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Estado de Minas PENSAR

Romance de Irene Sol� traz chance preciosa de encontro com cultura catal�

Polif�nico e vibrante, 'Canto eu e a montanha dan�a' � ambientado nos Pirineus da regi�o no nordeste da Espanha


10/02/2023 04:00 - atualizado 10/02/2023 00:00

Irene Solà
Irene Sol�, tamb�m poeta e artista visual: hist�ria ambientada nos Pireneus catal�es, no nordeste da Espanha (foto: Oscar Holloway/Divulga��o)

Stefania Chiarelli*
Especial para o EM
 
Na mitologia de muitas culturas, as montanhas s�o o lugar habitado por deuses, assumindo um car�ter sagrado, como o Monte Olimpo, na Gr�cia, morada de Zeus. A escritora catal� Irene Sol� se apropria de modo muito pessoal dessa rica imag�tica para compor “Canto eu e a montanha dan�a”, ambientando suas hist�rias nos Pireneus catal�es, regi�o montanhosa no nordeste da Espanha. Sol�, tamb�m poeta e artista pl�stica, bebe de narrativas e lendas locais para construir um interessante mosaico. Ao longo do livro, considerado pelo The Guardian como um dos melhores lan�amentos publicados no Reino Unido em 2022 (e chamado pelo jornal ingl�s de “um triunfo l�dico e polif�nico”), m�ltiplos sentidos ser�o atribu�dos ao espa�o da montanha. Com a imutabilidade de quem atravessa os tempos, ela � casa e paisagem exuberante que acolhe animais, gentes e plantas. Comparada aos seios maternos onde um beb� rec�m-nascido � depositado durante o primeiro contato com a m�e, � tamb�m lugar de passagem de soldados nacionalistas durante a Guerra Civil espanhola, recebendo balas, granadas e peda�os de fuzil, cen�rio de guerra e de confrontos no in�cio do s�culo 20. 

“Canto eu e a montanha dan�a” � traduzido diretamente do catal�o por Luis Reyes Gil e integra a cole��o Mundo afora, da editora Mundar�u, trazendo ao p�blico brasileiro um encontro com a cultura catal�, cuja literatura pouco circula por aqui. Os falantes dessa l�ngua somam cerca de 7 milh�es de pessoas, e buscam historicamente sua preserva��o, no contexto hegem�nico do espanhol falado no pa�s. O curioso t�tulo ecoa o verso extra�do de um poema de Hilari, personagem tomado pela febre da escrita: nele, o campon�s autodidata afirma cantar “como quem cultiva uma horta/, como quem faz uma mesa/, como quem ergue uma casa/, como quem escala um monte/, como quem come uma noz/, como quem acende uma brasa”. O trecho evidencia a dimens�o oral no romance, cuja sonoridade aposta em um ritmo pr�prio, que inclui onomatopeias e repeti��es. Nele, a montanha, sin�nimo de solidez e perman�ncia, pode n�o somente bailar, como tamb�m narrar. 

Nuvens, fungos, animais 


Em um planeta que h� muito vive em car�ter de urg�ncia ambiental, muitos textos t�m surgido com a proposta de questionar as rela��es entre o humano e o n�o humano, desconstruindo hierarquias e retirando o ser humano como medida de todas as coisas. Considerando o abalo dessa mirada antropoc�ntrica, nada mais desej�vel do que convocar vozes inusitadas para narrar: nuvens, fungos, animais e a pr�pria montanha entram em cena para compor uma polifonia a que se agrega o ponto de vista de outras criaturas – as vivas e as mortas. Idas e vindas no tempo auxiliam a criar certa sensa��o caleidosc�pica que emana dessa escrita.

Duas mortes constituem o eixo do romance. A do campon�s Dom�nec, atingido por um raio no alto da montanha, e a de seu filho Hilari, por um tiro acidental, anos depois. A trag�dia afeta diretamente Si�, esposa e m�e dos acidentados. Seu sofrimento n�o cessa e o cuidado com o restante da prole, que deveria supostamente lev�-la adiante, n�o consola. Acompanhamos sua perspectiva, � qual se agregam outras, como a das nuvens de onde parte o raio matador: “Porque t�nhamos sido r�pidas, caramba, imprevis�veis e sigilosas, e o pegamos de surpresa”. Uma admir�vel terceira pessoa d� a ver n�o somente a puls�o de exterm�nio vinda da natureza, mas tamb�m sensa��es de prazer: “O melhor de tudo � chover granizo”. 

Como tudo est� interligado, no instante exato do segundo acidente uma cor�a ir� escapar com vida, ressurgindo depois no curioso cap�tulo em que relata seu nascimento e o dia em que foi arrancada da m�e, deslocando aos poucos o tom do acolhimento do ventre materno ao puro terror do bosque, na luta pela sobreviv�ncia. No espa�o montanhoso, sofrem todos, bichos, homens e mulheres.

Sem romantiza��o da natureza

A natureza n�o surge em vis�o romantizada, marcada por um olhar condescendente, de sublime beleza. A passagem em que a montanha narra sua g�nese n�o deixa d�vidas sobre isso. Acompanhada de figuras que apoiam o texto, detalhando sua forma��o, ela roga que a deixem em paz: “N�o me amolem. (...) O que pode interessar a voc�s, minha voz ou minha perspectiva?” Fato � que a natureza n�o precisa de n�s, como comprova o trecho narrado pela cadela Lluna, em que vislumbra longa cena de amor entre um casal. Dotada de humanidade, ela percebe sensorialmente todas as etapas que comp�em o sexo entre um homem e uma mulher – quem ali parece humano, quem surge como animal? – as posi��es se invertem, e a cadela termina interessada em matar os gatos da redondeza. Quem pensou na cachorra a sonhar com pre�s gordos em “Vidas secas” (1938) n�o se enganou; Graciliano Ramos teria gostado desse di�logo entre Baleia e Lluna. Nessa conversa, poderia entrar tamb�m “O crach� nos dentes” (1995), belo conto de Lygia Fagundes Telles narrado do ponto de vista de um c�o.

Diante da constata��o de que vivemos momento cr�tico em rela��o ao planeta e ao meio ambiente, da sensa��o constante de queda que a humanidade vive, Ailton Krenak, no conhecido “Ideias para adiar o fim do mundo”, indaga sobre formas de protelar esse final, sustentando a import�ncia de enriquecer nossa subjetividade a partir da capacidade de inventar. Da� a import�ncia de textos liter�rios como o de Sol�, capaz de romper percep��es automatizadas da realidade, articulando outros modos de consci�ncia. Hilari, em certa passagem, afirma que a voz do poeta conclama as pessoas queridas e os tempos passados e futuros. Conjurando diferentes seres, tempos e vozes, a escritora nos coloca tamb�m nesse c�rculo sem centro. Nele, montanhas dan�am, cor�as fabulam, nuvens nos olham de cima e vivos e mortos fazem soar um coral polif�nico revelando modo poss�vel de adiar o fim.


*Autora de “Partilhar a l�ngua” (7Letras), Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)
 

Trecho
(de “Canto eu e a montanha dan�a”, de Irene Sol�, tradu��o de Luis Reyes Gil)

 
“Sou o urso gra�as a voc�s. Somos os ursos gra�as a voc�s. Somos o medo por escolha sua. Muita honra ter sido escolhido. Pulo e rujo, descendo pela encosta do castelo. Homes e mulheres correm � minha frente. Atr�s de mim, escondem-se homens, mu- lheres e crian�as. A crian�ada chora. O vila- rejo se abre como uma boca, e n�s o reconquistamos. Pego outro corpo de homem e bebo o seu medo. O vilarejo era nosso antes de ser vilarejo. Agarro um corpo de mulher e bebo seu p�nico. Reconquistamos o vilarejo como ser� reconquistado pelas ervas da- ninhas, quando chegar a hora. Grito. Reconquistamos o vilarejo como reconquistaremos a montanha, quando chegar a hora.”
 

“Canto eu e a montanha dan�a”

  • Irene Sol�
  • Tradu��o de Luis Reyes Gil
  • Mundar�u
  • 224 p�ginas
  • R$ 64 


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