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Estado de Minas PENSAR

Cr�nicas de Vinicius de Moraes s�o reunidas em livro

Cinema, patriotismo, Graciliano, Rio, Minas e Bahia aparecem nos envolventes textos do Poetinha publicadas em jornais e revistas


03/02/2023 04:00 - atualizado 03/02/2023 02:29

Arte de Vinicius de Moraes
(foto: Quinho)
Jo�o Pombo Barile

ESPECIAL PARA O EM

 

O mestre Antonio Candido tem a melhor defini��o que conhe�o sobre a obra de Vinicius de Moraes. Escreve o autor de “Forma��o da literatura brasileira”: “Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e sentir melhor, e eles n�o dependem das modas nem das escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balan�o no que Vinicius de Moraes ensinou � poesia brasileira, � capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribu�do muito, o que fez de novo entrou na circula��o, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos”. 

 

Lembrei-me do par�grafo de Candido durante a leitura de “Cr�nicas in�ditas”. Com organiza��o de Eucana� Ferraz e Eduardo Coelho  (que, infelizmente, n�o tiveram disponibilidade para conceder entrevista ao Pensar sobre o trabalho realizado), o volume re�ne 172 textos em prosa que Vinicius publicou na imprensa entre as d�cadas de 1940 e 1970 e que permaneciam in�ditos em livro. O livro faz pensar se a contribui��o de Vinicius � prosa brasileira n�o � ainda meio subestimada. 

 

Se � bem conhecido o preconceito que muitos poetas da �poca tinham � convers�o de Vinicius � m�sica popular, tamb�m n�o se pode dizer que o cronista Vinicius tenha tido em vida o reconhecimento necess�rio. Fico imaginando se a amizade com alguns dos maiores nomes da cr�nica brasileira (Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antonio Maria, Fernando Sabino) n�o tenha inibido o poeta. E feito com que ele n�o se interessasse em reunir sua produ��o em prosa de forma sistem�tica. Afinal, seu primeiro livro de cr�nicas s� apareceria tarde, em 1962, com a publica��o de “Para viver um grande amor”. Ainda assim, mesclado com poemas. Em vida, o poeta carioca s� organizaria mais um volume: “Para uma menina com uma flor”, publicado em 1966. 

 

Espalhada em jornais e revistas, grande parte da deliciosa prosa de Vinicius s� come�aria a ganhar formato de livro a partir de 1998, com a edi��o das “Obras completas” pela Nova Aguilar. Reedi��o do volume feito por Afr�nio Coutinho, em 1968, com a ajuda do pr�prio Vinicius, a edi��o dos anos 1990 foi organizada por Alexei Bueno e ganhou cr�nicas de Vinicius publicadas no Jornal do Brasil.  

 

"De resto no Brasil o Norte � mais chique do que o Sul, em que pese aos sulistas, entre os quais me coloco. O que o Sul - Sul esticando um pouquinho - tem de muito chique � Minas Gerais, positivamente o estado mais chique do Brasil. Minas tem cidades muito chiques como Ouro Preto e Sabar� (esta mais do que aquela), mas ambas perdem para Olinda, a cidade mais chique da na��o."

Vinicius de Moraes na cr�nica "O saco e o chique (III e �ltimo)", publicada em 10/12/1952 no jornal carioca �ltima Hora

 

Mas seria mesmo com a editora paulista Companhia das Letras que a obra, do mais carioca dos poetas, finalmente ganharia edi��es definitivas. E muitos in�ditos seriam publicados. Nomes como Carlos Augusto Calil, Ruy Castro, Jos� Castelo e Ana Miranda participaram desta empreitada. 

 

Nos �ltimos anos, Eucana� Ferraz vem fazendo um excelente trabalho, cuidando da edi��o dos livros j� conhecidos e reunindo textos do poeta que estavam perdidos em v�rios peri�dicos. Como estes de “Cr�nicas in�ditas”. 

 

No volume que chega agora �s livrarias, podemos constatar que Vinicius n�o foi genial apenas na poesia. E conhecer uma outra face do artista: a de profundo conhecedor da prosa modernista. Caso, por exemplo, da cr�nica “Jo�o Alphonsus”.

 

Escrita em 1944, ano da morte do grande contista mineiro, no texto Vinicius revela a d�vida que tinha com dois mineiros na sua forma��o: Jo�o Alphonsus, na prosa, e Murilo Mendes, na poesia.  Um dos mais importantes poetas do modernismo brasileiro, estava antenado com o melhor da literatura de sua �poca. Leia trecho abaixo.

 

“Lembrei-me ent�o da ‘Galinha cega’, o primeiro conto que li, na �poca da minha inicia��o liter�ria. Que revela��o para mim essa hist�ria pungente, fria em sua imensa piedade, um pouco ir�nica, surda mas disposta a revelar todo o horror nela contido! Jo�o Alphonsus – do mesmo modo que Murilo Mendes o seria para a poesia – foi o primeiro prosador brasileiro em que descobri o moderno, essa coisa t�o dif�cil para o rapaz que se inicia � base de leituras acad�micas. Devo-lhe o meu eureca com rela��o �s formas novas. � curioso... Jo�o Alphonsus e Murilo Mendes: dois amigos mineiros, ambos homens de rara dignidade humana.” 

 

“Cr�nicas in�ditas” traz ainda textos sobre cinema e que n�o foram inclu�dos em “O cinema de meus olhos”, volume organizado em 2015 por Carlos Augusto Calil. Em “Z� Carioca”, Vinicius conta a origem do simp�tico papagaio criado por Walt Disney no in�cio dos anos 1940 e que teria sido inspirado em Jos� do Patroc�nio Oliveira, m�sico que tocou com Carmen Miranda nos EUA.

 

 

Graciliano e engajamento 

 

 

Outro ponto alto do livro � a cr�nica “Um abra�o a Graciliano”. Nela, Vinicius homenageia o grande escritor alagoano e escreve sobre um tema eterno: literatura engajada. De t�o atual, o texto parece ter sido escrito ontem. Em “A b�n��o, velho”, outra cr�nica sobre Graciliano, Vinicius revelou sua admira��o por “S�o Bernardo” e “Ang�stia” antes de confessar: “Trocava meus vinte anos de poesia pelo privil�gio de escrever um s� desses dois livros”.

 

Mas o que talvez torne o livro de uma contemporaneidade impressionante seja mesmo “O saco e o chique”.  Na cr�nica, publicada em 1952, Vinicius cria a divertida teoria do saco e do chique. E descreve um tipinho in�til, e infelizmente recorrente, da hist�ria brasileira: o falso patriota. 

 

“N�o h� nada mais chique que o amor � p�tria. Ali�s, o amor � um sentimento essencialmente chique, se n�o der para ficar muito sublime demais, como o amor materno ou o amor g�nero mulher-inspira��o. Mas tanto o amor � p�tria � chique como o patriotismo � saco. Amor febril no peito varonil pelo c�u de anil do nosso Brasil � de um saquismo a toda prova. (...) Sentimentos verde-amarelistas, grandiloquentes, ufanistas, acimadetudistas – s�o irremediavelmente sacos.”.

 

Publicado h� mais de meio s�culo, o texto faz lembrar a malta de terroristas que, fantasiados com a camisa amarela da CBF, sequestram o espa�o p�blico brasileiro h� meses. E que s� pararam, Deus sabe at� quando, depois de destruir os tr�s mais simb�licos pr�dios da Rep�blica.

 

 

 

“Cr�nicas in�ditas”

 

  • Vinicius de Moraes
  • Organiza��o de Eucana� Ferraz e Eduardo Coelho
  • Companhia das Letras
  • 412 p�ginas
  • R$ 154,90
  • E-book: R$ 49,90

 

 

 

“Cr�nica de Minas: a prociss�o de Sexta-Feira Santa em Ouro Preto”

 

Vinicius de Moraes

Publicado originalmente no “�ltima Hora”, em 5 de maio de 1952

 

 

Com algumas (l�mpadas) photofloods num total de 8 kW ligadas aos cabos da rua e a ajuda do eletricista da cidade, n�s acabamos por arrumar um ret�ngulo l�vido de luz bem no meio da rua Conde de Bobadela. Devemos parecer, para a multid�o de mo�as que se debru�am dos balc�es caprichosamente gradeados, um bando de insetos loucos, transportando fios, dispondo altos trip�s m�veis de ilumina��o que s� dever�o ser acesos como refor�o no momento de passar a prociss�o.

 

A velha rua, antiga Direita, onde nasceu Mar�lia de Dirceu, assume um aspecto fantasmag�rico assim iluminada. As nobres portas residenciais projetam melhor seus relevos e o desenho dos balc�es e postigos se enquadra no visor das c�meras com um capricho que fica al�m da nossa expectativa.

 

Um garoto, nossa sentinela avan�ada, vem nos avisar que j� houve a descida da cruz, na Matriz do Pilar. Por agora o cortejo f�nebre deve estar se esfor�ando pela ladeira de Randolfo Bretas acima, em demanda da rua Tiradentes. Arrumamos cuidadosamente a nossa tocaia, escolhendo os me- lhores pontos de filmagem, por vezes estendidos no ch�o de pedra, a estudar as tocaias, e olho dormindo na mira da Paillard.

 

� uma del�cia, isso. N�o h� nada melhor no mundo do que fazer cinema, sobretudo assim, quando se tem � m�o um grande assunto e h� que colh�-lo r�pido, no pouco espa�o film�vel � disposi��o. Essa parecia ser tamb�m a opini�o das sorridentes Mar�lias debru�adas sobre ricos chal�s pendentes dos balc�es e janelas, e mesmo de algumas amplas matronas em preto, a dignificar os sobrados valetudin�rios com a sua austeridade.

 

L� vem ele, mo�o!

 

Nosso estafeta, como um azougue, chega para nos dar toda a dica da prociss�o. Est� passando agora pela Casa dos Contos. Colocamo-nos em posi��o. Os trip�s s�o acesos. Photofloods de punho, m�veis, s�o distribu�dos enquanto se procura ordenar aquele aranzel de fios de modo a ningu�m trope�ar neles. E de s�bito, na boca escura da ladeira, surgem os primeiros c�rios galgando a curva da rua.

 

Roda, pessoal!

 

O contador da c�mera come�a a dar o estalinho caracter�stico, a cada trinta cent�metros de filme, na propor��o de dezesseis quadros por segundo.

 

Estamos rodando com filme ultrarr�pido, o que compensa a precariedade da nossa ilumina��o. Pois a verdade � que at� agora n�o nos foi poss�vel conseguir um gerador de eletricidade. Eu confesso que nunca vi coisa mais dif�cil que conseguir um gerador aqui por essas montanhas, apesar da boa vontade dos poderes oficiais.

 

Lentamente, de baixo, o cortejo f�nebre de Cristo cresce em nossa dire��o. A escalada � impressionante, com os c�rios a tremer no escuro da noite, entrecruzando luzes, e n�s a tomamos n�o s� de �ngulos baixos, ao r�s da rua, como do alto de dois sobrados, com aquiesc�ncia dos moradores curiosos daquilo tudo.

 

Uma multid�o de lanternas de papel, de cabo longo, ilumina a cara do povo que sobe em duas filas, em grandes massas de luz e sombra. � medida que no campo luminoso, por n�s preparado, os acompanhantes entram, os rostos de in�cio se franzem ofuscados, mas logo a gravidade da investidura recomp�e as express�es. Funcionamos agora com duas c�meras, a cinematogr�fica e a fotogr�fica, colhendo � passagem, com a poss�vel rapidez, aquelas fisionomias, penetradas de misticismo algumas, outras mero respeito, muitas inexpressivas: quase todas marcadas de nutri��o, pobreza, doen�a, supersti��o.  Muitas mulheres, algumas bem-vestidas, trazem os p�s descal�os. Os anjinhos surgem logo depois, de camisolas brilhantes de cetim branco ou azul — em geral as meninas brancas de azul e as pretinhas de branco. As mangas debruadas de arminho e os diademas franjados de medalhinhas de cigana dariam a todas um certo ar carnavalesco, n�o fosse pelas  asinhas brancas que carregam com indisfar��vel orgulho, em sua qualidade ser�fica provis�ria.

 

H� uma quantidade de crian�as de colo que dormem nos bra�os de seus ambulantes pais. Fotografamos um pouco desse absurdo, que a igreja n�o deveria encorajar e que n�o pode ser grato aos olhos de um Deus de bondade e de miseric�rdia. Mas um pai vimos, t�o gigantesco e de ar t�o bondoso, com uma criancinha t�o branca acordada e min�scula espetada nos seus bra�os, que dir-se-ia um S�o Crist�v�o atravessando o Menino Jesus atrav�s da corrente.

 

Estamos francamente atrapalhando a prociss�o, na nossa �nsia de colher o maior n�mero poss�vel de negativos. Quando se aproxima o p�lio f�nebre, ent�o, o pessoal positivamente se acaba de filmar e fotografar de todas as posi��es. O cerimonial � grave, misterioso, alarmante. V�m de in�cio dois estranhos arautos, a sacudir umas traves guarnecidas de argolinhas de ferro que produzem um curioso matraqueado. Logo atr�s passa deitada a Cruz, segura no p� por um homem e nos bra�os por dois meninos, e coberta por um manto roxo. Seguem-se novos anjinhos e uns poucos meninos vestidos de t�nicas vermelhas e um manto azul � grega sobre o ombro, a carregar umas escadinhas. N�o cheguei a saber o que representavam — talvez aqueles que praticaram a descida de Cristo da Cruz.

 

A chegada de Ver�nica � de grande teatralidade. Precede-a um profeta com uma barba branca de Papai Noel, uma coroa dourada na cabe�a e um alfanje a cuja ponta se prende uma longa fita vermelha que um anjinho vai segurando. Disseram-me tratar-se de Abra�o. Imediatamente ap�s, Ver�nica, a padroeira dos fot�grafos (a quem uma piada talvez um pouco desrespeitosa, mas des- pida de maldade, atribuiu o primeiro instant�neo), na figura de uma bela e p�lida europeia, traz nas m�os a toalha em que se imprimiu o semblante de Cristo em sangue. A figura � um pouco acad�mica para o nosso gosto, mas a Ver�nica exibe-a com uma desenvoltura que s� pode ter sido adquirida com muito ensaio. Ao entrar no campo de luz, e ao ver nosso aparato cinematogr�fico, a mo�a n�o teve d�vida: trepou num palanquezinho port�til e abriu o peito numas tantas litanias que podiam n�o ser as mais bem cantadas do mundo, mas que naquela ladeira iluminada dentro da noite – e sob a sugest�o de sua t�nica de cetim rosa e seu longo manto roxo – nos pareceram coisas de uma grave e antiga beleza.

 

Uma quantidade de ap�stolos de t�nicas brancas – talvez mais que os doze da regra – e um poder de centuri�es batendo com a maior energia os cabos de vassoura das lan�as no piso da rua v�m em seguida, antecipando o p�lio mortu�rio. E da� em diante eu pouco mais vi, porque um dos g�meos cinegrafistas grimpou por minhas costas acima, acomodou seus sessenta quilos nos meus ombros e p�s-se a filmar o Cristo no seu ardor f�nebre, sob o p�lio roxo — uma imagem de talha l�vida e dolorosa que eu pude entrever da minha for�ada posi��o de Atlas. Soube tamb�m que depois chegou a Madalena toda de preto e com negros cabelos longos at� os p�s, acompanhada de tr�s outras mulheres de preto com v�us de vi�va – provavelmente Marta e Maria, mas quem era a terceira mulher � coisa que at� agora me est� dando tratos � bola. A grande prociss�o de enterramento afinal passou toda, sempre ladeira acima, com uma linda Nossa Senhora num andor ao final de tudo. E l� se foi a  santa imagem a balancear pelo aclive escuro, acompanhando os despojos de seu amado Filho, seguido por uns poucos populares e uma bandinha executando de m�sica um “Queremos Deus” a que n�o faltava um certo ritmo de dobrado militar.

 

Por algum tempo ainda se ouviu na rua ac�stica o ru�do soturno dos centuri�es batendo os cabos de suas lan�as nas pedras do cal�amento, at� que tudo se apagou – ru�dos, l�mpadas e n�s mesmos, mortos de cansa�o. E eu juro que depois de tanta luz parecia que as trevas mesmo se tinham feito de verdade sobre a cidade de Ouro Preto. 

 


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