
Giovana Proen�a
Especial para o EM
Primeiro romance de Lisa Ginzburg a chegar ao Brasil, "Cara paz" tem tudo para cair no gosto dos leitores brasileiros. A caminho de Minas Gerais para eventos em Arax� e Belo Horizonte, a escritora italiana afirma - em portugu�s fluente, vale destacar - ter uma qu�mica com o pa�s, que j� marcou presen�a em sua fic��o. Ao lado da conterr�nea Elsa Morante, Lisa aponta Clarice Lispector entre as suas principais influ�ncias: "Ela re�ne as experi�ncias humanas perto do cora��o selvagem. Morante tamb�m � assim". A ess�ncia de "Cara paz", n�o por coincid�ncia, est� nos espinhosos la�os familiares. Na trama de Lisa Ginzburg, as irm�s Maddalena e Nina pensam em sua situa��o com crueza: "orf�s sem s�-lo". A m�e, Gloria, foge de um arranjo familiar repressivo. Infeliz com o casamento, ela reconstr�i a vida longe do lar.
Leia: Fliarax� confirma presen�a da italiana Lisa Ginzburg
As irm�s crescem em meio a uma fam�lia disfuncional ou, como define a escritora, simplesmente "muito estranha". As mem�rias dessa inf�ncia an�mala s�o narradas por Maddalena, j� adulta, e encantaram a editora brasileira de "Cara paz", Simone Paulino. "Ao longo da hist�ria, ao se transformarem em mulheres, as irm�s oscilam num movimento de espelhamento e oposi��o para conseguirem se manter � tona das pequenas e grandes tempestades existenciais que as assolar�o durante a vida", escreveu a editora da N�s, � �poca do lan�amento nacional, em abril �ltimo: "Cara paz' � um dos livros mais bonitos, fortes e tocantes entre os tantos que eu j� publiquei".
Nas letras italianas, o sobrenome de Lisa � c�lebre. Neta de Natalia Ginzburg (1916-1991) - a autora de "Caro Michele"e "As pequenas virtudes"-, ela aponta que a influ�ncia da av� contou na escolha da carreira de escritora: "Minha av� teve tempo de ler uma novela que escrevi, ela me encorajava muito".
Lisa ter� dois compromissos em Minas Gerais. Ser� uma das principais atra��es da 11ª edi��o do Festival Liter�rio de Arax� (Fliarax�), que ser� realizado entre 5 e 9 de julho, na cidade mineira. A autora italiana fala ao p�blico de Arax� no s�bado, dia 8, �s 21h. Dois dias depois, em Belo Horizonte, participa de edi��o especial do projeto "Sempre um papo"na Casa Fiat de Cultura. Confira, a seguir, a entrevista de Lisa Ginzburg ao Pensar:
Os la�os familiares se destacam em "Cara paz". Como foi construir essas rela��es?
A primeira imagem que chegou � minha mente foi Nina. Mas, pelos olhos de Maddalena. Gosto da ideia de uma personagem que se cria pelos olhos de um outro. Essa � uma din�mica presente em minha maneira de narrar. A trajet�ria dos olhares me interessa muito. N�s tamb�m somos o que os outros veem. Vivemos em uma cultura de imagens. N�s, escritores, estamos sempre publicando fotos. � um exagero. Por�m, se voc� escreve um livro, esse livro come�a a viver nos olhos de outras pessoas. Voc� se compreende por meio dessas leituras. Inventei, em "Cara paz", uma fam�lia muito estranha. Estranha pois h� dor, zonas escuras de vazio, aus�ncias, a falta de fun��o de pai e de m�e. No centro, est� a trajet�ria do olhar. Na rela��o das irm�s, o mais importante � que elas se olham e se definem pela perspectiva da outra.
A primeira imagem que chegou � minha mente foi Nina. Mas, pelos olhos de Maddalena. Gosto da ideia de uma personagem que se cria pelos olhos de um outro. Essa � uma din�mica presente em minha maneira de narrar. A trajet�ria dos olhares me interessa muito. N�s tamb�m somos o que os outros veem. Vivemos em uma cultura de imagens. N�s, escritores, estamos sempre publicando fotos. � um exagero. Por�m, se voc� escreve um livro, esse livro come�a a viver nos olhos de outras pessoas. Voc� se compreende por meio dessas leituras. Inventei, em "Cara paz", uma fam�lia muito estranha. Estranha pois h� dor, zonas escuras de vazio, aus�ncias, a falta de fun��o de pai e de m�e. No centro, est� a trajet�ria do olhar. Na rela��o das irm�s, o mais importante � que elas se olham e se definem pela perspectiva da outra.
De que modo voc� incorporou novos elementos � imagem inicial que voc� tinha para o romance?
Primeiro, foi Nina. Logo depois, Nina pelo olhar de Maddalena. Eu tinha claro o ponto de vista: a voz narrativa seria a de Maddalena. A partir disso, as duas come�aram a tomar forma. � um trabalho semelhante ao do escultor. Voc� tem que modelar e afinar a estrutura pl�stica da personagem. Com Nina foi mais f�cil. Imaginei ela linda, charmosa e egoc�ntrica. Conhe�o muitas mulheres assim. Maddalena foi mais complicada. Imaginei ela igualmente linda, mas com complexos. H� uma inseguran�a. No fundo, ela se sente menos bonita. Mas Maddalena tem uma for�a interior que necessitava de uma apar�ncia um pouco menos maravilhosa. S�o coisas que reparo, sempre fico muito atenta �s din�micas familiares. Foi um exerc�cio paralelo de cria��o. Quanto mais Nina se definia, mais Maddalena tamb�m ganhava contornos, como um espelho.
Primeiro, foi Nina. Logo depois, Nina pelo olhar de Maddalena. Eu tinha claro o ponto de vista: a voz narrativa seria a de Maddalena. A partir disso, as duas come�aram a tomar forma. � um trabalho semelhante ao do escultor. Voc� tem que modelar e afinar a estrutura pl�stica da personagem. Com Nina foi mais f�cil. Imaginei ela linda, charmosa e egoc�ntrica. Conhe�o muitas mulheres assim. Maddalena foi mais complicada. Imaginei ela igualmente linda, mas com complexos. H� uma inseguran�a. No fundo, ela se sente menos bonita. Mas Maddalena tem uma for�a interior que necessitava de uma apar�ncia um pouco menos maravilhosa. S�o coisas que reparo, sempre fico muito atenta �s din�micas familiares. Foi um exerc�cio paralelo de cria��o. Quanto mais Nina se definia, mais Maddalena tamb�m ganhava contornos, como um espelho.
O que voc� levou em considera��o para criar os contrastes entre Maddalena e Nina?
� uma quest�o de imagem. Em outros termos, s�o obras da imagina��o. Criei situa��es em que as duas poderiam mostrar ao leitor como elas eram, como foi a inf�ncia delas e quais s�o as suas condi��es psicol�gicas. Chegou naturalmente, n�o foi muito programado. Tinha esse esbo�o de duas irm�s em uma situa��o de falta e a ideia de uma solidariedade obrigat�ria entre elas. As duas t�m que ser solid�rias - elas n�o podem romper, pois, se n�o, a fam�lia acaba. O que estava claro desde o come�o era a estrutura familiar, em sua anomalia. Por�m, as imagens e situa��es chegaram naturalmente. Voc� tem que escutar o que os personagens dizem e o que a fantasia dita. � um trabalho de humildade. Voc� fica calada e espera que esses elementos te encontrem. Tem escritores que trabalham de modo diferente, mas eu sou assim. No come�o, o que deve ser claro � a estrutura psicol�gica. O resto vem naturalmente.
� uma quest�o de imagem. Em outros termos, s�o obras da imagina��o. Criei situa��es em que as duas poderiam mostrar ao leitor como elas eram, como foi a inf�ncia delas e quais s�o as suas condi��es psicol�gicas. Chegou naturalmente, n�o foi muito programado. Tinha esse esbo�o de duas irm�s em uma situa��o de falta e a ideia de uma solidariedade obrigat�ria entre elas. As duas t�m que ser solid�rias - elas n�o podem romper, pois, se n�o, a fam�lia acaba. O que estava claro desde o come�o era a estrutura familiar, em sua anomalia. Por�m, as imagens e situa��es chegaram naturalmente. Voc� tem que escutar o que os personagens dizem e o que a fantasia dita. � um trabalho de humildade. Voc� fica calada e espera que esses elementos te encontrem. Tem escritores que trabalham de modo diferente, mas eu sou assim. No come�o, o que deve ser claro � a estrutura psicol�gica. O resto vem naturalmente.
Quais autores voc� aponta como as suas principais influ�ncias?
Eu li muito Elsa Morante (conhecida no Brasil por "A ilha de Arturo"). Foi uma autora que me marcou, pois passei a adolesc�ncia lendo os seus romances. Depois, Clarice Lispector. Eu a amo muito, at� escrevi um pequeno livro sobre ela. Contudo, foi uma leitura madura, j� n�o era jovem. Tem tamb�m Flannery O'Connor. Falei, principalmente, de escritoras mulheres. Mas as novelas de Tchekhov me mostraram que n�o se pode ter medo da profundidade da alma. Ele escreve sobre processos psicol�gicos que s�o profundos e simples. A simplicidade � a caracter�stica que mais amo nos grandes escritores. Quando voc� consegue compreender o tecido humano, voc� consegue ser simples e natural. Gosto de uma escrita que n�o � artificial ou constru�da em demasia.
Eu li muito Elsa Morante (conhecida no Brasil por "A ilha de Arturo"). Foi uma autora que me marcou, pois passei a adolesc�ncia lendo os seus romances. Depois, Clarice Lispector. Eu a amo muito, at� escrevi um pequeno livro sobre ela. Contudo, foi uma leitura madura, j� n�o era jovem. Tem tamb�m Flannery O'Connor. Falei, principalmente, de escritoras mulheres. Mas as novelas de Tchekhov me mostraram que n�o se pode ter medo da profundidade da alma. Ele escreve sobre processos psicol�gicos que s�o profundos e simples. A simplicidade � a caracter�stica que mais amo nos grandes escritores. Quando voc� consegue compreender o tecido humano, voc� consegue ser simples e natural. Gosto de uma escrita que n�o � artificial ou constru�da em demasia.
Como voc� v� a trajet�ria de Gloria, personagem que ousou se libertar da situa��o familiar repressiva em que se encontrava?
Gloria, mulher estrangeira, paga o pre�o de sua condi��o. A It�lia � um pa�s que tem muito preconceito com estrangeiros, particularmente mulheres. Acho a situa��o que imaginei muito poss�vel. Mas, ela � tamb�m um exemplo positivo. Gloria oferece a si mesma a possibilidade de se reconstruir, como mulher e como trabalhadora. Ela � bem afirmada na profiss�o, encontra um novo homem e transmite �s filhas uma imagem positiva. Acho isso importante, se n�o, seria apenas uma hist�ria de humilha��o da m�e. As duas filhas poderiam ver essa m�e apenas como absurda. Mas, ela consegue ser feliz. Quando voc� tem filhos, conseguir mostrar que voc� tem direito a ser feliz � muito importante. Aqui na It�lia, h� muitas separa��es, hist�rias de mulheres que ficam sozinhas, tristes a vida inteira e imersas na melancolia. Assim, � bom ter uma mulher que imagina uma vida por ela mesma, consegue fazer essa vida e falar �s filhas com muita sinceridade: "n�o conseguia ficar naquela situa��o". Imaginei isso como algo muito corajoso. As filhas compreendem, por fim, essa m�e.
Gloria, mulher estrangeira, paga o pre�o de sua condi��o. A It�lia � um pa�s que tem muito preconceito com estrangeiros, particularmente mulheres. Acho a situa��o que imaginei muito poss�vel. Mas, ela � tamb�m um exemplo positivo. Gloria oferece a si mesma a possibilidade de se reconstruir, como mulher e como trabalhadora. Ela � bem afirmada na profiss�o, encontra um novo homem e transmite �s filhas uma imagem positiva. Acho isso importante, se n�o, seria apenas uma hist�ria de humilha��o da m�e. As duas filhas poderiam ver essa m�e apenas como absurda. Mas, ela consegue ser feliz. Quando voc� tem filhos, conseguir mostrar que voc� tem direito a ser feliz � muito importante. Aqui na It�lia, h� muitas separa��es, hist�rias de mulheres que ficam sozinhas, tristes a vida inteira e imersas na melancolia. Assim, � bom ter uma mulher que imagina uma vida por ela mesma, consegue fazer essa vida e falar �s filhas com muita sinceridade: "n�o conseguia ficar naquela situa��o". Imaginei isso como algo muito corajoso. As filhas compreendem, por fim, essa m�e.
A mem�ria � o centro de for�a do romance. Qual o lugar do passado dentro da sua fic��o?
Tenho a tend�ncia de criar idas e vindas da mente com rela��o ao passado. Na minha vida, penso muito sobre as coisas que j� aconteceram. Se existisse uma m�quina capaz de contar os momentos do dia em que a mente vai ao passado, creio que ela confirmaria que isso ocorre muitas vezes. Meu presente � cheio de lembran�as. O passado se acumula e reconstituir isso na escrita n�o � f�cil. Virginia Woolf foi uma grand�ssima escritora, no sentido de transmitir o que acontece na mente quando ela vai em busca do que j� passou. Do mesmo modo, o tempo presente d� sentido ao passado. No "Cara paz", temos a impress�o de que Maddalena tem a cust�dia da mem�ria, j� Nina � flu�da, jovem e inquieta. H� muita coragem em Maddalena, pois ela percebe que h� uma parte do passado que n�o est� resolvida. Enquanto ela n�o viajar, fisicamente, at� a Roma de sua inf�ncia, ela n�o pode resolver a sua vida e ne
Tenho a tend�ncia de criar idas e vindas da mente com rela��o ao passado. Na minha vida, penso muito sobre as coisas que j� aconteceram. Se existisse uma m�quina capaz de contar os momentos do dia em que a mente vai ao passado, creio que ela confirmaria que isso ocorre muitas vezes. Meu presente � cheio de lembran�as. O passado se acumula e reconstituir isso na escrita n�o � f�cil. Virginia Woolf foi uma grand�ssima escritora, no sentido de transmitir o que acontece na mente quando ela vai em busca do que j� passou. Do mesmo modo, o tempo presente d� sentido ao passado. No "Cara paz", temos a impress�o de que Maddalena tem a cust�dia da mem�ria, j� Nina � flu�da, jovem e inquieta. H� muita coragem em Maddalena, pois ela percebe que h� uma parte do passado que n�o est� resolvida. Enquanto ela n�o viajar, fisicamente, at� a Roma de sua inf�ncia, ela n�o pode resolver a sua vida e ne
Em italiano, h� um jogo de palavras entre "Cara pace" [Cara paz] e "Carapace" [Carapa�a]. Como o t�tulo do livro chegou at� voc�?
Gosto de jogos de palavras. Reparei que o termo "carapa�a" se repetia no romance. A maior parte do livro j� estava escrita, mas ainda n�o tinha o t�tulo. Pouco antes da finaliza��o da primeira vers�o, reparei que a ideia da tartaruga era recorrente. No mesmo tempo que percebi isso, imaginei que Maddalena estava falando com ela mesma, como um verdadeiro mon�logo interior, repetindo: "carapa�a". O jogo de palavras chegou sozinho. Quando separei o termo, tomei um susto, pois me dei conta que na palavra dividida, "cara pace"[cara paz], tinha o sentido do romance. Lembra a carapa�a da tartaruga, algo que voc� inventa para se proteger, mas tamb�m um sentido de sabedoria. Em italiano, dizemos algo como "Santa pace!". Algu�m s�bio olha para tr�s e diz: "Cara pace!", no sentido de que foi bom, mas passou. A voz de Maddalena � calma. Ela se lembra de tudo, transmite essas mem�rias e est� em paz. A sua viagem � a busca pela paz. H� a ideia de prote��o, de fechar-se como defesa. Por�m, acima de tudo, temos uma harmonia.
“CARA PAZ”
Lisa Ginzburg
Tradu��o de Francesca Cricelli
Editora N�s
256 p�ginas
R$ 70
Gosto de jogos de palavras. Reparei que o termo "carapa�a" se repetia no romance. A maior parte do livro j� estava escrita, mas ainda n�o tinha o t�tulo. Pouco antes da finaliza��o da primeira vers�o, reparei que a ideia da tartaruga era recorrente. No mesmo tempo que percebi isso, imaginei que Maddalena estava falando com ela mesma, como um verdadeiro mon�logo interior, repetindo: "carapa�a". O jogo de palavras chegou sozinho. Quando separei o termo, tomei um susto, pois me dei conta que na palavra dividida, "cara pace"[cara paz], tinha o sentido do romance. Lembra a carapa�a da tartaruga, algo que voc� inventa para se proteger, mas tamb�m um sentido de sabedoria. Em italiano, dizemos algo como "Santa pace!". Algu�m s�bio olha para tr�s e diz: "Cara pace!", no sentido de que foi bom, mas passou. A voz de Maddalena � calma. Ela se lembra de tudo, transmite essas mem�rias e est� em paz. A sua viagem � a busca pela paz. H� a ideia de prote��o, de fechar-se como defesa. Por�m, acima de tudo, temos uma harmonia.
“CARA PAZ”
Lisa Ginzburg
Tradu��o de Francesca Cricelli
Editora N�s
256 p�ginas
R$ 70