
Wilker Sousa
Especial para o EM
Passado, ou melhor talvez fosse dizer ainda em curso, o sucesso de “Copo vazio”, seu primeiro romance, Natalia Timerman volta � fic��o com “As pequenas chances”. Mas desta vez o ficcional � de outra ordem. Embora publicamente tenha revelado o lastro autobiogr�fico de seu livro anterior, a autora n�o se confunde com a protagonista Mirela.
Trata-se de um bastidor que, se sacia alguma curiosidade, em nada altera a chave de leitura. Como cl�ssico romance de vi�s realista, “Copo vazio” n�o ambiciona ser tomado como relato real, mas, com base na coer�ncia e plausibilidade de um enredo inventado, mobilizar realidades de quem l�.
Em “As pequenas chances”, a come�ar pela narradora Natalia em primeira pessoa, a mat�ria autobiogr�fica n�o apenas salta aos olhos como norteia o entrecho a ponto de o “como se”, princ�pio de toda prosa de fic��o, parecer ausente, tragado pelo “como foi”.
Se passar batido pelo texto de orelha ou, ainda mais prov�vel, pela ficha catalogr�fica onde consta a designa��o de g�nero romance, o leitor possivelmente acredita estar diante do relato ver�dico de Natalia Timerman sobre a morte de seu pai Artur em decorr�ncia de um linfoma.
A emocionante disputa de p�naltis num jogo do Corinthians, paix�o dele, a montagem de “Roda Viva” no Teatro Oficina, �ltima pe�a a que assistiu na companhia de Natalia, a medicina, outro elo entre pai e filha, e at� mesmo a men��o � foto dos dois no obitu�rio de um jornal de grande circula��o, v�rias s�o as marcas de referencialidade que, somadas ao tom de depoimento, firmam a narrativa no vivido de modo parecido com Annie Ernaux, autora avessa � ideia de que escreva autofic��o.
Mas acaso se saiba de antem�o ler um romance, resta inferir que Natalia Timerman preferiu guardar consigo o que h� de volunt�rio no falseamento inerente a toda lembran�a. Isso at� o ep�logo.
� um livro de muitas passagens. No aeroporto, prestes a embarcar para a Rom�nia aonde o filho mais velho foi disputar uma olimp�ada de matem�tica, a narradora reencontra o m�dico de cuidados paliativos que tratou seu pai h� quatro anos.
Desse ponto no tempo, quando o luto embora n�o lancinante j� se prova perene, ela revisita a imin�ncia e o desacerto daquele adeus. Habitual em narrativas sobre luto, o ritmo � lento, esfor�o de quem pena para seguir sua hist�ria sem um de seus eixos, sem um de seus personagens centrais. “Ainda n�o consigo conceber o mundo sem meu pai”, afirma.
Das cenas e a��es poucas, espera-se tratamento � altura de sua carga dram�tica, o que se d� a contento. Contribui para isso a estrat�gia de revisit�-las, ampliando a perspectiva, como � o caso da not�cia da morte, recebida da irm� Gabi por telefone. Em um primeiro momento, a carga emotiva se restringe ao desnorteio de Natalia.
Algumas dezenas de p�ginas depois, a cena reaparece quase com o mesmo enunciado num curto par�grafo rodeado de vazio, por�m expandida, prenhe de implica��es, pois a essa altura a narrativa j� passou pela exaustiva viagem de Gabi para ver o pai ainda vivo e pelos dias finais no hospital com epis�dios de ang�stia, pesar, mas tamb�m ternura, humor e comovente beleza em fam�lia.
S�o igualmente eficazes os trechos afor�sticos quando conseguem dimensionar o v�cuo a s� tempo de presen�a e sentido deixado pela morte. “Morrer n�o deveria ser um verbo. Morrer � o oposto do verbo. Ao morrer, findam-se as conjuga��es. O tempo verbal. O tempo.”
La�os com o juda�smo
Ap�s a perda, Natalia estreita os la�os com o juda�smo. A princ�pio como amparo, na medida em que os rituais do luto servem – ao menos por ora – de norte a quem acabou de perd�-lo: “eu [...], que desde a adolesc�ncia ignorei a religi�o da minha fam�lia, me vi de repente cumprindo cada ritual com um al�vio impens�vel [...], como se tudo que eu quisesse ou precisasse naquele momento fosse que simplesmente me dissessem como me portar ou o que fazer, que me dessem uma lista de tarefas para existir”.
Depois como pertencimento. Ela, que lamenta ter filmado pouco o pai com o celular para “economizar mem�ria (economizar mem�ria)”, repeti��o que, � justificativa banal de outrora, acresce a culpa presente, decide escrutinar o passado familiar como assim carregasse mem�ria, fortalecesse a heran�a paterna. Para isso, ap�s a estadia na Rom�nia, parte com a fam�lia para a Ucr�nia em busca de vest�gios dos antepassados que de l� imigraram para o Brasil no entreguerras.
Essencial para a identidade da protagonista, a viagem � tamb�m essencial para a natureza do romance. N�o conv�m aqui revelar por que, mas fato � que, ao cabo, Natalia Timerman traz a chave para quem, sob a aparente face do factual, procurava a face secreta do artif�cio.

E h� outros ind�cios, outras pistas. Portanto, � de se pensar a necessidade da chave, pois de certo modo ela distingue as inst�ncias que a autora defende, e t�o bem opera, emaranhadas. Por outro lado, n�o fosse a chave, imposs�vel saber a bela invoca��o de ancestralidade implicada no gesto ficcional em jogo. Como seus antepassados, Natalia Timerman n�o se rendeu � Hist�ria. A despeito dela, teimou em continuar a sua, a sua hist�ria.
Wilker Sousa � jornalista, escritor e mestre em teoria Llter�ria