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Dunker: 'O luto � paradigma para pensar a experi�ncia humana da perda'

Escrito sob o impacto da morte da m�e do psicanalista, livro 'Lutos finitos e infinitos' traz reflex�es sobre os significados das perdas individuais e coletivas


08/09/2023 04:00 - atualizado 08/09/2023 00:21
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Christian Dunker
'A literatura � uma forma de elaborar, de forma �ntima e solit�ria, a perda', afirma Christian Dunker (foto: Luiz Maximiliano/Divulga��o)
Perdas. De um ente querido. De um relacionamento amoroso que se encerra. De amigos. De conviv�ncias. De nacionalidade. Da sa�de. De um ideal. Se � primeira convencionamos chamar de luto, em que a morte � refer�ncia, as demais est�o associadas a uma condi��o da vida, s�o “lutos do estar”, como ressalta Christian Dunker, psicanalista, professor titular do Instituto de Patologia da Universidade de S�o Paulo (USP), autor do livro “Lutos finitos e infinitos” (Editora Planeta/Paid�s).
 
“O luto n�o se resume � perda de uma pessoa amada, mas � uma esp�cie de paradigma gen�rico para pensar a experi�ncia humana da perda”, afirma o psicanalista. 

Sete das nove experi�ncias consideradas pela Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) mais prejudiciais � sa�de mental envolvem perdas: de parentes pr�ximos, do trabalho, al�m de perdas como a separa��o dos pais para as crian�as, a separa��o do casal, a perda da sa�de, com adoecimento grave, mudan�as de cidade ou pa�s, passagens da inf�ncia para adolesc�ncia, desta para a idade adulta ou envelhecimento.
 
“Mesmo as duas �nicas condi��es n�o referidas a perdas pela OMS, a viola��o de direitos humanos, a segrega��o e a estigmatiza��o, s�o perdas de uma certa pertin�ncia � comunidade humana”, considera Dunker. 

Em abordagem te�rica ancorada na psican�lise, antropologia, sociologia e na pol�tica, Christian Dunker escreve “Lutos finitos e infinitos” sob o impacto da morte de sua pr�pria m�e. Nesse processo de elabora��o da perda, reflete como esse luto se conecta e convoca lutos anteriores, como o de seu pai, o luto de sua av� e do segundo marido dela, que tratava por av�: n�o chegou a conhecer o av� biol�gico, desaparecido, em uma batalha na Segunda Guerra Mundial, perto de Moscou, portanto, objeto de um luto infinito.
 

 “Um luto termina quando a perda se integra em uma cadeia de lutos que o precedeu e o tornou poss�vel. Essa tarefa pode se afigurar termin�vel para alguns e infinita para outros. O luto � uma experi�ncia de conex�o e desconex�o entre separa��es, envolvendo repara��es e transforma��es futuras, e n�o apenas passadas”, sustenta.
 
Dunker considera que a perspectiva individualista das sociedades modernas torna o trabalho de elabora��o do luto ps�quico cada vez mais solit�rio e dif�cil: n�o conta com grandes narrativas religiosas, nem muito apoio comunit�rio. “Encontramos, em contrapartida, um outro dispositivo que � a literatura”, afirma.

Diferentemente dos lutos finitos, elaborados em um espa�o de tempo, em que “algo se perde tornando-se passado, algo se transforma vigorosamente no presente e algo � reconstru�do e permanece conosco no futuro”, h� lutos que, por motivos hist�ricos ou estruturais, se tornam infinitos.
 
 
� esse novo tipo de luto que Dunker introduz na obra: tem dimens�o pol�tica importante, � medida em que o luto inconclu�do no �mbito familiar se conecta ao luto de outras pessoas, que t�m o seu luto aberto e inconclu�do tamb�m, sendo uma importante refer�ncia as m�es da Plaza de Mayo, que, em ato ritual semanal, lembravam filhas, filhos, netas e netos desaparecidos sob a ditadura brutal. 

A sociedade brasileira carrega in�meros lutos infinitos pela aus�ncia do devido reconhecimento, respeito e repara��o do Estado. “Podemos olhar a forma��o do Brasil a partir de uma popula��o de enlutados. Milh�es de mortos nas travessias, nos apresamentos, nas caravanas, nas epidemias, nas expedi��es guerreiras, nos cativeiros ind�genas e negros, nas epidemias catequistas”, aponta Dunker. 

Escravizados perderam a sua na��o e a sua liberdade; ind�genas perderam parentes, o modo de vida e o territ�rio; judeus ib�ricos perderam p�tria e religi�o; e, ao cabo de tudo, portugueses perderam o seu imp�rio. Mais recentemente, somam-se a estes o luto de mortos e desaparecidos pela viol�ncia da ditadura militar, da pandemia de Covid-19, e diariamente, corpos que se empilham nas periferias metropolitanas pela viol�ncia policial; ou pela viol�ncia pol�tica.
 

“A hip�tese de pensar a forma��o do Brasil a partir do luto coletivo e massivo nos quatro �mbitos definidos por Freud, pessoas, pa�ses, ideias e amores, nos leva a reconsiderar o ‘trato dos viventes’ como forma��o de uma unidade simb�lica, composta da combina��o entre estruturas antropol�gicas e processos hist�ricos, pol�ticos ou econ�micos”, afirma Dunker.
 
O trato dos viventes compreende a disputa narrativa entre vivos, mortos e ainda n�o existentes. “Isso tamb�m permite entender a revolta daqueles a quem foi negado o luto, os impasses no processo de repara��o, a reafirma��o brutal dos processos que levaram � perda, ao silenciamento da hist�ria, enquanto esse trauma e essa fantasia do Brasil convivem como polos formativos de um sintoma fracassado”, afirma Dunker.
 

Entrevista com Christian Dunker 


Por que alguns lutos s�o finitos e outros n�o?
 
Os lutos enquanto processo individual, que t�m um t�rmino mais ou menos previs�vel ,n�o em termos cronol�gicos, t�m de enfrentar um conjunto mais ou menos constantes de problemas: o que foi que perdi nesta pessoa?
 
Eu perdi mesmo ela para sempre? Como eu me relacionava com essa pessoa, como ela fez isso comigo e eu com ela? E esse conjunto de problemas n�o � uma curva definida de etapas, mas � mais uma colcha de retalhos, que voc� vai juntando e uma hora forma uma unidade, costura os peda�os.
 
 
Essa descri��o do luto terminado est� muito ligada a olhar para esse processo como intrasubjetivo, que cada um tem de fazer. Existem situa��es, contudo, em que o t�rmino do luto pode ser uma decis�o mais ou menos conscientemente decidida com consist�ncia: por exemplo, n�o quero terminar o meu luto porque o estado sumiu com o corpo do meu marido; ou eu n�o quero terminar meu luto a este filho, o que posso dedicar a ele um amor que n�o quero que se feche para al�m do luto. Ent�o posso ter lutos infinitos, que s�o abertura para os lutos de outros. 

Seria uma escolha, do tipo “n�o quero e n�o posso esquecer”’?
 
H� certos tipos de luto que s�o patologicamente infinitos: depress�es, melancolias, os lutos espectrais, certas formas de n�o luto em que a pessoa n�o consegue reconhecer que houve perda de natureza simb�lica.
 
Ent�o, s�o infinitos, no sentido de que s�o interminados, n�o chegam a um fim. Mas o que quero introduzir � um luto infinito, de outro tipo, que n�o � patol�gico: s�o lutos infinitos que se colocam como esp�cie de delibera��o, como exig�ncia de justi�a, e tem rela��o com um luto coletivo, que envolve o luto dos outros em geral.
 
E nesse caso h� uma dimens�o pol�tica importante, uma dimens�o de ato de amor importante, em que o seu luto inconclu�do vai se conectar com o luto de outras pessoas, que t�m o seu luto aberto e inconclu�do tamb�m.
 
H� a quest�o de quem tem direito ao luto, como fazemos o luto, como �s vezes se sobrep�e com a ideia de esquecimento ou de perd�o. 

Perdas que acontecem antes do que o previsto, como um erro m�dico, uma morte por viol�ncia policial ou outras situa��es que abreviam a vida, s�o mais dif�ceis de elaborar?
 
Mais dif�cil. No fundo, quando tem a interveni�ncia humana, uma morte por viol�ncia, voc� vai ativar o mecanismo da culpa. Voc� vai come�ar a odiar os respons�veis, vai querer investigar as circunst�ncias, tudo isso torna o luto mais complexo.
 
E quando isso desengancha num acontecimento social que reverbera na realidade, isso acaba se complicando e se impulsionando, quando a gente vai se aproximando da ideia de que esses lutos sentidos como injustos, no quadro de viol�ncia, corre o perigo de se tornarem lutos inconclu�dos, lutos patol�gicos ou se tornarem lutos infinitos.

No caso da pandemia, que deixou 705 mil mortos no Brasil, h� um luto coletivo a resolver?
 
A primeira pessoa a falar em lutos infinitos foi um historiador americano que presenciou uma batalha durante a Guerra de Secess�o, onde a maior parte das pessoas daquela cidade morreram.
 
E ele disse que quando h� tantas pessoas mortas desse jeito, quem s�o aqueles que v�o fazer tumbas, preces, quem vai lembrar deles, chorar por eles? Aqui haver� um luto infinito, que n�o ser� poss�vel faz�-lo. Essa ideia aparece muito na experi�ncia nossa com a Covid.
 
Tanto porque nos foram vedados rituais por motivos sanit�rios, quanto est� cada vez mais claro que voc� tem um pa�s com 3% dos habitantes no mundo e aqui morreram 10% daqueles que sofreram por Covid. H� um crime, uma viol�ncia de Estado, um tratamento pol�tico que convida a um luto em aberto.
 
No livro discuto uma certa proximidade entre esse luto de pessoas tratadas como n�meros, em cova comum, em confronto com uma pessoa, uma morte que acontece nessa circunst�ncia que simboliza a singularidade de todas essas outras, que � a Marielle Franco. S�o exemplos, que tento trazer, pr�ximos do luto infinito.

Nas ditaduras militares tanto no Brasil quanto na Argentina, Chile e outros pa�ses da Am�rica Latina, houve pessoas mortas pela tortura e viol�ncia de Estado. Muitas fam�lias nem sequer tiveram acesso aos corpos de seus entes. Qual � a import�ncia para a elabora��o do luto de ter o corpo do familiar morto?
 
� muito importante. Uma das coisas interessantes do luto � o fato de que a morte humana � simb�lica, no sentido de que a pessoa sai da comunidade dos vivos e entra numa outra comunidade, a dos mortos. E nessa outra comunidade ela tem um lugar: ou est� no cemit�rio ou as cinzas foram lan�adas no mar, ela tem um lugar.
 
Para que a gente consiga elaborar a separa��o � muito importante ter a exist�ncia desse lugar. Porque o luto, no fundo, � a integra��o dessa pessoa que se foi num novo lugar. � assim que a gente elabora para as nossas crian�as: virou uma estrela.
 
Ent�o, ela est� num lugar, tem um lugar. O que ocorre nos processos em que o corpo desaparece � que n�o h� o lugar. Onde ele est�? H� v�rios dispositivos para tentar reincluir pessoas mortas pela viol�ncia de Estado num lugar que ajuda ao luto individual e coletivo, finito e infinito: para uma fam�lia que n�o tem o corpo de seu filho pode passar por um monumento feito pelo estado, pode passar por um gesto coletivo como andar na Plaza de Mayo, pode passar pela escrita de um livro, tudo isso s�o an�logos ao processo terap�utico que vai ajudar a pessoa a fazer isso.

Do ponto de vista individual, � racional e todos sabemos que nossa vida � finita. Por que sempre a morte traz uma surpresa, traz um choque, um assombro, mesmo quando as pessoas est�o com doen�as terminais?
 
� um fato da vida, mas � um fato que sempre acontece com os outros. � algo que voc� intui por generaliza��o que vai acontecer, mas que n�o acredita porque � uma ideia, em certo sentido imposs�vel. Podemos pensar na morte do outro, mas a nossa morte, est� sempre meio recoberta, com a ideia de que na hora “h” algu�m vai me salvar, sou uma pessoa especial, essa � uma regra que se aplica aos outros.
 
Isso tamb�m tem uma rela��o com a perda das pessoas que sabemos que est�o indo, �s vezes est�o muito doentes, mas isso mexe com uma cren�a muito b�sica, que � infantil, mas permanece no adulto quando estamos diante desse tipo de quest�o, que � a cren�a de que o amor salva: se eu tiver mais pr�ximo, se eu rezar muito, se eu amar muito, at� a morte consigo superar. Isso vem junto com a desagrad�vel contrapartida de que ent�o, se ele se foi, foi porque eu deixei de am�-lo quanto eu podia.
 
Ou se ele se foi, aconteceu porque ele n�o me amou quanto ele podia, quanto eu precisava, n�o fui t�o importante assim para ele. Sabemos que tudo isso � bobagem, mas sentimos assim, como se fosse uma ofensa ao nosso narcisismo, ofensa ao nosso ego, pelas condi��es de forma��o de nosso ego, n�o fomos feitos para elaborar completamente isso.
 
Para Freud, isso era um assunto que tinha a ver com a prova de realidade, o que cada um entende e percebe da realidade. Para o Lacan, a gente tem a outra ideia, de que a morte n�o � apenas um problema na realidade, mas � algo que mobiliza o real, ou seja aquele imposs�vel que existe dentro da realidade.

Em algum momento sentiu que o tema do luto gera maior resist�ncia nas pessoas, que � um tema desagrad�vel?
 
Ele � desagrad�vel, mas � tamb�m atraente. � maldito, mas ao mesmo tempo respeitoso, nobre. A minha pr�pria experi�ncia escrevendo esse livro foi muito diferente de todos os outros que escrevi.
 
Passa pelo fato de ter um desencadeante muito pessoal, a perda da minha m�e, e foi se desdobrando para dentro do processo de escrita. E aquilo que devia ser um meio para que eu pudesse elaborar, pudesse deixar ela ir, foi se tornando um jeito de eu deix�-la ficar.
 
E o texto come�ou a n�o ter fim, eu acrescentava cap�tulos. Foi uma luta, ao mesmo tempo te�rica, mas tamb�m com o meu luto e isso se desdobrou no meu livro. No fundo � uma resposta que o livro vai dar para o problema que a gente est� desaprendendo a fazer o luto.
 
� cada vez mais dif�cil tolerar o luto do outro, � cada vez mais solit�rio, individual. Tem aqueles pequenos rituais, mas depois a pessoa continua em luto e ningu�m quer falar sobre aquilo. Ent�o a gente sem grandes narrativas religiosas, sem grande apoio comunit�rio, privados de alguns meios essenciais para fazer esse trabalho ps�quico. Mas em contrapartida a gente encontrou outro dispositivo que � a literatura.
 
� um jeito de escrever, elaborar muito intimamente, solitariamente a perda, e socializ�-la, porque os seus leitores v�o ter contato com isso, o luto dos seus eleitores vai se enganchar no seu e voc� vai fazer parte de um trato dos viventes, o pacto entre os que j� se foram, n�s que estamos e os que vir�o. O luto n�o � s� olhar para tr�s. � tamb�m a partir do que olha para atr�s, criar o futuro.
 
Capa do livro
(foto: Reprodu��o)
 
 
“Lutos finitos e infinitos”
•  Christian Dunker
•  Editora Planeta/Selo Paid�s
•  480 p�ginas
•  R$ 119,90


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