
O �cone Che Guevara tornou-se muito maior do que o homem Che Guevara. � Anderson quem assina o pref�cio da HQ e vai direto ao ponto na relev�ncia de Che, entre admiradores e detratores, devido ao seu idealismo para tentar libertar povos oprimidos do imperialismo colonialista. “Che Guevara � uma figura incompar�vel no mundo moderno. Desde a sua morte em 1967, aos trinta e nove anos, o revolucion�rio argentino conquistou um legado p�stumo de dimens�es t�o populares quanto mitol�gicas em todo o mundo”, diz o bi�grafo.
“Mais do que qualquer outra figura cultuada na contemporaneidade, mais do que Elvis, Marilyn Monroe, Messi ou Lady Gaga, do que Mao Ts�-Tung ou qualquer retrato pop de Andy Warhol, a imagem gr�fica de Che – sobretudo o rosto implac�vel retratado por Korda [Che com a boina fotografado pelo cubano Alberto Korda em 1960], se transformou provavelmente na imagem humana mais conhecida do mundo”, afirma Anderson.
O guerrilheiro � reverenciado como “S�o Che de la Higuera” na aldeia boliviana onde foi assassinado e reproduzido em representa��es gr�ficas como a reencarna��o de Cristo em sua agonia, devido � exposi��o do seu cad�ver estirado na lavanderia para onde foi levado. H� tamb�m document�rios, m�sicas, pe�as teatrais e incont�veis objetos e camisetas mundo afora com o rosto de Che.
O belo trabalho de Hern�ndez na HQ aumenta essa curiosidade. A obra � dividida em tr�s partes: “O dr. Guevara”, “Cuba” e “Os sacrif�cio necess�rio”, com cores distintas para cada fase da vida de Che. E come�a com a seguinte ep�grafe: “Minha casa sobre rodas voltar� a ter dois p�s, e meus sonhos, nenhum limite, ao menos at� que as balas se manifestem”. As primeiras aspas do livro s�o uma reflex�o que surgem durante um sonho do jovem Ernesto: “O futuro pertence ao povo. E pouco a pouco ou de uma s� vez, ele vai tomar o poder, aqui e em todo o mundo”. Partindo da�, Che cursa medicina em Buenos Aires, depois abandona a casa dos pais e sai por um mundo j� influenciado pelas revolu��es comunistas consolidadas na Uni�o Sovi�tica e na China at� se integrar ao grupo de outro jovem, Fidel Castro, empenhado em derrubar Fulg�ncio Batista – que, nas palavas do cubano, transformara a ilha caribenha num “prost�bulo” – e fazer a Revolu��o Cubana.
Jos� Hern�ndez mostra a trajet�ria de Che com uma impressionante riqueza de detalhes cenogr�ficos para ambientar as a��es em cada quadro da HQ. S�o bem explorados graficamente a amizade e os di�logos com Fidel Castro e outros revolucion�rios, sua vida como pai ausente na vida dos filhos, a luta armada em Cuba, as frequentes crises de asma, a sua “loucura” ing�nua em achar que poderia espalhar a revolu��o da ilha para a �frica – mais especificamente no Congo – e para a Am�rica, sem log�stica, armas e homens suficientes para enfrentar situa��es completamente adversas, tudo em nome de um idealismo ut�pico que culmina com sua captura e execu��o na Bol�via, em 1967. E ainda mais, o enterro do seu corpo em local desconhecido para evitar mitifica��o. Os restos mortais de Che s� foram encontrados e exumados quase 30 anos depois, em 1995. Nada impediu a perpetua��o da lenda revolucion�ria, muito al�m do homem.
NOVOS TEMPOS
Mas nem tudo � “ternura”. No pref�cio da HQ, Jon Lee Anderson destaca tamb�m que a adora��o popular tem um lado inverso que aponta Che como psicopata e assassino. Afinal, Che foi respons�vel por julgamentos sum�rios e pelot�es de fuzilamento de 300 inimigos – a maioria torturadores e assassinos do regime de Fulg�ncio Batista em Cuba. “Em Miami, h� uma senhor de origem cubana que assumiu a tarefa de minar a imagem positiva de Che, denunciando-o como assassino s�dico, inclusive psicopata, se dedicando a atacar celebridades vistas com camisetas estampadas com o rosto do guerrilheiro”, conta Anderson. “Outro exilado cubano, o ex-agente da CIA [Central Intelligence Agency dos Estados Unidos] F�lix Rodriguez – que deu a ordem para a execu��o de Che – tamb�m tem uma fixa��o pelo homem cuja morte o fez famoso”, relata o bi�grafo.
Mas, atualmente, n�o s�o apenas os tradicionais opositores de Che Guevara ou quem � de direita que o criticam. Defensores de pautas identit�rias, principalmente jovens, fazem revisionismo, inclusive em nome do politicamente correto, sem considerar a �poca em que o revolucion�rio viveu. Jon Lee Anderson lembra que “nenhuma figura pol�tica perdura no tempo eternamente” e que “novas gera��es relembram e revisam as mem�rias desses personagens, julgando-os com olhos frescos”. Seria o caso da suposta homofobia de Che Guevara. “Tal preocupa��o � produto, claro, de uma gera��o cujas percep��es pol�ticas e sociais foram formadas em uma �poca menos marcada por no��es de direita e esquerda do que por quest�es de identidade sexual e de g�nero”, avalia Anderson.
“Por encarnar o eterno modelo de rebeldia juvenil, a figura de Che Guevara talvez evoque, mais do que outras, a necessidade de ser revista sob as lentes de cada gera��o. Como explicar Che a jovens que, ao contr�rio dos que viveram na d�cada de 1960, n�o s�o capazes de se imaginar empunhando um fuzil para lutar por suas ideias? Para uma gera��o mais acostumada a viver a experi�ncia da resist�ncia com cliques em i-Phones do que saindo �s ruas, a vida de Che sempre ser� reveladora”, considera Anderson.
O bi�grafo ressalta ainda Che Guevara foi um homem de carne e osso e como tal, em contexto de revolu��o e guerra, matou outras pessoas. Era um jovem argentino, bem-nascido, formado em medicina, que decidiu pegar em armas para tentar mudar o mundo que considerava injusto. Em entrevista ao jornal El Pa�s no lan�amento da HQ em Guadalajara, no M�xico, Anderson contou que Che Guevara n�o sabia dan�ar, era surdo para m�sica, inclusive tango. N�o ingeria bebida alco�lica porque complicava sua asma. “Era um monge em um pa�s sensual. Aos domingos ia cortar cana para dar exemplo. Na ilha, deviam pensar: ‘Caramba, esse � o cara mais chato que veio a Cuba!’”
J� em entrevista em mar�o deste ano ao jornal O Globo, Anderson tamb�m fala das gera��es de hoje. “Nos �ltimos anos, foi interessante ver esse tipo de pol�tica identit�ria entrando nos debate sobre Che. Outro dia, me espantei quando um jovem me entrevistou e s� lhe interessava saber se Che era assassino, homof�bico e racista. De fato, h� certas opini�es sobre ra�a e sobre gays atribu�das a Che, mas foram feitas quando ele era adolescente. Como todo mundo, ele � uma figura que evoluiu com o tempo, e esses coment�rios deixaram de represent�-lo depois”, disse o bi�grafo.
Anderson reafirma que ainda se surpreende por ter de explicar hoje um fato hist�rico que parece �bvio: revolucion�rios matavam, embora “isso n�o fosse necessariamente f�cil ou prazeroso” para eles. “Quando certa vez me vi explicando isso ao vivo em rede nacional, percebi pela primeira vez que est�vamos entrando nesse novo mundo. Esse ringue das redes sociais em que pessoas s�o avaliadas instantaneamente. Hoje, se julga a vida toda de uma figura hist�rica por �nica declara��o. N�o � nem mesmo por uma a��o, mas por uma frase dita na adolesc�ncia. Se formos por a�, ter�amos que cancelar quase todo mundo”, conclui o bi�grafo de Che Guevara.
“Che: Uma vida revolucion�ria”
- Jos� Hern�ndez
- Tradu��o de Julia Codo
- Quadrinhos da Cia.
- 440 p�ginas
- R$ 109,90 (impresso)
- R$ 54,95 (digital)