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Estado de Minas PENSAR

Emmanuelle Lambert: 'Escrevemos para que a morte n�o ven�a no final'

Autora francesa escreveu romance a partir das lembran�as da inf�ncia e dos �ltimos dias de vida do pai


08/09/2023 04:00 - atualizado 08/09/2023 00:16
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Emmanuelle Lambert
Emmanuelle Lambert recria os �ltimos dias de vida do pai e os entrela�a com mem�rias felizes e irreverentes (foto: AUT�NTICA/DIVULGA��O)
Se � fato que um dia todos os nossos corpos estar�o mortos, � tamb�m verdade que a literatura est� al�m da materialidade da vida. No combate entre vida e morte, vence a escrita. Ao narrar os derradeiros dias de seu pai, doente terminal, em seis grandes atos, a autora francesa Emmanuelle Lambert recupera as mem�rias de inf�ncia, os entrelaces com as hist�rias dos afetos familiares e, sem autocomisera��o ou excessiva indulg�ncia, incorpora o pai permanentemente a este mundo dos vivos.  

Por um lado, ele � vibrante, presente, amoroso; por outro, tantas quest�es ainda em aberto, sob a perspectiva feminina: um certo machismo enrustido, “deformado pela modernidade”, que ao masculino cabe a liberdade de in�meras escolhas; � mulher, como se nunca boa o suficiente para “manter o seu homem em casa”, � atribu�da a responsabilidade da estabilidade, da solidez, aquela que se esgota em promover e servir a fam�lia, em carregar os fardos do cotidiano, porque havia se constru�do com a ideia de que “amar � ficar”.
 
O pai � defensor das igualdades entre homens e mulheres, das liberdades, do desejo m�tuo e dos jogos er�ticos. Mas, por volta dos 60 anos, agarrou-se � m�xima da juventude: “Um homem deve seu sucesso � primeira esposa, e a segunda esposa ao seu sucesso”. 

Lan�ado no Brasil pela Aut�ntica Contempor�nea, com tradu��o da escritora Adriana Lisboa,  “O garoto do meu pai” � uma carta de amor da filha, que “desafiou” o desejo paterno ao nascer mulher.
 
 
O romance discute, em meio a mem�rias felizes e irreverentes, num gesto de amor e com muita sensibilidade e honestidade intelectual, um sem-n�mero de quest�es que ainda viajam as gera��es e se embricam � narrativa.
 
O sofrimento da m�e, que parece  “inscrito num destino feminino”;  o pai, a quem percebe como “instrumento de um sistema”; a prefer�ncia por filhos homens, o que, em certo momento, imp�e-se subjetivamente � crian�a que busca a aceita��o.
 
Tudo dito e posto, Emmanuelle Lambert registra: “Saber que ele sempre me amara, ao seu modo bagun�ado e generoso, permitiu que eu me libertasse do seu amor. �s vezes me pergunto se n�o � imposs�vel para um homem ter uma filha, ou pelo menos se n�o � imposs�vel na sociedade a que perten�o hoje, tal como ela �. Mas n�o deixei de amar meu pai. Simplesmente abandonei o garoto que sonh�vamos em mim”. 
 

Nascida em 1975, na Fran�a, Emmanuelle Lambert � doutora em l etras, com tese defendida em 2003 sobre o teatro de Jean Genet. Escreveu livros como “La d�sertion”, “Giono, furioso” (vencedor do pr�mio Femina de Ensaio em 2019) e “Sidonie Gabrielle Colette”.
 
Depois de ter trabalhado com o escritor Alain Robbe-Grillet na publica��o de alguns de seus textos, em 2009 dedicou-lhe o seu primeiro livro, “Mon grand �crivain”.
 
Em 2011, publicou o romance “Um peu de vie dans la mienne” e, em 2013, “La t�te haute”, ambos editados pela Les Impressions Nouvelles. Em 2012, assinou “Alain”, posf�cio do livro de mem�rias de Catherine Robbe-Grillet.
 
Leia, a seguir, a entrevista exclusiva de Lambert ao Pensar do Estado de Minas:

Como encarar a finitude da vida?
 
O c�rebro sabe sempre, mas n�o estamos nunca prontos para aceitar a morte das pessoas que amamos. Isso n�o nos impede de saber que n�o temos escolha. Mas h� uma esp�cie de rebeli�o do cora��o.
 
E acho que isso corresponde a algo muito potente, um princ�pio vital, que coloca na morte a recusa de morrer. Eu vi isso nos �ltimos instantes do meu pai, a m�quina, o corpo em seu momento terminal, mas ainda h� algo que luta at� o fim.
 
 
E acho que somos feitos dessa luta entre o desejo de viver e o passar do tempo, que nos lembra que estamos numa ladeira em declive. E o princ�pio de vitalidade, de vida, de amor, de descoberta, toda essa pulsa��o que h� em n�s, luta at� o �ltimo minuto contra a morte.
 
Podemos aceitar intelectualmente a ideia, mas h� algo na energia vital entre os seres que leva a recusar � morte. E na agonia – palavra que originalmente significa combate – h�, apesar de sabermos que ao final a morte vencer�,  um combate. E quando escrevemos, � para reverter essa perspectiva. Para que, ao final, n�o seja a morte a vencedora.

Escrever o livro “O garoto do meu pai”ajudou voc� a elaborar a morte de seu pai?
 
Eu n�o sei como as pessoas em geral fazem, mas sei como o fazem os artistas. E � isso o que eu tento, quando escrevo. Tento fazer arte. Temos essa oportunidade, de quando somos artistas, de transformar aquilo que � doloroso, individual, em algo coletivo. Mas n�o foi o prop�sito quando iniciei o livro.
 
Quando comecei, tinha necessidade de escrever e, pouco a pouco, a gente se reencontra com essa condi��o art�stica. Percebemos que isso nos ajuda a fazer coisas, que v�o al�m de n�s mesmos, e nos ajuda a lidar com as nossas pequenas dores.
 
 
Escrever, ent�o, me ajudou a elaborar a morte do meu pai, mas eu diria que de uma maneira paradoxal, ao me for�ar a reviver. Ent�o, � uma elabora��o especial. Aceitar a morte verdadeira, ao fazer reviver, por meio da cria��o e da arte.
 
Eu diria que elaborei, pois estava entre a aceita��o � nega��o, e a literatura me permitiu finalmente aceitar a morte, mas n�o ficar em sofrimento. Eu n�o gosto dessa ideia do luto, n�o gosto da ideia de que em algum momento terminou com as pessoas que amamos.
 
Sentimos falta das pessoas que amamos todo o tempo. Todos os dias, at� o fim de nossa vida. Mas por outro lado, voc� pode encontrar um meio de transformar a dor dessa falta, para que ela se torne fonte de uma lembran�a agrad�vel, de uma energia transformadora. Meu pai tinha uma personalidade muito alegre, energ�tica.
 
Ent�o, as minhas lembran�as s�o alegres. N�o h� raz�o para n�o desejar as minhas mem�rias. Estou absolutamente certa, de que com a velhice, a nossa mem�ria se esvanece, e eu sei, que mais tarde, terei o meu livro. Agora vejo que o escrevi por ele, mas o escrevi tamb�m por mim, para o futuro, para as pessoas que amo hoje e, tamb�m, por todas as pessoas que t�m a quem guardar perto deles.
 
E � isso o que me dizem as leitoras e leitores franceses, que me escrevem, seja porque n�o t�m pai, seja porque t�m uma rela��o ruim com os seus pais, me disseram: “obrigada, agora sei o que �”.

A sua percep��o sobre a morte parte de uma perspectiva materialista ou de uma perspectiva religiosa? 
 
Eu tenho um pouco de ci�mes das pessoas que s�o espiritualizadas, seja por uma vis�o religiosa ou uma perspectiva esp�rita de reencarna��o. Eu as invejo, pois realmente � mais f�cil lidar com a morte por essa perspectiva espiritualizada.
 
Herdei de meu pai a vis�o materialista: n�o h� nada antes, n�o h� nada depois. Ele mesmo, no momento de sua morte, n�o acreditava em nada disso, n�o havia qualquer raz�o para, como uma pessoa crente, estar otimista, ver uma certa beleza na morte. Para pessoas como o meu pai ou para mim, n�o h� nada, em particular, de formid�vel na morte.
 
� justamente o fim. E penso, realmente, que essa foi a raz�o pela qual escrevi. Eu creio que, quando n�o temos religi�o, � melhor ter a literatura.

O seu pai conversou com a fam�lia sobre a pr�pria morte, a proximidade do fim, j� que sabia estar em est�gio terminal?
 
Quando eu era jovem, essa discuss�o fez parte da minha educa��o. Eu era adolescente e nessa �poca meu pai n�o estava doente. Ele me criou assim, dentro da ideia de que todos vamos desaparecer, essa vis�o materialista, que somos feitos de mol�culas e que um dia tudo isso chegaria a um fim.
 
Ele falava com muita liberdade sobre a morte, n�o tinha medo de morrer. Ele tinha medo de ter um colapso e perder a sua faculdade intelectual. Depois, quando ficou doente, n�o falava muito, mas me disse, certa vez, que �quela altura j� desejava morrer.
 
E essa � a fun��o, acredito, do sofrimento do corpo. O corpo diz: “J� n�o posso mais”. Ele havia aceitado que passava por um n�vel de sofrimento em rela��o ao qual n�o poderia ir adiante.
 
Por outro lado, ele teve di�logos mais profundos com a minha irm�, que � mais espiritualizada do que eu. Ele sabia que a minha irm� tinha cren�a diferente, ent�o, possivelmente. ela precisaria mais desse di�logo. Mas comigo n�o. Ele e eu partilh�vamos a vis�o materialista e compreendi que s� poderia contar comigo. 

Nos conte quem � o garoto a que se refere o t�tulo de seu livro, “O garoto do meu pai”
 
Sou a primeira filha e meu pai sempre quis ter um filho homem. Eu fui a primog�nita e acredito que, com alguma frequ�ncia, os homens de sua gera��o, ele nasceu em 1946, adoravam ter filhos homens.
 
E o que eu tentei fazer com o livro foi, ao mesmo tempo em que enfrentei a morte, abolir o momento presente e convocar todo o tempo passado com ele. Por isso, falo da minha inf�ncia, da inf�ncia dele, de nosso v�nculo. Existe esse momento, na velhice, em que pegamos nossos pais pela m�o, como eles faziam quando �ramos crian�as. E � por isso que evoquei todas essas mem�rias no livro.
 
Ele tem esse t�tulo porque � verdade, ele quis que eu fosse um menino feliz em minha inf�ncia. Evidentemente, meu pai sabia que ele tinha uma menina. Essa rela��o silenciosa que se forma entre as crian�as e os pais, em que as crian�as sentem alguma coisa ou sup�em alguma coisa e inconscientemente tentam preencher as expectativas do pai. Mas, de fato, as expectativas de meu pai eram de que eu fosse uma crian�a feliz. 

Quais s�o os pontos de interroga��o deixados pelo livro que mais a fazem refletir, inquietar-se?
 
H� diversas camadas nesta quest�o. O primeiro ponto, como escritora, me trouxe uma preocupa��o quanto � intera��o com a leitora, o leitor. Foi o primeiro livro que escrevi na primeira pessoa e, por longo tempo, achei que n�o seria muito interessante falar de si mesmo. E me dei conta de que, ao fundo, quanto mais voc� � espec�fica e quanto mais fala de seus sentimentos �ntimos, mais toca as pessoas.
 
Ent�o, isso foi muito importante para mim, porque destravei alguma coisa sobre a quest�o da autobiografia. Do ponto de vista liter�rio, isso tamb�m me fez pensar sobre a rela��o com o passado e sobre como poderia trat�-lo na escrita, dando-lhe vida, refazer ressurgir o tempo, isso me interessa enormemente.
 
Depois, a coisa importante, e que eu n�o sabia quando comecei a escrever, sim, meu pai queria um homem, e eu sou uma mulher. E um jornalista me disse, que o livro narra como voc� se reencontrou com o seu g�nero. Isso me interessou muito.
 
Pois a gente passa muito tempo tentando compreender qual � o seu lugar no mundo como mulher. Eu n�o havia refletido sobre isso literariamente, ent�o isso me saltou os olhos, e veio a fazer parte das coisas que descobri. 

Como escritora, ao escrever na primeira pessoa, voc� sente algum constrangimento em expor a sua pr�pria privacidade?
 
Eu pedi a minha m�e que lesse o livro antes de todos, para que ela pudesse me dizer se as coisas a incomodavam. E ela me disse essa frase muito bonita, que eu poderia escrever o que quisesse, pois aquilo n�o dizia respeito a ela. Quando escrevemos, as pessoas reais n�o s�o, jamais, exatamente como falamos. H� sempre uma brecha.
 
E � preciso lhes dar a liberdade para que vivam a pr�pria vida. Acho que n�o � preciso ter medo de se expor. Acho, inclusive, que n�o devemos nem nos perguntar sobre isso. Eu n�o tenho mais medo disso. No in�cio, tive um pouco de constrangimento, mas atualmente isso n�o me assusta mais. Com o tempo, de qualquer jeito, os livros v�o muito al�m de n�s. 
 
capa do livro
(foto: Reprodu��o)
 
 
“O garoto do meu pai”
•  Emmanuelle Lambert
•  Tradu��o de Adriana Lisboa
•  Aut�ntica Contempor�nea
•  128 p�ginas
•  R$ 54,90 (livro)
•  R$ 38,90 (e-book)


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