Especial para o EM
“Eu n�o invento a minha biografia, n�o me escondo, n�o crio mist�rios. Estou presente”, afirmou Elena Ferrante em entrevista de 2015, inclu�da em “Frantumaglia – Os caminhos de uma escritora”, livro de n�o fic��o publicado no Brasil dois anos depois. Ir�nico, em se tratando do rosto desconhecido de uma das escritoras mais c�lebres atualmente. Mas pura verdade. Ou verdade liter�ria, como gosta de sustentar a autora da s�rie “A amiga genial”, que h� pelo menos tr�s d�cadas escolheu o anonimato, mas n�o recusa a oportunidade de falar de seus processos criativos e refer�ncias de leitura. Sobre esses e outros temas, se faz presente.
Ferrante frui de intensa liberdade criativa ao n�o subir nos palcos, mas escolheu quem estava sobre um deles para ler seus escritos no final de 2021: no Teatro Arena del Sole, a atriz Manuela Mandracchia encarnou a escritora, em tr�s sess�es organizadas pelo Centro Internacional de Estudos Human�sticos Umberto Eco, da Universidade de Bolonha. Escritas a convite do diretor do Centro antes da pandemia, as confer�ncias resultaram no livro “As margens e o ditado – Sobre os prazeres de ler e escrever”, obra lan�ada no final de 2021 na It�lia e agora no Brasil pela Intr�nseca, com tradu��o de Marcello Lino. �s palestras se soma “A costela de Dante”, ensaio produzido para o encerramento do Congresso de Italianistas sobre Dante Alighieri, lido pela cr�tica liter�ria Tiziana de Rogatis em outra ocasi�o. Est�o dispon�veis na internet os v�deos das apresenta��es em italiano, um deleite suplementar para a legi�o de leitores e leitoras que consumiram mais de 16 milh�es de exemplares da obra ao redor do mundo. Ferrante est� l� inteira, em palavras.
As li��es
“As margens e o ditado” � leitura saborosa e oportunidade de acompanhar o pensamento da escritora italiana, que retoma a discuss�o sobre autoria, tradi��o liter�ria, emprego de elementos biogr�ficos e escolhas est�ticas. A primeira li��o, “A caneta e a pena”, traz as recorda��es da escola prim�ria, em um relato sobre o gesto de escrever como movimento limitado pelo caderno pautado, espa�o amea�ado pelo erro a cada vez que a aluna n�o se sujeitava ao fio vermelho das linhas verticais ou ao preto das linhas horizontais. O caderno infantil surge como importante imagem de transbordamento, trampolim para for�ar certos limites e ignorar regras aprendidas ao sair da jaula s�lida das p�ginas. Escreve-se, sustenta Ferrante, para conhecer esse estranho eu que est� do lado de fora das margens: “Quando escrevo, nem eu mesma sei quem sou”.
A autora da tetralogia napolitana aborda tamb�m o tema da autoria masculina, revelando que suas primeiras experi�ncias de leitura impactantes eram sempre escritas por homens, o que a levava a crer que escrever bem era escrever como um deles. Desde sempre, as mulheres conhecem de perto a ordem simb�lica masculina, considerando-a universal; j� o contr�rio n�o se efetua, afirma. A quest�o � retomada de modo contundente no terceiro (e brilhante) ensaio, “Hist�rias, eu”, leitura necess�ria para qualquer pessoa que ensina, escreve, l� ou produz pensamento cr�tico sobre literatura. No contexto contempor�neo em que cada vez mais a quest�o da autoria feminina reclama espa�o e leitores, Ferrante discute a presen�a de uma “l�ngua m�”, de palavras falsas herdadas, indagando de onde poder�amos extrair novas imagens. A escritora menciona o fato de, ao longo da vida, ter conhecido homens cultos que jamais leram Virginia Woolf, Jane Austen ou Natalia Ginzburg – s� liam outros homens. O esfor�o de escrita para as mulheres, nesse sentido, � imenso, e a despeito de muitas conquistas terem se efetivado, ainda h� muito por fazer. As mulheres n�o devem se conformar com a l�ngua que historicamente n�o lhes cedeu espa�o, devem unir for�ar, fundir talentos: “Nenhuma linha deve se perder ao vento”.
A voz dialetal
No segundo ensaio, “�gua-marinha”, a autora recupera outra mem�ria, a da m�o materna que carrega um anel de cor cambiante, dif�cil de descrever, assim como a voz dialetal da m�e. Indaga-se com que palavra seria poss�vel capturar esse tom de azul, de modo a defini-lo de forma precisa. Aparece ent�o a discuss�o sobre a dificuldade de contar o real – um espelho deformante existe entre a m�o que escreve e a suposta verdade diante de n�s, sustenta, abalando qualquer no��o purista sobre seu projeto liter�rio.
Ao confrontar a origem, Ferrante elabora interessante vis�o sobre a presen�a do napolitano em sua obra, revelando ter apagado ou traduzido para o italiano in�meras passagens de seus primeiros livros. L�ngua da inf�ncia, da viol�ncia e do desejo, o dialeto criaria um problema quase insol�vel: transpor a oralidade de seu l�xico e sintaxe para a escrita resultaria em artif�cio est�ril, subtraindo da l�ngua paix�o e efeito. Afirma ter trabalhado essa presen�a “como um riacho subterr�neo, uma cad�ncia dentro da l�ngua, uma perturba��o da escrita que irrompe de repente em poucas palavras, em geral obscenas”.
Curioso perceber semelhante for�a e ambiguidade nos livros de uma (prov�vel) contempor�nea sua: Annie Ernaux. Por diversas vezes em seus escritos de cunho autobiogr�fico, a autora francesa, ganhadora do Nobel de literatura de 2022, tematiza o impacto do dialeto normando irrompendo em meio ao franc�s padr�o. Tanto Ernaux (filha da classe oper�ria) quanto Ferrante se veem diante de um cruzamento de dois mundos e duas l�nguas, aquela provinciana e familiar, pertencente ao universo da oralidade e da varia��o dialetal; e uma outra da educa��o formal trazida pela escola, de uma realidade intelectual e burguesa inacess�vel aos respectivos pais. Tal dist�ncia cultural � elemento determinante na forma como as autoras, em suas obras, enxergam a l�ngua e a literatura como espa�os insepar�veis da quest�o de classe. Ambas afirmam se construir como intelectuais lutando com essa arma que muitas vezes traz culpa e vergonha, como fica expl�cito tanto nos depoimentos biogr�ficos de Ernaux e Ferrante, quanto na trajet�ria da personagem Len�, da s�rie napolitana. Ao tornar-se escritora, a coprotagonista de “A amiga genial” se v� diante da for�a que irradia do lugar de origem, mas o esfor�o de galgar degraus sociais, separando-se do per�metro sufocante do bairro, � gigantesco. Conclui ser imposs�vel se dissociar de tudo isso – ruas, vielas e becos sujos da localidade j� est�o do lado de dentro.
Tal aspecto tamb�m aflora no mais recente romance da autora, “A vida mentirosa dos adultos” (2020), em que a jovem protagonista Giovanna se v� atra�da pelo universo da tia paterna – pertencente a um mundo distante do seu e falante de uma l�ngua considerada vulgar, ela em tudo se diferencia do pai e da m�e, ambos professores. Nesse confronto, o velho e bom sentimento inc�modo se instala. Em uma vis�o de conjunto, a prosa ficcional de Ferrante gira em torno de mulheres desajustadas em um mundo masculino: m�es desnaturadas, filhas perdidas, amigas fi�is e traidoras, tias lascivas, esposas desaparecidas. “Na verdade, muito do que elas perdem lhes foi tirado, arrancado ou extorquido por seus parceiros masculinos”, sustenta Eliane Robert Moraes sobre as personagens femininas da autora. Desse modo, o eu feminino que escreve se nutre da intimidade, mas nunca est� desvinculado de uma moldura hist�rica.
Como Ferrante sustenta, as mulheres sempre escreveram para governar um mal-estar que se instalava. Nesse contexto, prop�e pensar os limites da pr�pria linguagem; aquilo que deve, como no caderno infantil, permanecer dentro da margem, mas que de repente transborda e desmargina – palavra incontorn�vel desde “A amiga genial”, alusiva a um estado de perda de si e de dissolu��o. O termo pode se vincular � no��o trazida pela “frantumaglia”, do l�xico napolitano materno, empregado toda vez que a m�e se referia a uma sensa��o de desordem interna. Como dar nome a tudo isso? A partir do caos instaurado por entre margens e bordas, pulsando no lado de dentro de cada sujeito, a escritora nos joga dentro de uma paisagem sedutora, como a sereia perversa que define o esp�rito de sua N�poles natal. Nela mergulhamos sem medo, ansiando pelo pr�ximo canto.
*Professora e pesquisadora de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense, Stefania Chiarelli publicou o volume “Partilhar a l�ngua – Leituras do contempor�neo” (7Letras, 2022)
TRECHO
( de “As margens e o ditado – Sobre os prazeres de ler e escrever”)
O desafio – eu pensava e penso – � aprender a usar com liberdade a jaula na qual estamos presas. � uma contradi��o dolorosa. Como � poss�vel, seja ela um s�lido g�nero liter�rio, sejam h�bitos expressivos consolidados, seja at� mesmo a pr�pria l�ngua, o dialeto? Uma resposta poss�vel me parecia ser a de Gertrude Stein: adaptando-se, e ao mesmo tempo, deformando (...) Enfim, habitar as formas e depois deformar tudo o que n�o nos cont�m por inteiro, que n�o pode de modo algum nos conter.
Precisamos aceitar o fato de que nenhuma palavra � realmente nossa. Precisamos abrir m�o da ideia de que escrever � libertar de forma milagrosa a voz pr�pria, uma tonalidade pr�pria: para mim isso � um jeito displicente de falar da escrita. Pelo contr�rio, escrever �, a cada vez, entrar em um cemit�rio infinito em que cada tumba espera para ser profanada. Escrever � acomodar-se em tudo o que j� foi escrito (....) Na escrita, tudo tem uma longa hist�ria atr�s de si. At� a minha insurrei��o, a minha desmargina��o, a minha �nsia, faz parte de um �mpeto que me precede e vai al�m de mim.
“As margens e o ditado – sobre os prazeres de ler e escrever”
- Elena Ferrante
- Tradu��o de Marcello Lino
- Intr�nseca
- 128 p�ginas
- R$ 39,90