
Faustino Rodrigues*
Especial para o Estado de Minas
H� 100 anos, nascia Alfredo de Freitas Dias Gomes. Um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira, tornou-se c�lebre pela extensa produ��o liter�ria que testemunhava as transforma��es de um Brasil cada vez mais moderno sem, contudo, perder muito de uma insistente heran�a tradicional. Suas pe�as de teatro, respons�veis por grande parte da notoriedade adquirida, confronta-nos ante os problemas do pa�s, ressaltando o que h� de mais singular, tocando o grande p�blico ao desvendar contradi��es de toda uma sociedade.
Em Dias Gomes, h� uma esp�cie de compromisso com o popular, conforme atestado em sua viv�ncia na teledramaturgia. Nada mais ic�nico desse Brasil urbano, moderno, que a telenovela do fim do dia – “O bem-amado”, “Roque Santeiro”, “Saramandaia” e “Mandala” s�o alguns bons exemplos.
� simplicidade do indiv�duo que se posta diante da TV encontramos o mais aut�ntico e espont�neo da lida di�ria, o que justifica a preocupa��o em retratar o tipo comum de sujeito ante poderosos, em uma rela��o sempre tensionada pelo entendimento que cada um constr�i a partir do lugar ocupado na estrutura social.
Utilizando uma linguagem simples, pr�xima � vida comum, sua obra satiriza personalidades pol�ticas e sociais, bastante presentes na vida cotidiana. Tocar o leitor e espectador dessa forma n�o � algo simples de ser feito, o que evidencia a destreza de Dias Gomes na constru��o de suas narrativas, a ponto de transformar alguns de seus personagens em cria��es memor�veis.
Trata-se, no caso, de uma experi�ncia nos est�dios de TV gestada previamente no teatro – uma das mais antigas formas de express�o art�stica – permitindo um di�logo entre duas extremidades, a cl�ssica e a contempor�nea, com um ponto de contato cujo produto da� derivado poderia gerar d�vidas quanto � qualidade, d�vida essa que n�o ocorre em seu caso.
E � valendo-se disso que, talvez, aqui seja notada a coer�ncia de uma obra produzida em um pa�s igualmente marcado por extremos: o dos resqu�cios de uma tradi��o colonial, agr�ria, com o que aparentemente configuraria o salto para o moderno. Extremos esses que, como duas retas paralelas, n�o se tocariam. Dias Gomes prova o contr�rio.
A ORIGEM DA DRAMATURGIA
Nascido em 19 de outubro de 1922, a inicia��o de Dias Gomes no teatro ocorre bastante precoce, entre as d�cadas de 1930 e 1940. Era o per�odo de Get�lio Vargas e a ditadura do Estado Novo, com um dos grandes e mais importantes impulsos desenvolvimentistas, de urbaniza��o crescente e vigorosa e consequente transforma��o do cen�rio nacional. A ansiedade por deixar para tr�s um passado rural caminhava junto da necessidade de que fosse produzida uma identidade a lhe servir de espelho, uma identidade claramente inspirada em sociedades como a parisiense, a londrina, da primeira metade do s�culo 20.
Mas a heran�a colonial, tradicional com o seu ruralismo persistia. Na configura��o assumida pelo modernismo brasileiro, ent�o, admite-se a entrada dos tra�os mais singulares do arcaico em sua mescla com o que havia de mais desenvolvido e digno de entusiasmo e admira��o. Foram in�meros os autores que se debru�aram para entender este processo. Gilberto Freyre, atrav�s de “Casa-grande & senzala”, na d�cada de 1930, � um deles, tornando-se um ponto de inflex�o desse esfor�o de pensamento, ao destacar a singularidade de uma moderniza��o pr�pria do pa�s a partir da l�gica da miscigena��o capaz de trazer o que havia de culturalmente mais original em todo o mundo, avesso � especular cultura europeia de ent�o.
Sem o seu passado colonial – por mais cruel que ele possa ser – isso n�o seria poss�vel. Eis a particularidade do Brasil. N�o demoraria para que essa vis�o sobre o pa�s, bastante aceita no interior dessa sociedade moderna, focada no eixo Rio-S�o Paulo, que olhava para o rural com estranhamento, ao mesmo tempo em que a tomava como ex�tico, entrasse tamb�m na literatura e, naturalmente, na dramaturgia. � por essa linha que caminha Dias Gomes ao trazer para os palcos e telas elementos de uma cultura popular muito afim ao tradicional.
O curioso de seu texto, resgatado nos �ltimos anos pela Bertrand Brasil, selo da Editora Record, � a naturalidade de um cen�rio aparentemente distante, mas que, por certo, encontra-se mais perto de cada um que se depare com a escrita de Dias Gomes – pois, constitui o passado de um pa�s inteiro, independentemente do ambiente em que vivam.
N�o h�, nas pe�as, uma busca constante pelo estranhamento e consequente ruptura com o passado tradicional ou resist�ncia � moderniza��o e urbaniza��o inevit�veis. Pelo contr�rio, pois � ao identificar um ponto de contato entre essas duas extremidades que consegue, por exemplo, produzir um efeito c�mico inapreens�vel em outras circunst�ncias, pois suscita o que h� de mais tradicional e conservador no maior dos progressistas, bem como o contr�rio.
A met�fora do teatro de Dias Gomes � marcante. Em pe�as como “O bem-amado” – completando, em 2022, 60 anos de sua publica��o –, Odorico Paragua�u n�o � um estranho � realidade brasileira, de qualquer dos brasis. As not�cias di�rias demonstram isso muito bem. Sucupira, a cidade onde se passa a trama, � um microcosmo da ambi��o pol�tica. � constru��o de um cemit�rio, fruto de promessa de campanha, para enterrar os mortos de uma cidade, tem-se, paralelamente, a edifica��o de Bras�lia, uma nova capital no interior, removendo toda a estrutura administrativa do pa�s. Alegoricamente falando, se era preciso que algu�m morresse para se ter a inaugura��o do campo santo de Sucupira, necessitava-se matar o Brasil tradicional para edificar a fara�nica cidade.
Definitivamente, Juscelino Kubitschek promove algum n�vel de integra��o das regi�es no Brasil, levando aquilo que se erguia em territ�rio nacional para o interior, para onde se supunha t�o ermo e distante. Da mesma forma, Dias Gomes traz para o centro da arte brasileira o que h� de mais tradicional e tido como distante. O confronto entre as duas realidades � o que conduz a trama e, certamente, aproxima a realidade do brasileiro ao seu dia a dia.
A ATUALIDADE
Ainda seguindo o pressuposto da aproxima��o entre o tradicional e o moderno em Dias Gomes, uma obra que passa despercebida do p�blico comum, resgatada agora pela Bertrand Brasil, � “As prim�cias”. Basicamente, o enredo trata do tradicional direito de um senhor de terras � primeira noite com a noiva, que vive em seus dom�nios senhoriais. O que mais surpreende na pe�a n�o � a indigna��o e reconhecimento dos noivos quanto ao seu direito �s n�pcias – um tanto �bvio. Isso passa pela admiss�o de algo puramente moderno como o reconhecimento de sua individualidade, em que circula, entre outras coisas, a intimidade. O mais surpreendente � a inoc�ncia dos que vivem nas terras como camponeses de achar que a vida � assim mesmo. O pr�prio senhor das terras, requerente de seu “direito” � primeira noite – e, na trama, o faz com um tremendo “sacrif�cio”, tendo em vista que ter� de dar conta de cinco noivas em uma �nica noite – � apresentado em um tom de ingenuidade, tendo em vista a tradi��o a ser cumprida.
Aqui, o foco n�o est� na viol�ncia do propriet�rio, mas, sobretudo, no que � tomado como banal. A essa altura, 1977, quando a pe�a foi concebida, o autoritarismo brasileiro estava consolidado, com uma base de apoio bastante consistente que n�o se acanhava em achar que o seu dom�nio sobre outrem lhe era de direito. A obra � uma met�fora daqueles tempos e, nota-se, seu autor n�o poderia buscar a inspira��o em momento outro para a sua escrita que n�o fosse a Idade M�dia.
Em meio a “O pagador de promessas”, “O bem-amado”, “O ber�o do her�i”, entre muitas outras, “As prim�cias” � uma obra de Dias Gomes menos conhecida do grande p�blico. Todavia, guarda em seu interior a mesma grandeza das pe�as irm�s. Sendo composta por um �nico ato dividido em sete quadros, contando com um coro de donzelas – bastante inspirado na trag�dia grega cl�ssica –, conta com uma a��o se desenrolando em tempo presente, sem muita explica��o, prendendo ainda mais o leitor nos di�logos e pensamentos dos atores, caracter�stica da din�mica teatral.
Dias Gomes faleceu em 18 de maio de 1999, tendo se fixado como um dos maiores autores do s�culo 20. Sua obra ainda � capaz de dialogar com o rural, o urbano, com o cl�ssico, o contempor�neo, transitar na linguagem arcaica e transmitir a singularidade do conflito evidente na moderniza��o brasileira. A sua capacidade de falar para todos os p�blicos � crucial para que se tenha, pela arte, um entendimento maior de nossa realidade e, consequentemente, das disputas que ocorrem em nossa forma��o. Nas �ltimas d�cadas, n�o houve outro momento em que se exigisse tanta reflex�o sobre a constitui��o do Brasil, a ponto de tra�ar paralelos com o per�odo medieval e se questionar o quanto de nossa heran�a rural ainda se incrusta em nossa forma��o. Soa familiar. Portanto, viva a sua atualidade.
* Faustino Rodrigues � psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais
A cr�tica teatral livre das amarras
Sergio Maggio*
Especial para o Estado de Minas
Desde quando se constituiu como um campo de conhecimento efetivo, a cr�tica enfrenta o que est� intr�nseco em sua etimologia: a crise. Como um g�nero liter�rio, sobretudo, o discurso anal�tico � posto constantemente em atrito com a linguagem art�stica, subjetiva em sua natureza. N�o h� d�vida de que a objetividade da cr�tica, quando utilizada para satisfazer as orienta��es de mercado, p�e em risco as camadas que envolvem a arte em sua complexidade processual de cria��o.
Numa pr�tica cotidiana, a cr�tica midi�tica costuma reduzir a obra de arte em produto adequado ou n�o para ser consumida, com as famosas “cinco estrelinhas”. Raramente, coloca-se em ponto de di�logo frontal com o processo de cria��o e o n�vel de complexidade sensorial que um bem cultural imp�e aos olhos do leitor. Como reduzir uma narrativa liter�ria de 200 p�ginas em uma resenha de 25 linhas sem mat�-la aos olhos do leitor? Se pensarmos numa obra de arte ef�mera, que se sustenta nos m�ltiplos e misturados vetores da percep��o (som, luz, cor, presen�a humana), a tarefa de escrever sobre o que se viu parece imposs�vel.
� exatamente nesse lugar de um observador em crise que se situa o livro “Dramaturgias da cr�tica”, de Patrick Pessoa (Cobog�, 230 p�ginas, 2021, RJ). A obra re�ne 77 ensaios publicados no jornal O Globo entre agosto de 2018 e agosto de 2020. � interessante fazer um par�ntese para situar a ocupa��o desses escritos do autor no peri�dico, marcado por d�cadas pela atua��o ostensiva da cr�tica Barbara Heliodora (1923-2015), que se tornou a maior persona do g�nero no pa�s, com um modelo de an�lise de espet�culo envelhecido e reduzido a uma resenha esquem�tica, mais preocupada em dizer o que funcionava ou n�o num espet�culo.
P�S-B�RBARA
Para bem e para o mal, a cr�tica de B�rbara Heliodora publicada no ve�culo de comunica��o mais lido no Rio de Janeiro, capital de entretenimento comercial fort�ssimo, desvirtuou a fun��o da cr�tica em restabelecer um di�logo simult�neo entre artistas criadores, que dominam profundamente o processo art�stico; e o p�blico heterog�neo, com uma maioria � cata das tais estrelinhas figurativas e cr�ticas “lacradoras”.
Uma gera��o de criadores contempor�neos n�o se viu contemplada pelas palavras de Heliodora, que foi virando aquela figura folcl�rica temida por uns e adorada por outros, porque quando ela falava at� muito mal das pe�as os teatros abarrotavam.
Patrick Pessoa entra nessa terra arrasada, muito embora o bom cr�tico, mas um tanto conservador, Macksen Luiz tenha segurado a sucess�o sem criar contrapontos. � nesse lugar que o autor se prop�e a pensar a cr�tica a partir de cada ensaio que produz. O resultado da leitura do conjunto acaba sendo pedag�gico no sentido de se compreender que a cr�tica contempor�nea n�o tem um modelo a ser seguido. Os ensaios de Patrick se prop�em a dialogar com os fen�menos art�sticos vivos em sua natureza ef�mera, que infinitamente lhe s�o superiores a uma �nica leitura de um �nico indiv�duo.
“H� muitos modos de come�ar esse texto. Supondo que a cr�tica teatral n�o obedece mais a nenhuma forma, a linguagem espec�fica de cada pe�a exige um modo singular de abord�-la. Se antigamente a cr�tica seguia um “check list” razoavelmente fixo – falava-se primeiramente da dramaturgia e da dire��o, depois da parte t�cnica (luz, cen�rio, figurinos, m�sica) e terminava-se adjetivando a ‘luminosa’ e ‘apagada’ atua��o das estrelas em cena – hoje come�ar � o mais dif�cil”, escreve sobre “A �ltima pe�a”.
EM CARNE VIVA
De imediato, Patrick Pessoa se coloca como num ponto de vista entre a multid�o de olhares poss�veis sobre o fen�meno art�stico que lhe atravessa naquele exato momento que perdura a pe�a teatral at� a sua morte, quando as cortinas se fecham. Ele tenta compreender de forma racional e intuitiva, combinando o incombin�vel (a objetividade da escrita e a subjetividade da arte), o que lhe afeta diante dos seus olhos sempre esbugalhados ao que passa pelo palco. E puxa o fio que supostamente lhe tocou mais como espectador sens�vel e atravessado pelas infinitas camadas de signos emitidas pelo palco, levando, em considera��o, que permanece diante de um complexo vivo de arte.
“O que acontece quando um poema nos afeta de verdade? O que se passa em n�s quando uma cria��o nos atinge fisicamente, como um soco no est�mago ou uma descarga el�trica de fio desencapado? Que tipo de rea��es a energia bruta contida numa obra de arte � capaz de desencadear? Que associa��es provoca? Quais mem�rias evoca? Que sons e imagens � capaz de arrancar �s profundezas do inconsciente e trazer � express�o?”, indaga-se a partir da sess�o de “A �ltima aventura � a morte”.
Como esse ser vivo, humano, com suas idiossincrasias em muta��o, Patrick Pessoa dissolve o clich� do cr�tico impass�vel e inquisidor, que cena a cena faz anota��es mentais sobre esse ou aquele aspecto do espet�culo. Como um espectador ideal, ele parece seguir a narrativa em seu jorro, sendo tragado para o seu complexo centro e cuspido ao fim no solo da plateia, exausto ou n�o de sucessivos gozos. � dali que se levanta para tentar trazer o sopro de vida ao que j� foi, n�o existe mais.
OLHAR HUMANIZADO
Nesse aspecto, Patrick comunga o seu humanismo diante de narrativas que corroboram para um mundo mais justo e menos desolador. Em cr�ticas sobre espet�culos que defendem direitos de negros, mulheres, LGBTQIAP+, imigrantes e temas humanit�rios, o seu esp�rito progressista move os ensaios, sendo essa, sem d�vida, a qualidade inquestion�vel de um cr�tico: o de tornar nefasto aquilo que amea�a a liberdade humana.
“O meu primo, a mulher dele, o meu vizinho, est� todo mundo virando rinoceronte?” O desconcerto expresso por uma das personagens de 'O rinoceronte', pe�a escrita por Eug�ne Ionesco, em 1957, adquiriu uma atualidade. Apesar de ter sido enquadrada como exemplar do teatro do absurdo, a pe�a parece cada vez mais menos absurda, cada vez mais... realista. Desde o ano passado, quantos brasileiros n�o repetiram exclama��es semelhantes a essa?”, escreve Patrick sobre a pe�a “O rinoceronte”.
� a partir do olhar pol�tico e est�tico que Patrick se coloca diante da arte, jorrando ensaios singulares que s� poderiam ser escritos por ele, por contaminar a pretensa objetividade com essa profus�o de ideias e emo��es que curto-circuitam o seu c�rebro no momento de traduzir a escrita em seu formato claro, coeso e coerente.
Os ensaios contidos em “Dramaturgias da cr�tica” produzem conhecimento acerca do teatro, do fazer teatral, da cena de uma �poca (a inclus�o sobre pe�as na pandemia, por exemplo), da sua mutante linguagem e do papel da arte na forma��o do homem. N�o s�o cr�ticas impositivas de erros e acertos elencados. Mas justaposi��es de ideias a partir de pensamento sobre a obra de arte.
� nesse sentido um livro generoso para novo tempo em que os cr�ticos que se sentam na primeira fila n�o cheguem � sala de ensaios querendo mais flertar com os likes de suas postagens na internet do que com a constru��o de um pensamento cr�tico transformador.
* S�rgio Maggio � jornalista, cr�tico de teatro e dramaturgo
“Dramaturgias da cr�tica”
Patrick Pessoa
Editora Cobog�
230 p�ginas
R$ 35 (pre�o m�dio)