
“(...) Viver n�o � necess�rio; o que � necess�rio � criar.
N�o conto gozar a minha vida; nem em goz�-la penso. S� quero torn�-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
S� quero torn�-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha (...)”
(Palavras de P�rtico, nota solta, n�o assinada, publicada pela primeira vez na primeira edi��o de “Obra po�tica”, Rio de Janeiro, 23/3/1960
Morreu quase ignorado, sem o reconhecimento que alcan�aria, d�cadas depois. Estava plenamente consciente, que a aspirada imortalidade liter�ria, n�o lhe chegaria em vida: o horizonte alargado e distante de seu pr�prio tempo � apreciado pelos leitores p�stumos, de gera��es futuras, registrou em “Erostratus” (“Her�strato”) inacabado ensaio escrito em l�ngua inglesa, nos anos de 1930. O g�nio de Fernando Pessoa (1888-1935), talvez, nem o pr�prio conseguira compreend�-lo inteiramente em sua po�tica da individualidade fragmentada, ainda inalcan�ada por seus contempor�neos, afirma o bi�grafo Richard Zenith, autor de “Pessoa, uma biografia” (Companhia das Letras). Obra de f�lego, traduzida por Pedro Maia Soares, do ingl�s “Pessoa: a biography” (Livelight), por extensas 1.160 p�ginas, Zenith percorre o contexto hist�rico e os detalhes da vida deste que se descreveu como uma “orquestra secreta”, de instrumentos diversos, cordas, harpas, timbales, tambores, talvez em refer�ncia � centena de heter�nimos j� listados (“136 pessoas de pessoa”, Tinta da China, 2017). A magnitude da produ��o de Fernando Pessoa e de suas tr�s principais “personas” - Alberto Caeiro, Ricardo Reis e �lvaro de Campos - levam o bi�grafo Richard Zenith � afirma��o: “Pode-se dizer que os quatro maiores poetas de Portugal do s�culo 20 foram Fernando Pessoa”.
Portugal � um pa�s sem grande tradi��o em biografias. At� ent�o, a �nica sobre Fernando Pessoa fora publicada em 1950, pelo novelista, cr�tico liter�rio, amigo e editor Jo�o Gaspar Sim�es (1903-1987), sob o t�tulo “Vida e obra de Fernando Pessoa — Hist�ria duma gera��o”. Tendo o m�rito de apresentar Pessoa ao grande p�blico, mas sem uma pesquisa rigorosa e completa, o trabalho de Jo�o Gaspar Sim�es n�o fechou a lacuna da monumental pesquisa exigida para a reconstitui��o detalhada da vida e, sobretudo obra, � altura da notoriedade alcan�ada pelo biografado. Outro livro importante foi escrito por Jos� Paulo Cavalcanti Filho, advogado e escritor. O integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) realizou extensa pesquisa e lan�ou, em 2012, “Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia”, considerado o mais completo trabalho produzido no Brasil sobre o escritor portugu�s.
At� agora, o mosaico das paisagens j� desenhadas pelo “vulc�nico” escritor Fernando Pessoa saltou principalmente de uma misteriosa arca de madeira, ancorada em sua casa, que reuniu a produ��o dele em vida. Continha mais de 25 mil pap�is. P�ginas de uma hist�ria ainda sem fim, ali estavam manuscritos organizados, contos, tradu��es, coment�rios pol�ticos, pe�as de teatro e, igualmente abundantes, escritos fragment�rios, ao irromper da cria��o, fossem em folhas soltas de caf�s, em cadernos, em cart�es de visitas. A maior parte desse invent�rio – do qual emerge a identidade de Pessoa ancorada sobre o sistema de heter�nimos – est� hoje catalogada na Biblioteca Nacional de Portugal, ainda por ser inteiramente decifrada. Muito ainda h� para ser revelado.
Richard Zenith se prop�s ao desafio, com pertin�ncia: � considerado um dos principais especialistas em Fernando Pessoa. Nasceu em Washington, em 1956. Vive desde 1987 em Portugal (tem tamb�m cidadania lusa), e construiu uma carreira de dedica��o � l�ngua portuguesa e � pesquisa sobre Pessoa: revelou muitos textos in�ditos do autor e organizou diversas edi��es de sua poesia e de sua prosa, entre as quais, o “Livro do desassossego” e “Her�strato e a busca da imortalidade”, reunindo escritos em ingl�s “Imperman�ncia”, “A inutilidade da cr�tica” e “Her�strato”. Publicou uma fotobiografia de Pessoa (em parceria com Joaquim Vieira) e contribuiu para a exposi��o “Fernando Pessoa: Plural Como o Universo” (S�o Paulo, 2010; Rio de Janeiro, 2011; Lisboa, 2012). Foi laureado, em 2012, com o Pr�mio Pessoa. Zenith aprendeu portugu�s no Brasil e tamb�m traduziu para o ingl�s as obras de Jo�o Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, al�m dos portugueses Cam�es e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Cartas in�ditas, pesquisas em arquivos, uma viagem a Durban, na �frica do Sul, cidade em que Pessoa passou nove anos da inf�ncia, al�m de entrevistas com descendentes de parentes e amigos do poeta est�o entre as fontes de pesquisa de Zenith, j� familiarizado com os muitos dos cadernos e pap�is deixados por Pessoa. Transitando num amplo universo imagin�rio, tal qual William Shakespeare, a vida de Fernando Pessoa foi uma alegoria, registra o bi�grafo. “Tentei construir, com tantos detalhes dignos de cr�dito que pude reunir, uma vida ‘cinematogr�fica’: como Pessoa se parecia e se comportava, para onde seus passos o levaram, as pessoas com quem interagiu e os animados cen�rios onde sua vida se desdobrou. Mas esse filme, por si s�, pouco nos diria sobre o escritor Pessoa, cuja vida essencial teve lugar na imagina��o. E assim minha maior ambi��o foi mapear, tanto quanto poss�vel, sua vida imagin�ria” considera Zenith.
O esfor�o de Zenith se traduz tamb�m em um desafio ao leitor, que encontra, j� no pr�logo da extensa biografia, uma chave para empreender a grande viagem pelo imagin�rio de Pessoa: nele, o bi�grafo apresenta algumas das m�ltiplas pessoas que, por 47 anos, povoaram, em vida, a mente do poeta. Ali tamb�m se introduzem as passagens mais marcantes na vida de Pessoa, nascido em Lisboa, em 13 de junho de 1888, que teve, aos cinco anos, a inf�ncia marcada pela morte do pai, Fernando Ant�nio Nogueira Pessoa e do irm�o rec�m-nascido, Jorge. A m�e e vi�va, Maria Madalena Pinheiro Nogueira casou-se novamente com o capit�o de navio, Jo�o Miguel Rosa, logo nomeado c�nsul de Portugal em Durban, maior cidade da col�nia brit�nica de Natal, na �frica do Sul. Pessoa passou a inf�ncia e cursou a escola regular naquela cidade, no ambiente conflagrado que submetia, sob viol�ncia, as popula��es aut�ctones e tamb�m pela Segunda Guerra dos B�eres (1899), entre colonos protestantes e seus descendentes, de origem europeia contra o dom�nio ingl�s.
Quando retornou de Durban a Portugal, em 1905, Pessoa assistiu � ascens�o de um ditador ao poder, ao assassinato do rei e, em 1910, a uma revolu��o republicana que p�s fim � monarquia. O mundo, e particularmente a Europa, sofreria em seguida com a Primeira Guerra Mundial. Zenith anota a desastrada participa��o de Portugal no conflito, o que deixou um legado social e econ�mico favor�vel, naquele pa�s e continente, � ascens�o de regimes totalit�rios. Na It�lia, Mussolini. Na Alemanha, Hitler. Em Portugal, uma ditadura militar assumiu o poder em 1926, abrindo caminho para o salazarismo. A biografia de Pessoa n�o se furta a mergulhar no contexto hist�rico e traz material de suporte e pesquisa, como mapas, a linha do tempo com a cronologia de vida; caderno de fotos, notas, refer�ncias e fontes, �ndice remissivo, al�m de um anexo com a descri��o do perfil de 44 dos heter�nimos criados por Pessoa, citados na biografia. Preparado intelectualmente e com fontes de pesquisa robusta para essa empreitada, Richard Zenith condensou, em quatro cap�tulos, a vida do autor: “O nascido estrangeiro (1888-1905)”; “O poeta como transformador (1905-1914)”; “Sonhador e civilizador (1914-1925)”; “Espiritualista e humanista (1925-1935)”.
Imortalidade
Entre tantas “personas” de estilos e produ��o diversos, cada qual de elaborada biografia, mapa astral e participa��o no debate p�blico e liter�rio, j� plainam em cen�rio da imortalidade, al�m do pr�prio Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e �lvaro de Campos. Diferentemente de pseud�nimos, que guardam a identidade de uma �nica personalidade, foram assim definidos por Fernando Pessoa em uma “T�bua bibliogr�fica” de suas obras, publicada em 1928: “A obra pseud�nima � do autor em sua pr�pria pessoa, no nome que ele assina; a heter�nima � do autor fora de sua pessoa, � de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu”. Pessoa, Caeiro, Reis e Campos s�o, assim, os fios de maior visibilidade desta teia complexa de pelo menos 136 personas, alinhavada, mas n�o inteiramente desvendada. Cerca de 30 delas assinaram pelo menos uma obra significativa, segundo registra o bi�grafo Richard Zenith.
Obcecado pelo ocultismo e realidade esot�rica, inclusive presentes em seus poemas nos seus �ltimos anos de vida, para Zenith, a entrega obstinada de Pessoa pela literatura seria tamb�m, em certo sentido, a busca espiritual, um meio de expressar a verdade e de cri�-la. “Seus heter�nimos podem ser interpretados como um ato religioso, como sua forma de homenagear Deus, realizando seu potencial divino como um cocriador, � imagem e semelhan�a de Deus. N�o s� isso: Pessoa sugeriu fortemente que os heter�nimos eram um meio para a transforma��o alqu�mica do eu, permitindo-lhe progredir em sua jornada espiritual”, registra Zenith.
Criador e criaturas
Caeiro nasceu em 1914, em princ�pio como uma brincadeira dirigida ao melhor amigo de Pessoa, o poeta, contista e ficcionista portugu�s, M�rio de S� Carneiro (1890-1916), membro da “Gera��o d´Orpheu”, que ao lado de Fernando Pessoa e Almada Negreiros, entre pintores como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor, introduziu o modernismo na literatura e artes em Portugal. Juntaram-se em torno da revista Orpheu - refer�ncia ao m�tico m�sico grego que, para salvar a sua mulher de Hades (inferno), teria de traz�-la ao mundo dos vivos sem olhar para tr�s. Tratava-se, com o movimento, de “agitar as �guas, subverter, escandalizar o burgu�s” e colocar as conven��es sociais sob questionamento.
Quem descreveu o “parto” de Alberto Caeiro foi o pr�prio Fernando Pessoa, vinte e um anos depois de sua cria��o, em carta sobre a origem dos heter�nimos escrita ao cr�tico Adolfo Casais Monteiro, s� divulgada ap�s a sua morte: “Levei uns dias a elaborar o poeta, mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de mar�o de 1914 - acerquei-me de uma c�moda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de p�, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa esp�cie de �xtase cuja natureza n�o conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um t�tulo, ‘O guardador de rebanhos’. E o que se seguiu foi o aparecimento de algu�m em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre”.
Alberto Caeiro, batismo que, segundo sugere Richard Zenith, homenageia S� Carneiro - � personagem central do esquema de heter�nimos de Fernando Pessoa. N�o tem instru��o formal, mescla sabedoria e inoc�ncia, em poesia pastoril vinculada �s paisagens e natureza. Al�m de “O guardador de rebanhos”, s�o de sua autoria “Poemas inconjuntos” e “O pastor amoroso”. N�o apenas de Pessoa, mas Caeiro tornou-se tamb�m mestre de Ricardo Reis e �lvaro de Campos, entre outros heter�nimos pessoanos, que lhe dedicam em suas obras pref�cios e refer�ncias.
E � Ricardo Reis - autodidata em grego, autor de “Odes de Ricardo Reis”, que em 1919, em protesto contra a proclama��o da Rep�blica em Portugal, mudara-se para o Brasil - quem comenta, em apontamento solto, “O guardador de rebanhos”. Segundo Reis, trata-se de obra de “desconcertante coer�ncia intelectual (mais ainda do que sentimental, ou emotiva)”, da ordem e disciplina, da “intelig�ncia raciocinada das coisas”, express�o que atribui � ess�ncia do paganismo, que Caeiro veio reconstruir, “pela magia harm�nica (mel�dica) da sua emo��o”.
“Eu nunca guardei rebanhos,
Mas � como se os guardasse.
Minha alma � como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela m�o das Esta��es
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um por de sol
Para a nossa imagina��o,
Quando esfria no fundo da plan�cie
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza � sossego
Porque � natural e justa
E � o que deve estar na alma
Quando j� pensa que existe
E as m�os colhem flores sem ela dar por isso (...)”
(“O guardador de rebanhos”, Alberto Caeiro)
Diferentemente do vi�s metaf�sico do heter�nimo �lvaro de Campos, para Alberto Caeiro, as coisas nada significam, nada ocultam, simplesmente existem: “Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: - As coisas n�o t�m significa��o: t�m exist�ncia. As coisas s�o o �nico sentido oculto das coisas”. O bi�grafo Richard Zenith considera, assim, que com os seus versos, Caeiro coloca em xeque todo o conhecimento acumulado por Fernando Pessoa em anos de leitura, pois, “ver as coisas como s�o” exige o aprendizado em desaprender. “Se Caeiro ensinou alguma coisa a Pessoa foi a arte de desaprender, de ver como se fosse a primeira vez”, afirma Zenith. Para o pensamento l�gico e cristalino de Caieiro, que enaltece a natureza e as suas paisagens, levando Fernando Pessoa a defini-lo como um “S�o Francisco de Assis ateu”, a exist�ncia de Deus � irrelevante para o objetivo da vida, que � simplesmente viver. “Caieiro n�o era um verdadeiro ateu, muito menos um santo. Mas era uma religi�o, cujo primeiro e principal adepto foi Fernando Pessoa”, observa Richard Zenith.
Al�m de coment�rios sobre Caeiro, o heter�nimo Ricardo Reis tamb�m fez cr�ticas ao seu companheiro �lvaro de Campos, um engenheiro naval formado em Glasgow, que viajou pelo Oriente, experi�ncia que lhe inspirou os poemas da obra “Opi�rio”. Est�o entre as obras pessoanas mais populares, “Tabacaria”, “Ode triunfal”, “Ode mar�tima”, “Lisbon revisited” e “O que � a metaf�sica”. Segundo Ricardo Reis, num extravasar de emo��es, em que a ideia serve a emo��o, n�o a domina - e o ritmo � “escravo da emo��o que esse pensamento agregou a si, o serve”, �lvaro de Campos est� em permanente e insaci�vel busca por “sentir tudo, de todas as maneiras”, observa Ricardo Reis.
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos poss�veis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num s� momento difuso, profuso, completo e long�nquo.
(...)
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, n�o fiz sen�o extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E h� em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente (...)
(�lvaro de Campos, “Sentir tudo de todas as maneiras”)
“Irreprim�vel e impertinente, �lvaro de Campos costumava interagir com Pessoa, ora brigando com ele em artigos ou entrevistas publicados na imprensa portuguesa, ora colaborando estreitamente em prol de uma causa comum. �s vezes, Campos o substitu�a em situa��es sociais, para consterna��o de quem esperava que o pr�prio Pessoa aparecesse, ou agia como porta-voz de seu criador, publicando manifestos numa linguagem inflamada que Pessoa n�o conseguia exibir por conta pr�pria”, aponta Richard Zenith.
Segundo o bi�grafo, enquanto Caieiro era a rocha s�lida e “religi�o” da salva��o po�tica de Pessoa; �lvaro de Campos era seu bra�o direito e companheiro. “Campos era t�o pr�ximo de Pessoa que acabou atrapalhando sua �nica tentativa de ter uma vida amorosa, com Of�lia Queiroz. E era t�o talentoso como poeta urbano das sensa��es que se tornou, inadvertidamente, um obst�culo entre pessoa e seu melhor amigo, S�-Carneiro”, considera Richard Zenith.
Sexualidade
Sem interesse pela vida amorosa sexual, � quase certo que Fernando Pessoa tenha morrido virgem, considera Richard Zenith. Encetou um vacilante romance com Of�lia Queiroz, com quem trocou alguns beijos, mas a hist�ria n�o avan�ou. De curta dura��o, segundo o bi�grafo, a paix�o de Pessoa por Z�lia foi suficiente para satisfazer-lhe a curiosidade sobre como seria amar uma mulher. J� a curiosidade sobre o amor homoer�tico satisfez-se por meio da observa��o de dois de seus melhores amigos, homossexuais declarados e por Pessoa defendidos publicamente, sempre que atacados. Na escrita, a poesia homoer�tica, sobretudo entre 1910 e 1919, brotou em �lvaro Campos, - “um Pessoa visceral, todo sentimento e instinto, antes da intromiss�o da raz�o” -, fosse, como sublinha Zenith, pela fantasia de ser abusado por piratas (“Ode mar�tima”) ou agarrado, no escuro, por marinheiros (“Sauda��o a Walt Whitman”); ou no romance secreto com um rapaz da cidade de York (“Contempor�nea”); ou ainda o amor pelo jovem louro Freddie (“Passagem das horas”). Mas Zenith lembra que tamb�m o poeta menciona, nos dois poemas, uma namorada, Daisy e Mary, com quem se deliciava lendo poesias.
“Campos n�o estava profundamente comprometido com nenhum (ou nenhuma) de seus (ou suas) amantes, o que se pode adivinhar por sua confiss�o, j� aludida, de que embora fumasse �pio e bebesse absinto preferia ‘pensar em fumar �pio a fum�-lo’ e gostava mais de ‘olhar para o absinto que beb�-lo”, escreve Zenith. De forma an�loga, tamb�m Pessoa - que acima de tudo preferia a si mesmo a qualquer outra companhia - tamb�m tinha mais desejo em escrever sobre o amor entre homens a amar de fato um homem, considera o bi�grafo. O bi�grafo sustenta que n�o apenas a sexualidade, mas tamb�m a espiritualidade e vis�o pol�tica de Fernando Pessoa foram expressas e vividas por meio das palavras. “Pessoa n�o teve rela��es sexuais com nenhum homem ou mulher, n�o rezou a nenhum deus e n�o se filiou a nenhum partido pol�tico. E, depois de regressar da �frica do Sul para Lisboa, raramente se afastou dessa cidade. Escreveu e escreveu, em v�rios g�neros, sobre incont�veis assuntos”, observa Zenith.
Plural como o universo
“S� plural como o universo!”, escreveu Fernando Pessoa num rasgo de papel encontrado, nos anos 60, no precioso ba�, que acumulou o tesouro das paisagens pessoanas. A dispers�o liter�ria de Fernando Pessoa espelha, segundo Richard Zenith, a aus�ncia de unidade intr�nseca ao mundo que habitamos. “Sem saber exatamente o que estava fazendo, ele nos pr�-diagnosticou, j� que seus escritos falam de nosso senso contempor�neo de autoestranhamento (quando paramos e pensamos sobre n�s mesmos). Seu universo de partes desconexas prefigurou nossa pr�pria vis�o de mundo, com os desenvolvimentos na hist�ria, na ci�ncia e na filosofia, que nos desiludiram de qualquer todo harmonioso que outrora valoriz�vamos. Evidentemente, tudo o que existe deve, em �ltima inst�ncia, estar conectado, uma vez que � parte do existente, e os atuais cosm�logos e fil�sofos da ordem do mundo desenvolveram algumas teorias elegantes desse panorama mais amplo, no qual o Big Bang talvez seja apenas um evento isolado. De forma semelhante, Fernando Pessoa teve uma vis�o surpreendentemente ampla do que constitui um eu, uma vida, um sentido”.
Viajar! Perder pa�ses!
Ser outro constantemente,
Por a alma n�o ter ra�zes
De viver de ver somente!
N�o pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A aus�ncia de ter um fim,
E da �nsia de o conseguir!
Viajar assim � viagem.
Mas fa�o-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto � s� terra e c�u.
(Fernando Pessoa, “O Cancioneiro”)
Pessoa segue encantando leitores no mundo inteiro, instigando a pesquisa acad�mica, desse universo imagin�rio e pleno em dizer po�tico. Passadas quase nove d�cadas de sua morte, grande parte de sua obra e poemas inacabados ainda n�o foram transcritos e publicados. O que quis foi n�o simplesmente ouvido; mas escutado sem qualquer preocupa��o com o espa�o-tempo, j� que ele pr�prio, estava convicto de que, ao renunciar aos c�digos vigentes, lan�ava-se � imortalidade em multipessoas, em multiversos.
“Dai-me rosas e l�rios,
Dai-me flores, muitas flores
Quaisquer flores, logo que sejam muitas...
N�o, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores,
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos pe�o
Que me dei flores...
Sejam essas as flores que me deis (....) (Fernando Pessoa, “Obra po�tica”)
Novas edi��es
Com organiza��o e introdu��o de Jer�nimo Pizarro, especialista respons�vel por dezenas de estudos e publica��es sobre Fernando Pessoa, a Editora Todavia lan�ou novas edi��es de duas obras do poeta portugu�s: o livro de poesias “Mensagem” (2022) e o “Livro do desassossego” (2023). “Mensagem” reflete sobre o passado lusitano — as viagens mar�timas, os mitos nacionais, o apogeu e a queda do Imp�rio. J� o “Livro do desassossego” � obra p�stuma que re�ne mais de quatrocentos fragmentos de prosa escritos, sem regularidade, entre 1913 e 1934, no contexto europeu da ascens�o do fascismo e a chegada de Hitler ao poder. A instabilidade e a incapacidade de firmar posi��o s�o aspectos que atravessam essa obra, como observa o escritor Tiago Ferro, que assina o posf�cio. Instabilidade de um pensador que, em meio a um mundo em transforma��o, se dedica a uma profunda reflex�o sobre a vida e o que pode instigar um esp�rito irrequieto: “A minha vida � uma febre perp�tua, uma sede sempre renovada.”
“Pessoa, uma biografia”
- Richard Zenith
- Tradu��o de Pedro Maia Soares
- Companhia das Letras
- 1.160 p�ginas
- R$ 199,90
“O livro do Desassossego”
- Fernando Pessoa
- Todavia Editora
- 528 p�ginas
- R$ 79,90. E-book: R$ 39,90
“Mensagem”
- Fernando Pessoa
- Todavia Editora
- 128 p�ginas
- R$ 54,90. E-book: R$ 36,90