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In�dito no pa�s, 'Relatos da China e da �ndia' ganha tradu��o brasileira

Relatos de observadores isl�micos s�o documentos valiosos das rela��es entre culturas e suas representa��es hist�ricas


23/06/2023 04:00 - atualizado 22/06/2023 23:39
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Relatos da China e da Índia
"Relatos da China e da �ndia": encontro de culturas nos s�culos 9 e 10 (foto: ILUSTRA��ES/SANDRA J�VERA/REPRODU��O)
Pouco mais de dois s�culos depois da h�gira de Medina a Meca do profeta Maom� (571-632) – viagem que estabelece o marco inicial do calend�rio lunar isl�mico – o imp�rio do isl� se encontra na interse��o das mais importantes linhas comerciais do mundo. Ao longo da Rota da Seda, cidades mu�ulmanas prosperam; portos �rabes se abrem ao Golfo P�rsico, aos mares Vermelho, Mediterr�neo e Ar�bico. Mercadores, navegantes, pessoas que estudam a f�, emiss�rios, carteiros e tantos outros se lan�am �s terras desconhecidas da �ndia, do Sudeste Asi�tico e da China, – mundos de povos e culturas estranhos –, estabelecendo rela��es entre os principais polos de poder do califado e governantes da �sia Oriental. Abrir mercados e interagir com novos saberes � tamb�m abra�ar a exorta��o do profeta: todo mu�ulmano deve buscar o conhecimento, nem que seja na China. E pela escrita, imortaliz�-lo

Assim nascem os relatos das viagens para desbravar as terras a oriente do imp�rio isl�mico, pelas mesmas redes de com�rcio mar�timo, que um dia levaram a mensagem de Maom�: tornam-se pujantes rotas comerciais, transformam as cidades �rabes em mercados do mundo. Nas palavras de um prisioneiro chin�s da batalha do rio Talas (751) – entre ab�ssidas e ex�rcitos da dinastia Tang –, sobre Bagd� naquele per�odo: “Tudo o que se produz na terra se encontra l�. Carrinhos carregam incont�veis produtos aos mercados, onde tudo est� dispon�vel e barato. Brocado, seda bordada, p�rolas e outras pedras preciosas est�o expostas em todos os mercados e lojas de rua.”� sobre essa grande aventura dos s�culos 9 e 10, num momento em que a civiliza��o �rabe isl�mica vive o seu apogeu, que versa “Relatos da China e da �ndia”(Tabla), o mais antigo texto conhecido em l�ngua �rabe que narra, sob o olhar isl�mico, o din�mico interc�mbio comercial e cultural entre povos do “grande mar oriental”.

Um �nico manuscrito sobrevivente de “Relatos da China e da �ndia”� conhecido e est� depositado na Biblioteca Nacional da Fran�a. Agora, foi lan�ado pela Tabla em publica��o in�dita no Brasil, traduzido por Pedro Martins Criado, pesquisador de estudos �rabes, bacharel em �rabe e em portugu�s, doutorando em Letras Estrangeiras e Tradu��o da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas da Universidade de S�o Paulo. “A expans�o do imp�rio isl�mico intensificou a demanda por conhecimento a respeito das regi�es abarcadas pelo califado, culminando no surgimento de uma esp�cie de vertente liter�ria, os relatos, na reuni�o de textos de diversos autores, em que se fundem cartografia descritiva, costumes de povos, lendas, maravilhas, versos po�ticos, rotas de com�rcio”, explica Pedro Martins Criado.

Na China, os relatos apontam para um estado, j� nos s�culos 9 e 10, preocupado com a educa��o de seu povo – todos, pobres, ricos, jovens e velhos – aprendem a caligrafia e escrita. Um pa�s de cultura marcadamente mercante: h� moeda local definida para as transa��es comerciais, assim como tamb�m � organizado o sistema de tributa��o e controle da entrada e circula��o nas mercadorias. “As transa��es s�o feitas apenas com moedas de cobre e os cofres s�o como os dos outros reis, mas nenhum rei usa moedas como a �nica esp�cie do local”, descreve um dos textos, informando que os soberanos tamb�m possuem ouro, prata, p�rolas, brocados e seda, al�m de marfim, ol�bano, lingotes de cobre, carapa�as do mar (couro das costas das tartarugas), al�m dos chifres do buchan (rinocerontes indianos), utilizados para fazer cintos. Tais riquezas s�o classificadas como “mercadorias”, adquiridas pelo rei. “E as moedas s�o a esp�cie”, acrescenta.

Quando os navios estrangeiros aportam na China, prossegue o texto, os chineses apreendem suas mercadorias e as armazenam em casas, garantindo a sua supervis�o por at� seis meses, dando tempo para que alcancem o porto os �ltimos navios daquele semestre. “Ent�o, tomam-se tr�s d�cimos das mercadorias de cada um, e o restante � devolvido aos mercadores”, prossegue a descri��o. Depois de taxar, o soberano se preocupa com a continuidade da atividade mercantil: tudo aquilo que precisa do estrangeiro compra dos mercadores pelo pre�o mais alto e mediante pagamento � vista. “Entre as coisas que os reis adquirem, est� a c�nfora, por cinquenta fakkuj a manna (unidade de peso) – um fakkuj s�o mil moedas. Se o soberano n�o adquire essa c�nfora, ela passa a custar metade do pre�o fora”, informa.

Em torno dos ritos do poder, h� regras. Abaixo dos soberanos, est�o os governantes respons�veis pela gest�o das cidades. “Nenhum deles toma posse como governante se tiver menos de quarenta anos, pois somente ent�o, eles dizem, ‘a experi�ncia o tornou prudente’”, registra o texto. O governante n�o se senta para julgar nada antes de ter comido e bebido, para que n�o se equivoque. S� examina requisi��es por escrito, prossegue o texto, considerando que as requisi��es s�o inspecionadas antes de serem entregues ao governante, pois s�o refutadas se contiverem erros. “Assim, s� escreve ao governante um escriba que conhe�a a lei; ele registra na requisi��o ‘escrito por fulano, filho de fulano’para que, caso ela contenha um erro, atribua-se a repres�lia ao escriba, que ent�o apanha com bast�es de madeira”, afirma o texto.

Sobre a cultura que rege o comportamento desejado em sociedade pesam regras coercitivas como pena de morte e surras. Em caso de adult�rio, o culpado � executado, explica um dos autores. Se h� falecimento na fam�lia, os parentes devem chorar por tr�s anos. “Quem n�o chora apanha com bast�es de madeira, sejam mulheres ou homens. Eles dizem: ‘Voc� n�o est� de luto por seu morto’”. Tamb�m tomam varadas pessoas que v�o � fal�ncia com o dinheiro alheio. Os credores pagam para que a pessoa que deve permane�a na pris�o. Mas, caso descubram que a pessoa que deve escondeu posses que cubram a sua d�vida, � retirada da pris�o e todo m�s apanha nas n�degas, porque ficou na pris�o comendo e bebendo �s custas dos credores, possuindo recursos. E caso n�o tenha dinheiro para cobrir a d�vida, a pessoa que deve tamb�m apanha, sob a advert�ncia: “Voc� n�o tem nada melhor para fazer, a n�o ser tomar das pessoas o que � delas por direito e sumir com isso ?”. Ao final das pancadas, se constatado que o devedor n�o tinha dinheiro, nem estrat�gia para restituir credores, o tesouro p�blico arcava com o �nus e proclamava: “Quem fizer neg�cios com este homem ser� executado”. 

H� uma preocupa��o nos relatos, ap�s a certifica��o da confiabilidade da fonte, em narrar fatos de interesse comercial, pol�tico e tamb�m cren�as e casos que agu�am o interesse e curiosidade do leitor sem julgamento moral, de valores que se chocam com o Isl�. “Todos os reis da �ndia e da China creem na transmigra��o das almas e a consideram uma das bases da f�”, destaca um dos textos, que discorre sobre a hist�ria de um governante que, tendo sobrevivido � var�ola, ficou com a face desfigurada. “Olhou-se no espelho e viu como seu rosto ficara repugnante. Ele visitou um dos filhos de seu irm�o e lhe disse: ‘N�o � pr�prio �queles como eu permanecer neste corpo depois que ele mudou tanto. De fato, o corpo � o inv�lucro da alma; quando dele ela se esvai, retorna em outro. Seja rei, pois estou separando meu corpo e minha alma, at� descender em outro corpo’. Ent�o, pediu uma adaga afiada e ordenou que sua cabe�a fosse cortada com ela; depois ele foi cremado.”

Obra em dois volumes


“Relatos da China e da �ndia”� um livro de dois volumes. O primeiro volume, re�ne textos de autorias desconhecidas, sendo frequentemente atribu�do a Sulayman al-Tajir – ou Sulayman, o Mercador –n�o obstante o pesquisador e tradutor Pedro Martins Criado assinale que a hip�tesemais plaus�vel � de que re�na testemunhos e hist�rias de m�ltiplos informantes, sobretudo mercadores e marinheiros de cidades portu�rias como Basra, Siraf, Om� e I�men, entre os quais Sulayman seria um deles. Os relatos de viagem do segundo livro foram compilados por Abu Zayad al-Hasan alSirafi, sobre quem se conhece pouco, acreditando-se que tenha sido, � sua �poca, uma pessoa culta, de posses, aparentada com o governador de Siraf, e interessada em coletar e registrar informa��es de viajantes e mercadores. Abu Zayad � mencionado pelo historiador, fil�sofo, ge�grafo e viajante al-Mas’udi (896-956), – cuja obra tem para a historiografia, import�ncia comparada � de Her�doto. Nascido em Bagd�, al-Mas’udi � autor de dezenas de livros, entre as quais, “Pradarias”, em que menciona ter se encontrado duas vezes com Abu Zayad al-Hasan al-Sirafi, na cidade iraquiana portu�ria de Basra, ao embarcar para �ndia e em seu desembarque, nos anos de 914 e 915.

Embora n�o tenha viajado, Abu Zayad, possivelmente foi ass�duo frequentador de mercados e dos portos isl�micos. Eram estes, segundo explica Pedro Martins Criado, importantes espa�os de intera��o entre mercadores, pessoas que financiavam grandes viagens, marinheiros e viajantes que se lan�avam na grande jornada pelo mar oriental, al�m de contadores de hist�rias, que ali encontravam narra��es do estranho e novo mundo. “No segundo volume, o teor pr�tico das mesmas tem�ticas ganha papel secund�rio, cumprindo a fun��o de desencadear narrativas, lendas, maravilhas, que falam muito sobre da intera��o de mu�ulmanos com a cultura dos outros povos”, afirma Pedro Criado.

 
 
Entrevista/ Pedro Martins Criado (tradutor)
“O livro � dedicado a registrar coisas maravilhosas e valiosas” 

 

Como foi despertado o seu interesse pela l�ngua �rabe e pela hist�ria do mundo �rabe pr�-moderno?
N�o � por motivo de ascend�ncia nem religioso: n�o tenho ascend�ncia �rabe, nem sou mu�ulmano. Desde que eu entrei na Faculdade de Letras, o meu prop�sito em estudar a l�ngua �rabe foi para o estudo hist�rico, ler as fontes �rabes no original, trabalhar n�o com literatura contempor�nea, mas aprender a l�ngua �rabe para os estudos de tempos afastados, dessa literatura, que no contexto isl�mico chamamos de literatura cl�ssica. Dediquei-me a uma temporalidade que me interessava mais do que as coisas contempor�neas. Ent�o j� fui para o �rabe predisposto a pesquisar documentos hist�ricos mais antigos. Tenho esse interesse pela cultura �rabe e atra��o pela hist�ria dos tempos pr�-modernos, a Idade M�dia e me dei conta, que a gente aprende muito sobre Europa, Gr�cia, Roma, Fran�a, Inglaterra. Mas n�o se estuda quase nada sobre o Oriente. Eu sentia muito essa necessidade, porque tive contato com um professor que incentivava os alunos a estudar v�rios temas do Oriente, menos convencionais. Embarquei nessa motiva��o, pois tinha muito interesse por hist�ria, e percebi que a minha forma��o era muito defasada em rela��o � hist�ria dos povos �rabes e da hist�ria do isl�. Percebi que era uma �rea pouco pesquisada e a falta de conhecimento sobre esse contexto espec�fico tamb�m me atraiu.

Em sua avalia��o, o Ocidente reconhece e d� cr�dito ao mundo �rabe pelos conhecimentos que dele absorveu, civiliza��o que, no per�odo hist�rico de “Relatos da China e da �ndia”, s�culos 9 e 10, vivia um momento de esplendor?
A pr�pria filosofia grega deve muito � preserva��o �rabe, para depois voltar para a tradi��o europeia pelos latinos. Os �rabes tiveram uma import�ncia muito grande na transmiss�o desse conhecimento, que a gente acha que � t�o ocidental, mas que circulou por v�rios lugares no mundo. O conhecimento grego foi preservado pelos �rabes, que traduziam muito do grego para o sir�aco e para o �rabe: havia patroc�nio para tradu��es ao �rabe dessas obras que eram muito famosas da tradi��o grega, mas tamb�m da tradi��o persa, obras da tradi��o indiana. Ent�o � uma multiplicidade de correntes de ideias, e tudo conflui para o mundo isl�mico, e os �rabes, de fato, t�m no momento de sua hist�ria durante esse per�odo que pesquiso da Idade M�dia, um grande avan�o cient�fico na regi�o em termos de assimila��o de conhecimento, contato com outras tradi��es do mundo. Isso acho muito curioso pois ningu�m pesquisava, ningu�m falava sobre isso, sendo que me parecia t�o mais impressionante, do que por exemplo a hist�ria da igreja na Europa, tema que a gente v� na escola. Mas a hist�ria da transmiss�o e da preserva��o do conhecimento fora da Europa era um assunto pouco comentado, por mais que para mim parecesse t�o relevante e importante.

Como o senhor tomou conhecimento pela obra “Relatos da China e da �ndia”, em rela��o � qual h�, atualmente, um �nico manuscrito conhecido na Biblioteca Nacional da Fran�a?
O livro se insere na tradi��o liter�ria que mais me atrai, que � a tradi��o da literatura �rabe isl�mica do per�odo pr�-moderno, que a gente costuma chamar Idade M�dia, no g�nero da literatura de viagens ou g�nero dos relatos de viagem, que vai al�m da literatura: um tipo de obra que era muito comum no per�odo, uma compila��o de relatos de v�rias pessoas diferentes, depois reunida, de uma forma n�o muito trabalhada, como uma sequ�ncia de testemunhos. Trabalhando com essa tem�tica dentro da literatura �rabe cl�ssica, cheguei a algumas obras mais representativas. O autor que pesquisei em meu mestrado � importante para a ideia de literatura produzido com testemunho de viajantes. Outras fontes tamb�m t�m essas inclus�es de viajantes que acabei estudando e ao longo da pesquisa fui descobrindo outras obras que estavam associadas a esta ideia. O “Relatos da China e da �ndia”� uma dessas obras importantes, talvez uma das mais antigas que temos hoje dentro da tradi��o isl�mica de l�ngua �rabe, a fazer esse tipo de compila��o trazendo uma mistura entre o factual, o ver�dico e o maravilhoso, o inventado, o exagerado. Essa mistura, n�o pr�pria s� deste livro mas do contexto desse tempo hist�rico, � muito atraente para mim, o que chamamos de literatura das maravilhas. Acho divertido, acho fascinante, o costume da descri��o um costume muito bonito em termos liter�rio e hist�rico. E como � uma obra em que os observadores �rabes abordam outras regi�es do mundo, que n�o s� as regi�es do isl�, de outras popula��es de culturas totalmente diferentes, � um livro muito m�ltiplo, de material pr�prio para trabalho de historiadores, ge�logos, antrop�logos, e at� pessoas que estudam o com�rcio daquele momento, s�o tipos descritos muito importantes para uma diversidade de interesses.

Ao trabalhar a tradu��o, o senhor utilizou como refer�ncia o manuscrito desse livro que est� na Biblioteca Nacional da Fran�a, e que � o mais antigo que se tem not�cia sobre o relato desse tipo de viagem?
“Relatos da China e da �ndia” � o exemplar mais antigo desse tipo de compila��o que conhecemos dentro da tradi��o de l�ngua �rabe composta por autores mu�ulmanos. Data do s�culo 9, a primeira metade dele e � o mais antigo que conhecemos hoje, pois sobreviveu em um �nico manuscrito que est� na Biblioteca Nacional da Fran�a, est� digitalizado e disponibilizado na internet. E a minha tradu��o � inspirada e feita desse texto. Existem estudos das pessoas que fizeram a fixa��o do manuscrito, ent�o eu n�o precisei trabalhar com o manuscrito, pois tive acesso a mais de uma edi��o do pr�prio texto em �rabe, j� fixado feito por outros pesquisadores.

Qual o maior desafio da tradu��o?
A l�ngua n�o � tanto a maior parte do desafio, porque a minha forma��o foi focada no �rabe cl�ssico, escrito nas fontes, n�o tanto no �rabe dialetal, falado. Eu n�o sou mu�ulmano, ent�o o exerc�cio cont�nuo que tenho de fazer quando trabalho com as fontes que s�o l�ngua �rabe, e escritas por mu�ulmanos, � tentar me colocar sob o ponto de vista do mu�ulmano, em outro per�odo do tempo, naquela mentalidade da pessoa que tem uma vis�o de mundo diferente da minha e que est� observando uma terceira realidade. Ent�o nesse deslocamento no tempo � inevit�vel fazer o exerc�cio: como a pessoa estava pensando sobre isso, sendo mu�ulmano, nesse tempo hist�rico afastado do meu e nessa regi�o do mundo t�o distante da minha. Em uma palavra, talvez a maior dificuldade de trabalhar com livros como este seja a dist�ncia: � muito longe de minha realidade em todos os n�veis. Esse � o grande exerc�cio da tradu��o que � mais dif�cil. E tem as quest�es mais pontuais, os estrangeirismos mencionados no texto, que se refere a uma extens�o territorial muito grande, com l�nguas diferentes, alguns termos s�o mencionados n�o em �rabe, mas em outras l�nguas, ent�o, eventualmente buscando em outros autores voc� encontra. Mas esses aspectos que est�o no modo de pensar da pessoa que elaborou o texto s�o o grande desafio.

H� um choque cultural entre o isl� e o funcionamento das sociedades sobretudo indiana e chinesa que o livro percorre. Em sua avalia��o, os relatos trazem julgamento moral?

N�o trazem. E inclusive � um dos maiores choques em rela��o ao contato com outras literaturas que a gente costuma ver, em que frequentemente esse tipo de olhar do observador para a popula��o observada assume uma coloca��o hier�rquica, de uma pessoa que observa algu�m que julga inferior. Mas neste livro sinto que � mais um olhar de pessoas que entram em contato com realidade diferente da sua, est�o se surpreendendo com esse contato, porque est�o escrevendo coisas que s�o estranhas, que suscitam a rea��o. E de fato n�o � um tipo de texto preocupado em extrair julgamentos de valor ou algum tipo de conclus�o categ�rica sobre as coisas observadas. � mais um registro do que uma avalia��o moral ou um tipo de condena��o ou concord�ncia, o que � bem diferente em rela��o a todas as literaturas que a gente costuma associar a esse tipo de relato de viagens. Ent�o � um tipo de registro muito pr�tico, mais de registrar as coisas do que interpretar. Quando esse costume da interpreta��o aparece, est� muito no subtexto, naquele n�vel do que n�o � dito, de forma t�o sutil, ou t�o pr�prio da maneira de narrar do �rabe, uma nuance que se perde na hora da tradu��o. O livro est�, portanto, muito mais dedicado a registrar coisas maravilhosas ou at� valiosas, porque est� falando de com�rcio, � um tipo de escrito dedicado e produzido para as pessoas das elites, � um tipo de coisa que precisa ser atraente, criar essa aura de realidade diferente, interessante, pois s�o pessoas que est�o procurando o teor do maravilhoso, a conta��o de hist�ria que as fascina, al�m das informa��es pr�ticas. 

Trecho de “Relatos da China e da �ndia”


“Se um homem decide se imolar no fogo, ele vai at� o port�o do rei e pede permiss�o; depois, circula pelos mercados, e acendem para ele uma pira numa enorme pilha com muita lenha – h� homens encarregados de acend�-la at� que fique quente e incandescente como a cornalina. Ent�o, o homem come�a a correr circulando pelos mercados; � sua frente, v�o pessoas tocando c�mbalos, e � sua volta, seus compatriotas e parentes pr�ximos. Um deles coloca uma grinalda de plantas arom�ticas na cabe�a dele, preenche a grinalda com brasas e a polvilha com sand�raca, que reage com o fogo com betume. Ele continua andando com a coroa queimando, exalando o cheiro da carne chamuscada de sua cabe�a; ele n�o muda o passo, nem demonstra afli��o, at� que chega � pira, salta nela e queima at� virar cinzas. Um informante – que estava presente quando um deles ia adentrar o fogo – mencionou que, quando o homem chegou � pira, pegou uma adaga, colocou-a acima do abd�men e o abriu at� o p�bis. Depois, ele enviou a m�o esquerda em suas entranhas, pegou o pr�prio f�gado e puxou para fora o quanto p�de – tudo isso enquanto falava. Ent�o, cortou um peda�o do f�gado com a adaga e o entregou a seu irm�o, a fim de insultar a morte e demonstrar sua toler�ncia � dor. Depois, lan�ou-se ao foto – e � maldi��o de Deus.”

 

“RELATOS DA CHINA E DA �NDIA”

Organiza��o de Abu Zayd al-Hasan al-Sirafi
Tradu��o de Pedro Martins Criado 
Tabla Editora
160 p�ginas
R$ 119 


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