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Estado de Minas CINEMA

Scorsese acerta ao filmar a 'riqueza empobrecedora' dos EUA

Em artigo, o escritor Andr� de Leones afirma que "Assassinos da Lua das Flores" recria com brilhantismo um cap�tulo sombrio da hist�ria norte-americana


21/10/2023 04:00 - atualizado 20/10/2023 23:04
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Scorsese, Assassinos da Lua das Flores
Scorsese entrega mais um edif�cio da outra hist�ria norte-americana que vem erigindo ao longo da carreira (foto: Divulga��o)

 

ANDR� DE LEONES
ESPECIAL PARA O EM 
 
� preciso desfazer um mal-entendido logo de cara: com quase tr�s horas e meia de dura��o e andamento irrepreens�vel, “Assassinos da Lua das Flores” n�o � um thriller, embora seja vendido como tal. Talvez a leitura da sinopse fortale�a essa impress�o: baseado no livro hom�nimo do jornalista David Grann (lan�ado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradu��o de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra), o filme de Martin Scorsese aborda uma s�rie de assassinatos de nativos norte-americanos da na��o Osage ocorrida em Oklahoma nas primeiras d�cadas do s�culo passado. Em 1897, petr�leo fora descoberto na reserva dos ind�genas, o que os tornou bastante ricos — para que o leitor tenha uma ideia estima-se que, em valores atualizados, eles tenham lucrado quase meio bilh�o de d�lares apenas no ano de 1923. Paralelamente, os nativos come�aram a morrer — a princ�pio, essas mortes eram catalogadas como acidentais ou por suic�dio. Quando o Bureau of Investigation (futuro FBI) resolveu trabalhar no caso, e isso ap�s muita insist�ncia dos Osage e tamb�m como forma de reafirma��o da autoridade federal naquela regi�o, foi descoberta uma sanguin�ria conspira��o capitaneada por um fazendeiro e l�der pol�tico local. 

Os assassinatos, em si e por si, n�o levariam a nada. Assim, somos logo apresentados ao primeiro passo da estrat�gia criminosa: homens brancos se casavam com mulheres ind�genas, tornando-se, assim, copropriet�rios e eventuais herdeiros das terras produtoras de petr�leo. � nesse contexto de uni�es entre brancos cobi�osos e nativas “puros-sangues” com uma tend�ncia para adoecer e morrer (ou cometer suic�dio) que conhecemos Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio). Rec�m-egresso da Primeira Guerra Mundial, ele vai para Oklahoma a fim de trabalhar com o tio, William Hale (Robert De Niro), um rico pecuarista e mandachuva da regi�o. Embora expresse admira��o pelos Osage e se apresente como �timo vizinho e amigo fraterno deles, Hale logo evidencia suas inten��es: casar o sobrinho com uma ind�gena rica, Mollie (Lily Gladstone), e eventualmente concentrar nele as concess�es petrol�feras n�o s� da mulher como, tamb�m, dos familiares desta (m�e e irm�s). Como? Ora, matando quem estiver pelo caminho. 

Assistindo ao filme, � medida que a hist�ria e a carnificina avan�am, torna-se cada vez mais dif�cil precisar onde termina a burrice e come�a a pusilanimidade de Ernest. Ele realmente parece amar Mollie, mas isso n�o o impede de seguir as ordens do tio e sair pelo condado lidando com criaturas repugnantes (Tommy Schultz e Ty Mitchell, respectivamente Blackie Thompson e John Ramsey, roubam as cenas em que aparecem) e encomendando assassinatos de pessoas pr�ximas como se isso n�o fosse nada demais. � preciso respeitar o trabalho de Di Caprio. Sua caracteriza��o (o sotaque, os dentes ruins, a carranca que passa a ostentar, as hesita��es, idas e vindas, a dor genu�na que sente ap�s uma perda) � exemplar. No mesmo time, al�m dos citados, De Niro entrega o melhor sotaque caipira de sua carreira, pelo menos desde o Max Cady de “Cabo do Medo”— e a lembran�a n�o � gratuita, visto que Hale (embora n�o arranque bochechas de mulheres a dentadas) � um sujeito igualmente carn�voro. 

Mas o filme n�o seria t�o bom sem Lily Gladstone. Mesmo diante de todas as perdas e da evidente trai��o sofrida, ela mant�m uma dignidade inalcan��vel e provavelmente incompreens�vel para os chacais que a cercam. “Voc� � o pr�ximo”, ela diz a certa altura para algu�m pr�ximo, com um real entendimento da trag�dia em curso que falta a quase todos em cena. 

ATMOSFERA PERTURBADORA E SOMBRIA 

Longe de ser um thriller propriamente dito, “Assassinos da Lua das Flores”est� mais pr�ximo da atmosfera perturbadora e sombria de outros faroestes modernos, como “McCabe & Mrs. Miller”, de Robert Altman, e “Sangue negro”, de Paul Thomas Anderson. A quest�o � sempre terra e poder, e o negror do petr�leo parece se tornar mais e mais espesso conforme se acentua o derramamento de sangue. Estima-se que mais de sessenta ind�genas foram assassinados entre 1918 e 1931 (h� quem fale em centenas) no condado de Osage, de tal modo que estamos diante n�o “apenas”de crimes pontuais, mas do prosseguimento, por outros meios e circunst�ncias, do genoc�dio da popula��o nativa. 

Com o peso existencial e o andamento compassado de grandes filmes recentes, como “Sil�ncio” e “O Irland�s”, Scorsese entrega mais um edif�cio dessa outra hist�ria norte-americana que vem erigindo ao longo da carreira. A op��o por tirar o foco do teor policialesco inerente � investiga��o e ao processo criminal e se concentrar no abismo moral que a tudo consome, no paradoxo dessa riqueza empobrecedora, � mais um ind�cio da genialidade do cineasta.
 
Assassinos da Lua das Flores, Martin Scorsese, David Grann
Assassinos da Lua das Flores, filme do diretor Martin Scorsese, � inspirado no best-seller hom�nimo do escritor David Grann e tamb�m baseado em uma hist�ria real. (foto: Divulga��o)
 

“ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES” 

Filme de Martin Scorsese 
Em cartaz nos cinemas de BH

ANDR� DE LEONES � autor do romance “Vento de queimada” (Record), entre outros.




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