seu carro, Wilhelm escuta o r�dio: Abra�ar a diversidade oferece vantagens pr�ticas!, diz Obama. 

E de repente um tiro.”
 
 
 


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