
Stefania Chiarelli *
Especial para o EM
“Nesta terra sempre se acha a bruxa certa para supliciar”. Palavras da personagem central de “Caminhando com os mortos”, sexto romance da pernambucana Micheliny Verunschk. A frase condensa a tem�tica principal da obra e tamb�m anuncia como a viol�ncia � tratada na narrativa: entranhada em cada poro, cada gesto familiar, cada bra�o da sociedade, cada movimento na localidade fict�cia de Tapuio. E dela resultam muitas mortes, na maior parte, de mulheres. Cabe a uma perita policial relatar os acontecimentos. Tarefas cotidianas para esse tipo de profissional, como analisar vest�gios, coletar pistas, recompor um quadro, aqui adquirem novos contornos. Ela deve tamb�m montar seu pr�prio quebra-cabe�a.
J� nas primeiras p�ginas do romance surge uma atmosfera on�rica. Das escolhas lexicais ao andamento das frases, tudo leva � constru��o de uma cena de intenso apelo sensorial: descreve-se um terreiro em que flores, plantas e �rvores falam de um “bal� de desaparecimento”, onde as ru�nas do passado s�o lidas como enigma. Na composi��o dessa paisagem, o protagonismo do olhar a sondar com min�cia o espa�o apresentado. Aos poucos, a faculdade da vis�o d� lugar � da escuta, e o ouvido passa a capturar sonoridades compostas de latidos, uivos, vozes, e, por fim, o som de uma viatura da pol�cia. Estamos diante da cena de um crime; o olhar dessa perita n�o nomeada desliza sobre as coisas. A partir de ent�o, a apurada linguagem de Verunschk se desloca do registro po�tico para a letra fria do relat�rio policial e p�e em marcha uma jornada �rida, pois o que se narra � a morte de Celeste. Ela foi queimada viva.
Para cumprir tal miss�o, � voz da especialista se juntam muitas outras, como a de Louren�a, m�e da v�tima e Ism�nio, seu pai. Depoimentos, cadernos, relat�rios e pontos de vista diferentes se unem para tecer uma trama cheia de n�s, como a fibra da taboa, vegetal onipresente naquela comunidade. A narrativa da escritora pernambucana vai tran�ar os relatos como quem manipula a palha da planta de forma engenhosa, unindo seus dedos aos de tantas mulheres. Verunschk experimentou o expediente ficcional da justaposi��o de perspectivas em “O som do rugido da on�a”, vencedor do Jabuti de melhor romance liter�rio no ano passado - para al�m do reconhecimento oficial, ela conquistou o cora��o de muitos leitores: trama, linguagem e a oportuna discuss�o sobre modos de narrar a Hist�ria trouxeram um raro momento em que o respeito do p�blico e da cr�tica andam juntos.
Nascida no Recife em 1972, Verunschk � historiadora, poeta e autora da trilogia infernal, composta por “Aqui, no cora��o do inferno” (2016), “O peso do cora��o de um homem” (2017) e “O amor, este obst�culo” (2018). Por seu primeiro livro de fic��o, “Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida” (2014), venceu o Pr�mio S�o Paulo de Literatura.
Ant�doto contra medo e v�cio
Tapuio, lugar de passado ind�gena e negro, esqueceu sua origem. A chegada de um pastor evang�lico altera a rotina dos moradores, que acabam aderindo � prega��o e fundam a Congrega��o dos Justos em Ora��o. Um templo grandioso � constru�do e alinham-se nesse neg�cio prefeito e pastor. Todos buscam desesperadamente um ant�doto contra o medo e o v�cio. E ele vem. Mas as priva��es d�o a t�nica na rotina do povo, que, no intuito de vigiar o Mal, deve esquecer pr�ticas e cren�as ancestrais: “o jugo do dem�nio que foi sendo vencido, mas logo, veja o senhor, tudo virou pecado, as rodas de dan�a de S�o Gon�alo, e muito costume nosso, a cavalhada, coisas que o padre mesmo, que j� vive aqui h� muito mais tempo, nunca ignorou nem tratou com desprezo”, afirma Francisca, vizinha da v�tima.
O novo l�der religioso imp�e um discurso que prega rigorosa moralidade. Para mulheres como Celeste - sa�da da cidadezinha e retornada ap�s muitos anos - o julgamento de um Deus severo, que n�o gosta de falta de vergonha, roupas coladas ou perfume doce. Tamb�m aos olhos da fam�lia a filha pr�diga voltara transmutada em uma mulher de h�bitos escandalosos. Uma bruxa de cujo corpo deve ser expulso o pecado. Padecendo o luto de ter perdido uma filha ainda beb� h� muitos anos, Louren�a, junto ao marido e o filho, se encarrega de levar a cabo a tarefa. Nesse tabuleiro, seria simples separar as v�timas dos algozes, mas as posi��es s�o intercambi�veis e as fronteiras, menos �bvias. Essa mulher sofre e � tamb�m agente da brutalidade, perpetuando a��es que resultam em supl�cios, castigos, corretivos.
Sim, a m�o est� suja, n�o adianta lavar – sussurra no ouvido o poema drummondiano. Nesse mundo torto, tamb�m culpada a pr�pria perita, tomada pela dor de testemunhar (e �s vezes silenciar) tantos delitos. Mobilizada por tal sensa��o, decide abandonar tudo e viver entre plantas e bichos.
Ao pensar essa rela��o, pode ser produtiva a leitura em paralelo de “A vis�o das plantas” (2019), premiado romance de Djaimilia Pereira de Almeida. Na narrativa da escritora angolana, o ex-marinheiro Celestino se recolhe � natureza, revendo a vida de sanguin�rio capit�o de navio negreiro que levara. Ela agora cultiva de forma amorosa um jardim. O espa�o natural surge nos dois romances como possibilidade de acolhimento e purga��o, estabelecendo rico di�logo entre o humano e o mundo vegetal: “Nenhuma flor lamentava a morte dos escravos que Celestino sufocara em mar alto”. Talvez a reden��o n�o seja poss�vel, e a natureza n�o seja apenas um lugar ameno, espa�o de paz e tranquilidade, j� que tamb�m sofre e nos devolve o olhar diante de tantas atrocidades: “O mato falava com as gentes, conversando com sua l�ngua de folhas e flores e espinhos e ra�zes retorcidas”, alerta um dos narradores de Verunschk.
Escutar a l�ngua do mato pode ser a guinada em dire��o a novas formas de conex�o, na retomada de saberes antigos e desprezados: “Talvez, por isso, escolhi apenas cavoucar, plantar, esperar, colher, recolher de novo e de novo. E no meio-tempo disso tudo, meio-tempo sempre el�stico e flex�vel dessa minha exist�ncia, anotar” – afirma a perita. “Analfabeta de si mesma”, ela se dedica ao aprendizado das perguntas, inclusive sobre o ato de narrar. Nesse �ltimo reduto da subjetividade, o gesto de escrever surge como espa�o poss�vel para colecionar sobras e vest�gios, atando as duas pontas da vida. Mesmo que as m�os estejam sujas, persiste a tentativa de colheita.
Verunschk mostra de novo porque � uma voz decisiva no cen�rio da literatura contempor�nea. Dona de um projeto liter�rio consistente, vem aliando com talento a capacidade de tocar quest�es incontorn�veis do debate atual ao trabalho cuidadoso com a linguagem. Nessa prosa, falam crian�as, mulheres, on�as, e todo um mundo natural que revela seu olhar particular sobre as coisas. Na travessia, caminhar com os nossos mortos pode ser uma forma de acertar o passo.
Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF, coorganizadora do volume “Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira”
Trecho
“Mas claro, se embaralharmos as figuras tudo ser� de outra forma, e a hist�ria � bem poss�vel que se torne outra. A casa trocar� de pele como um lagarto, deixando � mostra m�sculos e gordura e tend�es avermelhados sem reboco, seus degraus se aplainam, sua ossatura se estica, ramagens de batata-doce irrompem pelas frestas, pelo teto, n�o haver� nenhuma personagem reduzida a cinzas dentro da cena e do que foi outrora a cova da mo�a irromper� um gigantesco tamboril e o c�o tamb�m ser� outro, ou ser�o muitos, e embora haja ainda uma mulher a perscrutar tudo, ela nada diz, deslizando seu olhar silencioso pelo lugar que escolheu para que fosse o seu come�o e o seu fim.
E j� em torno de tudo, as varejeiras.”
“Caminhando com os mortos”
- De Micheliny Verunschk
- Capa de Alceu Chiesorin Nunes
- Companhia das Letras
- 144 p�ginas
- R$ 59,90
Entrevista
Micheliny Verunschk
“Escrevo para compreender os embates violentos na forma��o do nosso territ�rio”
Depois de “O som do rugido da on�a”, podemos pensar que “Caminhando com os mortos” integra outra s�rie, o segundo volume de uma outra trilogia, esp�cie de "trilogia do mato"?
Olha, que boa essa pergunta! Dentro do meu projeto liter�rio tenho muito clara a no��o de que escrevo um grande texto, um texto �nico que tem por ambi��o compreender os embates na forma��o do nosso territ�rio. Os embates violentos que p�em em quest�o o mito da cordialidade brasileira. Ent�o � muito pertinente, sim, pensarmos nessa “Trilogia do Mato” (termo do qual vou me apropriar,com licen�a), ainda mais tendo em perspectiva o romance que estou escrevendo atualmente.
Pelo ritmo �gil e a intensa visualidade o romance teria voca��o para uma adapta��o cinematogr�fica. O que surgiu primeiro? Os personagens ou as imagens? O aspecto visual foi considerado durante o processo de escrita?
Tanto no meu trabalho po�tico, como no trabalho com prosa as minhas constru��es acabam dialogando muito intensamente com as artes visuais, com as artes pl�sticas, com a dramaticidade c�nica do cinema, da fotografia. Durante o processo de escrita personagens, imagens, paisagens surgem intrincadamente e uma parte da tarefa � justamente organizar esse emaranhado, dar a cada inst�ncia o seu justo lugar.
“Se embaralharmos as figuras tudo ser� de outra forma, e a hist�ria � bem poss�vel que se torne outra.” Como chegou � forma narrativa de “Caminhando com os mortos”? Quais as principais diferen�as para os seus livros anteriores?
Uma mesma hist�ria pode ser contada sob m�ltiplas formas, de diferentes perspectivas. Tenho uma imagem que sintetiza quais as escolhas narrativas de “Caminhando com os mortos”: a minha narradora se v� diante de muitos pap�is, fragmentos da hist�ria, possibilidades. E dentre todas ela saca esta, que chega ao leitor. Essa imagem � o fio de Ariadne para o meu processo com esse livro. N�o sei se h� tantas diferen�as de composi��o no que diz respeito ao processo dos outros romances, porque h� sempre essa ideia de dobras, desdobras, vincos. Esse processo que busca uma fr�gil totalidade no que � de partida fragment�rio.
Sua obra tem sido premiada desde o primeiro livro de fic��o. Pr�mios como o do ano passado afetam o m�todo de cria��o?
Em nada. Pr�mios s�o conting�ncias. O que � constante � o trabalho criativo, que � o ch�o de todo dia.
Vigiar e punir s�o a��es centrais no romance. Diante da crescente presen�a da comunidade evang�lica no Brasil, acredita que poderia haver uma rea��o negativa ao livro?
N�o acredito nisso, porque o que se coloca em xeque n�o � a f� das pessoas, sua ades�o ao divino, e nem mesmo igrejas espec�ficas para al�m do que � criado ficcionalmente. O que se discute s�o os motivos que levam a f� ser transformada como moeda para v�rias trocas por l�deres e institui��es duvidosas. A f� do povo, o sagrado n�o deveria ser tratado como commodities.
Quais s�o os mortos (refer�ncias pessoais e liter�rias) que a acompanham em sua caminhada liter�ria?
Caminho com in�meros mortos, meu pai, meus av�s, um primo querido que partiu muito cedo. Caminho com os mortos que atravessam o livro, da dedicat�ria ao cortejo de mulheres que transita entre a fic��o e o real, quase no final da narrativa. E caminho com Jos� Saramago e Jo�o Cabral de Melo Neto, com Assionara Souza e Maria Gabriela Llansol, com Clarice Lispector e Susan Sontag, com Virginia Woolf e W. G Sebald. Caminhar com eles para honrar suas hist�rias e mem�rias, para aprender com seus passos. (Stefania Chiarelli, especial para o EM)