
“Barriga cheia, p� na areia”. O ditado popular, comum no interior, de certa forma, mostra que antes de encarar uma viagem, a pessoa deve se alimentar bem. Mas, para alunos de escolas no meio rural o ditado � inverso. Muitos deles viajam de barriga vazia e encaram um grande sacrif�cio para estudar. Acordam ainda na madrugada ou mesmo no meio da noite para sair de casa e enfrentar uma longa e empoeirada viagem at� a escola. Crian�as vencidas pelo sono, dormindo em bancos duros, tentando resistir aos solavancos do �nibus mal conservado em estradas igualmente em p�ssimas condi��es, enfrentando tamb�m o frio cortante. Foi esta a situa��o testemunhada pelo Estado de
Minas, ao acompanhar a “via crucis” do caminho da escola em Buritizeiro, Norte de Minas, condi��o que se repete em outros lugares pelo Brasil afora e que,segundo especialistas, interfere no aprendizado desses “pequenos her�is”.
O fato de os alunos permanecerem um longo tempo dentro dos �nibus – muitas vezes, maior que o intervalo que ficam na sala de aula - faz com que necessitem de uma alimenta��o mais refor�ada na escola. O problema � que os munic�pios enfrentam dificuldades para fornecer esse refor�o alimentar, devido ao baixo valor que recebem do governo federal para a merenda: R$ 0,30 por aluno, por dia, no caso do ensino fundamental, podendo chegar, no m�ximo a R$ 1, para outras modalidades de ensino. A equipe de reportagem embarcou nessa viagem e viu de perto o drama dos tr�s filhos da dom�stica Ana L�cia Rodrigues dos Santos, de 33 anos, moradora da Fazenda Chaparral, situada numa regi�o isolada de Buritizeiro.
Tr�s horas da manh�. Nesse hor�rio, Ana L�cia acorda os filhos Flabert Aparecido, de 15; Fagner, de 11; e Victor, de 11. Ainda sonolentos, os meninos levantam, escovam os dentes e se preparam para a viagem em dire��o � escola na sede de Buritizeiro. �s 3h30, o barulho e uma luz no meio da escurid�o anunciam a chegada do �nibus pr�ximo ao local de embarque dos alunos. Com o esp�rito de m�e, Ana L�cia conta que sente o cora��o apertar ao despertar as crian�as na madrugada, ainda mais que sabe que eles v�o retornar 12 horas depois, mas n�o tem outra sa�da. Ela sabe da necessidade da ida at� escola, mesmo quando o local de ensino e aprendizagem est� t�o longe. “Aqui � dif�cil. Eles v�o agora e s� chegam �s tr�s da tarde em casa. Mas, precisam porque � uma oportunidade de emprego no futuro. Todo dia, (a
rotina) � desse jeito”, relata.
Como a pr�pria m�e admitiu, as tr�s crian�as, quase sempre, viajam de barriga vazia. “Eles n�o gostam de comer antes porque enjoam na estrada”, diz a mulher, confirmando que os filhos passam as primeiras horas de estudo em jejum, pois a merenda na escola � fornecida �s 9h30. A partir da�, s�o quatro horas em jejum, pois somente v�o almo�ar �s 15 horas, quando retornam para casa.
De fato, como a pr�pria reportagem constatou ao viajar dentro do �nibus, os solavancos do ve�culo provocam o desconforto no est�mago para quem deita nos bancos. Mas, Ana L�cia acaba revelando que n�o � somente o risco de enj�o no �nibus que impede o fornecimento de alguma alimenta��o para os filhos antes da viagem. “Procuro dar alguma coisa para eles comerem. Mas, �s vezes, se n�o tiver outra coisa, tem que ser somente caf� puro”, conta, revelando que passa por dificuldades. A dom�stica diz que seu atual companheiro, Paulo Rodrigues dos Santos ganha R$ 700 como vaqueiro e que para complementar a renda familiar com R$ 200, ela mant�m a sede da fazenda limpa e cozinha, de quando em vez, para o propriet�rio.
O percurso entre a Fazenda Chaparral e Buritizeiro � de 64 quil�metros (57 de terra e sete de asfalto). Mas, pelo caminho, o �nibus entra em fazendas e outras comunidades para apanhar mais estudantes, completando 35 alunos transportados pelo ve�culo. Com isso, a dist�ncia percorrida � ampliada para cerca de 90 quil�metros. Al�m das m�s condi��es da estrada, pelo caminho s�o atravessados quatro c�rregos, sem a exist�ncia de pontes, com a passagem dentro do pr�prio leito, sendo que dois deles est�o secos. Tudo isso atrasa a viagem, que demora tr�s horas ou mais, com a chegada � frente da escola ocorrendo entre 6h30min e 6h45min, perto do come�o da aula, que � �s 7h.
O sacrif�cio � realmente alto. Logo que entram no �nibus, mesmo com tanto desconforto, os garotos e garotas tentam se acomodar nos bancos desconfort�veis e continuar a noite de sono. O que mais incomoda s�o os solavancos. No dia em que a equipe do EM se juntou aos estudantes para acompanhar esta viagem, por volta das 4 horas, no meio da escurid�o, �nibus parou na Fazenda Cachoeira, para o embarque da menina Carolina, de 13 anos, aluna do sexto ano. Carolina caminhou por cerca de 200 metros at� o “ponto”, levada pela m�e dela, a lavradora Rosilene Pereira dos Santos, que segurava uma lanterna. “Quero que minha filha seja algu�m na vida. Quero que ela
tenha o que eu n�o tive”, diz Rosilene, acrescentando que sempre oferece algum alimento para a filha antes da viagem. “Sempre fa�o um lanchinho, um p�o e leite com chocolate."
A viagem segue
De tempo em tempo, � interrompida, com entradas em fazendas para apanhar outros alunos. De repente, o �nibus para. � que apareceu uma cancela no meio do caminho. Um dos alunos desce para abri-la e, assim, o �nibus prosseguir. Por volta das 5h45min , s�o embarcados os dois �ltimos estudantes, quando faltam cerca de cinco quil�metros de terra para alcan�ar o trecho de sete quil�metros pavimentados, na BR-365, para ent�o, chegarem at� �rea urbana. Finalmente, �s 6h45, o �nibus encosta na porta da escola.
P�o com carne
Na �ltima quinta-feira, quando a reportagem acompanhou a viagem dos alunos da Fazenda Chaparral, a merenda fornecida na Escola Estadual Elisa Teixeira de Carvalho, onde eles est�o matriculados em Buritizeiro, foi p�o com carne e suco. “O dinheiro que vem para merenda � muito pouco. A gente sempre procura comprar o mais barato, mas usamos da criatividade para ter um card�pio variado e uma merenda de melhor qualidade, garantiu uma integrante da dire��o do educand�rio, Siney Lopes Leite.
Segundo ela, no card�pio, ao longo da semana, entre outros pratos, tamb�m s�o servidos: arroz com carne, bai�o de tr�s, canjica, arroz � grega”, mingau de fub� com biscoito. Ela reconheceu que as viagens cansativas acarretam transtornos para os alunos da zona rural e prejudicam o desempenho deles na sala de aula. “Existem alunos que chegam aqui muito cansados, como sono e com fome. �s vezes, temos que providenciar algum lanche para eles antes do fornecimento da merenda”, disse.
A analista educacional Marc�lia de Paula, que, nos �ltimos anos, trabalhou na mesma escola, acompanhando alunos e professores, confirma que a rotina exaustiva das viagens compromete o aprendizado e o desenvolvimento cognitivo das crian�as. “Com os alunos levantando as tr�s horas para chegar � escola as seis e meia e indo se alimentar s� as nove e meia, h� um desiquil�brio no metabolismo e tudo isso somado com a noite mal dormida interfere muito no desempenho deles na sala de aula”, observa a analista, cuja opini�o � compartilhada com professores do educand�rio.