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Estado de Minas PENSAR

Leitura de H�l�ne Cixous para a obra de Clarice Lispector chega em vers�o integral ao Brasil

A fulgurante e contundente avalia��o da autora franc�fona foi uma das respons�veis pela populariza��o da obra de Lispector no exterior


10/02/2023 04:00 - atualizado 09/02/2023 23:45

Clarice Lispector
Clarice, na vis�o de H�l�ne Cixous, "� o nome de uma mulher capaz de convocar a vida atrav�s de todos os seus nomes quentes e frescos" (foto: Quinho)
Giovana Proen�a*
Especial para o EM
 
Em 1978, H�l�ne Cixous tem contato com a voz de Clarice Lispector. Cerca de uma d�cada depois, em 1989, a experi�ncia transformadora, resultado do encontro com a literatura da escritora brasileira, � transfigurada em palavras. O texto, profundamente imerso nos mist�rios da escrita de Lispector, recebeu o t�tulo de “A hora de Clarice”. A leitura de Cixous foi uma das respons�veis pela populariza��o da obra de Lispector no exterior. 

A autora franc�fona, nascida na Arg�lia, escreve que a voz de Clarice veio de muito longe, apesar da barreira da l�ngua, uma vez que a brasileira escreve em um idioma desconhecido para ela. Nesse sentido, em que fronteiras estabelecidas s�o ultrapassadas, ou ao menos fissuradas, Cixous nos oferece um escrito em que os g�neros liter�rios est�o suspensos no limiar. 

A primeira parte, “Viver a laranja”, � uma profunda reflex�o sobre a escrita feminina e o poder da voz de Clarice Lispector, beirando o tratado filos�fico e a prosa po�tica. O segundo excerto (“� luz de uma ma��”), de apenas quatro p�ginas, � um interl�dio entre as outras duas partes do livro. Na terceira se��o – “A autora na verdade” – temos o flerte com aspectos da cr�tica liter�ria, o que j� se insinua no fragmento anterior. Nesta �ltima, Cixous investiga uma de suas obsess�es: o �ltimo texto de um grande escritor. Assim, ela analisa “A hora da estrela”, um dos mais c�lebres romances de Lispector. 

Mas H�l�ne Cixous n�o recai no academicismo. Nenhum aspecto de “A hora de Clarice Lispector” nos anuncia que se trata de um texto com o rigor da teoria liter�ria. O livro transita entre o ensaio e a prosa po�tica, com a apropria��o de Cixous do estilo de Clarice, adepta do fluxo de consci�ncia. Contudo, o ensaio n�o apenas caiu no gosto da Academia, como tamb�m se tornou um dos mais c�lebres estudos da obra de Clarice Lispector. Os diferentes prismas do texto s�o frutos da multiplicidade da autora. Cixous � ensa�sta, cr�tica liter�ria, poeta e dramaturga, com cerca de 60 t�tulos publicados. 


Duas mulheres no texto 


Em “A hora de Clarice Lispector”, ela n�o teme se colocar no texto, em um ato de fus�o com o seu objeto. A pr�pria no��o de sujeito � turva, temos duas mulheres no centro: Clarice e Cixous. A forma do escrito � um exemplo da teoria da pensadora franc�fona. Para Cixous, � urgente que as autoras mulheres afirmem a sua presen�a no texto, o que ela defende em seu mais famoso ensaio, “O riso da Medusa”, refer�ncia dos estudos feministas. O livro foi publicado no Brasil pela Bazar do Tempo em 2022. 

O olhar de Cixous sobre Clarice Lispector � colocado � luz neste jogo entre proximidade e dist�ncia. A pr�pria escrita pode ser um ato de distanciamento, como reconhece Cixous na abertura do livro: “E h� aqueles de quem n�o quero falar, de quem n�o quero me afastar falando; n�o quero falar com palavras que se afastam das coisas”. Mas a voz da ensa�sta francesa se aproxima, vinculando-se intimamente a de Lispector. 

Para ela, a escritora brasileira � apenas Clarice: a mulher de olhar atl�tico. Em resposta aos anseios da introdu��o, Cixous termina o texto com a conclus�o de que “�s vezes a dist�ncia certa est� no distanciamento extremo. �s vezes, � na extrema proximidade que ela respira”. As contundentes palavras finais do ensaio sintetizam a sua pr�pria t�nica, na busca pela dist�ncia ideal do objeto.

A partir da imagem da laranja, H�l�ne Cixous medita sobre a escrita feminina e o que seria um lugar-comum para as mulheres que se arriscam a escrever, lembrando que a voz de Clarice devolveu a ela este �mpeto. No texto, n�o faltam men��es – �s vezes diretas, outras insinuadas – ao imagin�rio lispectoriano: o ovo, a galinha, a rosa, a ma��. Assim como a brasileira, Cixous transcende o significado imediato dos objetos, rumo � reflex�o. 

Na vis�o da pensadora franc�fona, “Clarice nos desvenda; nos abre as janelas”. Por isso, ela a considera uma mulher perigosa. O perigo reside nesta abertura do olhar para o �nfimo, que guarda a possibilidade da epifania, da fratura do equil�brio, da desordem cotidiana. Cixous alerta: “Na escola de Clarice, podemos, mesmo que pare�a muito tarde neste mundo e muito escuro para que o olhar fa�a sentido, ter aulas de como ver aquilo que est� vivo; aprender a ver demasiadamente perto; a prever. � t�o claro aos olhos de Clarice”. 

Para delinear os contornos da literatura clariceana, H�l�ne Cixous invoca nomes como Franz Kafka, Rainer Maria Rilke, Arthur Rimbaud e Martin Heideg- ger. Mas a todos eles falta um dos pontos decisivos de Clarice: o ser mulher, a maternidade; ou, ainda, a combina��o entre a brasilidade, o juda�smo e o nascimento na Ucr�nia. A experi�ncia de Lispector vem, para Cixous, de todas as viv�ncias que a constitu�ram, conferindo-lhe um olhar �nico. 

“A hora de Clarice Lispector” � um vislumbre do fulgurante rastro da escritora brasileira. Mas � tamb�m a contundente leitura de uma das grandes pensadoras contempor�neas. H�l�ne Cixous n�o teme buscar a dist�ncia exata para escrever sobre Clarice. Este lugar �, muitas vezes, dentro do texto. � nessa fus�o �ntima que est� a luz de uma obra inclassific�vel. Temos no centro do escrito duas mulheres singulares. A pensadora franc�fona escreve: “Clarice � o nome de uma mulher capaz de convocar a vida atrav�s de todos os seus nomes quentes e frescos. E a vida vem. Ela diz: eu sou. E no instante Clarice �”. Tamanha constata��o s� poderia vir de algu�m que, ao contemplar a obra de Clarice Lispector, teve a sua vis�o. 


*Giovana Proen�a � pesquisadora na �rea de teoria liter�ria na Universidade de S�o Paulo (USP) 
 

Trecho

(de “A hora de Clarice Lispector”, de H�l�ne Cixous, tradu��o de M�rcia Bechara)

“Eu n�o quero falar sobre Clarice. N�o quero falar sobre ela, quero ouvi-la escrever, quero ouvir a m�sica tensa, �mida e silenciosa de seus passos de escrita, com meus nervos, quero ouvir seus pensamentos subindo e descendo a es- cada de escrita com os degraus dos anjos antigos, com meus ouvidos de p�lpebras abaixadas, quero irradiar Clarice, a arte-clareza para meus amigos, preciso exalar seu perfume, a �ris, para irradiar seu olhar-perfume. Seu olhar que n�o olha, que d� sua luminosidade � m�sica das coisas: cliris.” 
 

“A hora de Clarice Lispector”


  • H�l�ne Cixous
  • Tradu��o de M�rcia Bechara
  • N�s Editora
  • 144 p�ginas
  • R$ 60 


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