
Mirian Chrystus
Especial para o EM
Para os que a conhecem, a palavra que define Elza Cataldo � “determina��o”; para ela mesma, � “paix�o”, mergulhar de cabe�a nos projetos, n�o fazer “nada pela metade”. Assim foi desde o Doutorado em Educa��o, em Paris, onde estudou Pol�tica educacional, no come�o dos anos 1980. Sem saber quase nada de franc�s, em tr�s meses estava compreendendo e participando das aulas, promessa feita ao examinador que a selecionou.
Nos �ltimos dez anos, a paix�o foi canalizada para a realiza��o do filme “As �rf�s da rainha”, que incluiu uma minuciosa pesquisa em arquivos de Portugal, Espanha e tamb�m morar na Bahia onde a Inquisi��o aportou em 1591, no Brasil. O filme, que tamb�m se passa naquele ano e est� em cartaz nos cinemas, � a hist�ria de tr�s �rf�s protegidas pela rainha de Portugal que s�o mandadas para se casar e iniciar a coloniza��o no pa�s, numa fict�cia Vila Morena, no Rec�ncavo baiano (a loca��o foi em Tocantins, Minas Gerais).
Para al�m da paix�o pelo cinema, Elza Cataldo � uma feminista que, em todos seus filmes fala da hist�ria das mulheres, segundo ela, t�o apagada, t�o esquecida. A seguir, a entrevista com Elza Cataldo:
Voc� fez Doutorado em Educa��o, em Paris, na Sorbonne, e Cinematografia, no in�cio da d�cada de 1980, em Nanterre. Como foi a uni�o das duas atividades?
Paris, em si, j� � uma cidade cinematogr�fica e, na �poca, tinha uns trezentos cinemas. Eu estudava a utiliza��o do cinema na Educa��o e frequentava um curso de Jean Rouche, do “cin�ma verit�”, em que aprend�amos a usar o corpo como instrumento (ele n�o admitia o uso do trip�). T�nhamos, inclusive, aulas de educa��o f�sica para fortalecer pernas e bra�os para carregar a c�mera por muitas horas. Eu via muitos filmes mais pr�ximos da nossa realidade e que n�o passavam no Brasil: cinema japon�s, indiano. Quando voltei, atrav�s de Albicoco, um franc�s, que queria criar salas de cinema no Brasil, e dois amigos, criamos o Cine Belas Artes, no qual fui programadora por 14 anos. A princ�pio, conciliei cinema e Universidade. Depois, me joguei sem rede de prote��o, sa� da UFMG e fiquei s� com o cinema.
E o cinema enquanto fazer, como come�ou?
Como programadora, eu frequentava os principais festivais do mundo, Berlim, Veneza, Cannes. Meu crit�rio de escolha era baseado em mim mesma: eu trazia os filmes que mais me tocavam. O perfil do Belas Artes era muito filme franc�s, mas tamb�m de outros pa�ses, o p�blico queria uma diversidade est�tica. Nessas viagens, terminei ficando muito pr�xima do cr�tico Rubens Ewald Filho. Um dia ele me perguntou: “Voc� gosta tanto de cinema, por que n�o faz um filme?” Essa pergunta mudou a minha vida. Sete anos depois, quando estreou meu primeiro longa-metragem, “Vinho de rosas”, disse a ele que esta era a minha resposta.
Os seus filmes, document�rios ou n�o, sempre t�m uma perspectiva feminista. Mas quando a conheci, em 1974, voc� n�o era pr�xima do movimento feminista. Quando se deu esta aproxima��o?
O meu feminismo � muito peculiar, ligado a sentimento, ele tamb�m veio principalmente pelo cinema. Eu tinha leituras de cunho sociol�gico, afinal de contas eu estudei na Fafich, nos anos 1970. Mas ele ficou mais evidente quando abordei a vida de Joaquina, a irm� de Tiradentes em “Vinho de rosas”, em 2005. Ali comecei a entender o quanto a hist�ria das mulheres era uma hist�ria de esquecimento, de apagamento. A partir dali, todos os meus filmes, “A m� not�cia”, “O lunarium” e tantos outros curtas, falam sobre as mulheres.
No caso de seu mais recente filme, que acabou de estrear, tamb�m se conta uma hist�ria de mulheres que realmente existiram, as “�rf�s da rainha”, uma categoria hist�rica que, voc� conta, foi desenvolvida pelo historiador Ronaldo Vainfas.
Elas foram jovens que viveram na corte portuguesa, mas afastadas, sob a prote��o da rainha e que foram enviadas �s col�nias, como Goa, na �ndia, e Brasil, a contragosto, praticamente sequestradas. Eu conto a hist�ria de tr�s delas, o conflito com o ambiente selvagem, in�spito, a brutalidade dos homens. O medo, o terror delas na nova situa��o, as tentativas de adapta��o.
A cena que mostra isso em seu grau mais extremo � o estupro de Brites por seu marido. Como foi faz�-la? A mais famosa cena de estupro do cinema � “O �ltimo tango em Paris” e Bernardo Bertolucci, o diretor, n�o avisou a atriz.
E ele acabou com a vida dela, Maria Schneider. Eu vi muitos filmes de diretoras, Jane Campion (de “O piano”) � minha refer�ncia, e me pergunto (� uma pergunta dif�cil), se mulheres n�o filmam este tema de modo muito diferente. N�s fizemos o oposto. Tudo foi muito preparado, conversado, desde o uso da c�mera no alto, em plong�, focando o rosto da atriz e o homem de costas. Eu quis mostrar o sofrimento da mulher e n�o explorar a sexualidade da cena. At� porque, hoje, h� uma discuss�o sobre isso, se mostrar uma cena de sexo ou viol�ncia n�o termina por inspirar quem assiste. Quanto � realiza��o da cena, h� atores que quando v�o participar de uma cena de viol�ncia, se afastam, tratam mal a companheira, para dar “um clima”. Mas o ator Alexandre Cioletti foi muito cuidadoso e delicado. Mesmo assim, quando terminou a filmagem, todos no est�dio choravam.
E por que voc� quis esta cena no filme?
Porque eu queria mostrar as consequ�ncias na vida das personagens estupradas. Brites, e sua irm� Leonor, que � estuprada na capela (a cena � apenas sugerida) mudam, ficam mais tristes. Depois Leonor, diante do Inquisidor que chega ao povoado, denuncia o estupro por seu cunhado, marido de Brites. Esta cena, da den�ncia ao inquisidor, eu adaptei da vida real, ela foi retirada de um Livro da Inquisi��o, � a primeira den�ncia de estupro registrada no Brasil por Luiza D’Almeida, em 1591, que vivia num engenho. Naquele momento hist�rico, era a grande oportunidade, porque n�o havia nenhum lugar pra isso.
J� Brites que era maltratada e estuprada cotidianamente, tenta, de todos os modos realizar o desejo do marido, dar-lhe um filho.
Ela tenta desesperadamente se adaptar, construir uma rela��o no casamento. Como, at� hoje, tantas mulheres fazem, apesar de todos os abusos e viol�ncias sofridos no ambiente dom�stico.
Leonor termina se acertando com Escobar, um judeu culto e tolerante. E M�cia larga tudo e vai embora com um ind�gena.
M�cia se apaixona por um ind�gena, vai embora com ele para o sul - mas, a sua paix�o � muito maior, � principalmente pela floresta, que, apesar de proibida, vivia l�, pintando e desenhando.
“As �rf�s da rainha”
- De Elza Cataldo
- Em cartaz em Belo Horizonte
