S�O PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A CNBB (Confer�ncia Nacional dos Bispos do Brasil) precisa ajudar a "reconstituir um tecido social esgar�ado" ap�s uma polariza��o que rachou comunidades, diz dom Jaime Spengler. O arcebispo de Porto Alegre tomou posse na semana passada como novo presidente da mais representativa entidade cat�lica do pa�s.
Herdou com o cargo a miss�o de conduzir o alto clero por uma cena social turbulenta. Por um lado, a c�pula dos bispos enfrenta nos �ltimos anos resist�ncia de n�cleos cat�licos alinhados ao bolsonarismo. A defesa de causas como vacina��o e meio ambiente lhe rendem o r�tulo de esquerda. Prefere falar no que tem como "centro, o Evangelho".
Por outro, setores progressistas questionam os bispos por posi��es tidas como conservadoras do Vaticano. � Folha dom Jaime falou sobre presen�a feminina na Igreja ("o que seria de n�s sem voc�s?") e sobre o que chamou de "chaga" do racismo. Comentava, ent�o, a elei��o de uma diretoria toda branca na CNBB. "A natureza que me fez assim."
Folha - O sr. fala em "di�logo" e "ora��o" para encarar esta nova miss�o na CNBB. Qual v� como maior desafio em tempos t�o polarizados?
Dom Jaime Spengler - Em primeir�ssimo lugar, � anunciar o Evangelho de Jesus. A segunda exig�ncia grande � colaborar num processo de reconcilia��o do nosso Brasil. Precisamos reconstituir o tecido social, que est� muito esgar�ado. Temos comunidades divididas.
Folha - V� a Igreja Cat�lica dividida? Mensagem recente da CNBB fala em "criminosa trag�dia ocorrida com o povo yanomami", "import�ncia da vacina��o" e "modelo econ�mico cruel". Grupos bolsonaristas t�m tentado rotular a entidade como "de esquerda" por posicionamentos assim.
Dom Jaime Spengler - A Igreja n�o est� dividida, estamos muito unidos. O que talvez chama aten��o: somos seres pol�ticos por natureza e temos nossas posi��es pessoais. E a� alguns as expressam de forma mais alargada, digamos assim. As leituras se pautam atrav�s desse modo de se posicionar. Mas n�o podemos jamais nos calar diante das situa��es em que a vida n�o � respeitada, independentemente de quem esteja no poder. N�o seria digno de um disc�pulo de Jesus.
Folha - Concep��es como esquerda e direita valem para a Igreja?
Dom Jaime Spengler - N�s temos como centro o Evangelho. � o que nos pauta. A nota talvez tenha causado desconforto em alguns setores. Algo muito bonito que est� no Evangelho de Mateus, mas que � extremamente desafiador: l� diz que seremos avaliados diante de situa��es muito simples. Estava com fome, me destes de comer. Tinha sede, me destes de beber. N�o podemos jamais perder isso de vista.
Folha - O sr. certa vez falou sobre a indiferen�a religiosa. Uma amea�a ao catolicismo at� maior do que a expans�o evang�lica. Por que aumenta tanto o n�mero de pessoas sem qualquer religi�o?
Dom Jaime Spengler - Aqui voc� toca numa quest�o muito sens�vel. Realmente acho que o segmento que mais cresce hoje s�o os indiferentes e aqueles que se dizem agn�sticos. Talvez haja um certo desencanto, de alguns, com a forma como a mensagem � transmitida. H� ainda situa��es que podem ser contratestemunho, e isso traz o descr�dito.
Folha - Uma dessas situa��es � a quest�o do abuso contra fi�is, sobretudo menores de idade.
Dom Jaime Spengler - � uma realidade que faz parte do conv�vio humano. As not�cias que emergiram trouxeram situa��es vergonhosas. Diminuem aquilo que se espera de um ministro do Evangelho. � muito oportuna a iniciativa do Santo Padre de trazer de forma expl�cita essa realidade.
Folha - O sr. disse, em 2022, que quem divulga mentiras n�o � digno de assumir cargo p�blico. A fala foi entendida por grupos cat�licos bolsonaristas como recado a Jair Bolsonaro. Foi?
Dom Jaime Spengler - N�o colocaria aquela minha fala dirigida objetivamente a uma pessoa, mas a um contexto social que est�vamos vivendo. E eu a repetiria no momento atual tamb�m, viu? � algo que est� a� no cotidiano. A verdade abre horizontes. A mentira fecha.
Folha - O Congresso discute agora o PL das Fake News, que enfrenta forte oposi��o de religiosos, inclusive da Frente Parlamentar Cat�lica. O que acha dele?
Dom Jaime Spengler - Somos contr�rios � divulga��o de falsas not�cias. Agora, n�o tenho condi��es de aqui no momento fazer uma avalia��o do projeto em si. Realmente n�o o li nas suas entrelinhas.
Folha - O sr. disse em 2018 � r�dio Vaticano, ao comentar o julgamento de Lula na segunda inst�ncia, que "a justi�a deveria ser feita". Depois de tudo o que aconteceu com o agora presidente, acha que a justi�a prevaleceu?
Dom Jaime Spengler - Essa � uma bela de uma quest�o que voc� me traz. Confesso que fico me perguntando como que num determinado momento existiam tantos elementos que levavam necessariamente � condena��o deste ou daquele personagem, e depois de dois ou tr�s anos simplesmente se diz que aqueles elementos n�o foram suficientemente avaliados, e aquela condena��o de repente n�o foi justa. N�o sei se me explico. Essa esp�cie de contradi��o jur�dica � algo que tamb�m nos preocupa, sim. Porque a justi�a, claro, precisa ser feita. Agora, n�o podemos nos deixar levar pelo calor do momento. Ali�s, voc� que � jornalista pode at� me ajudar, porque o meio jur�dico n�o � meu �mbito.
Folha - No caso de Lula, um dos pontos postos em xeque foi a imparcialidade do ent�o juiz Sergio Moro. Esse tipo de situa��o causa estranheza, n�?
Dom Jaime Spengler - Para o sr., houve casu�smo pol�tico, seja na revoga��o de penas da Opera��o Lava Jato, seja na condena��o? Essa tamb�m � uma boa pergunta. N�o saberia responder. Mas digo que isso causa uma d�vida social na autoridade jur�dica, e isso traz uma inseguran�a. N�o � bom para n�s.
Folha - Carta assinada por um padre e um frade acusa a CNBB de perpetuar o "pacto da branquitude" ao supostamente ignorar candidatos negros para postos da dire��o.
Dom Jaime Spengler - Certamente a sociedade tem uma d�vida com os povos origin�rios e tamb�m com os afrodescendentes. Toda express�o de discrimina��o precisa encontrar caminhos para a supera��o. � uma chaga que marca nossa sociedade. Sobre a elei��o, a assembleia [da CNBB] � soberana, escolhe seus representantes atrav�s do voto secreto. A verdade � que, sim, n�s, os quatro membros da presid�ncia, temos uma caracter�stica. �bvio, olha aqui meu cabelo, minha pele. A natureza que me fez assim. Sou brasileiro, fa�o parte desta na��o e com muito orgulho, viu? Tenho orgulho da minha origem sem diminuir jamais outras express�es.
� frente das 12 comiss�es que constituem a entidade, temos dois presidentes afrodescendentes. Temos que reconhecer que a presen�a no seio do clero ainda � pequena por fatores tamb�m hist�ricos. No passado existia uma resist�ncia. E a quest�o da voca��o n�o � simplesmente express�o de uma decis�o pessoal. � gra�a de Deus. � Ele quem chama.
Folha - O papa decidiu que as mulheres poder�o votar pela primeira vez num s�nodo. Acredita que as mulheres devem ganhar espa�o no clero?
Dom Jaime Spengler - � uma quest�o em debate. H� sinais de que no passado, sobretudo na origem da Igreja, existia, sim, um diaconato feminino. Precisamos aprofundar os estudos. Mulheres sempre tiveram lugar de destaque na promo��o da f�. As testemunhas primeiras da ressurrei��o foram elas. Diria at� brincando, j� que estou aqui conversando com uma mulher: o que seria de n�s sem voc�s? Essa participa��o do feminino da vida ordin�ria da Igreja precisa ser promovida. Oxal� possamos juntos ampliar esses espa�os.
Folha - O papa prega respeito � comunidade LGBTQIA+, mas defende a doutrina que enquadra a homossexualidade como pecado. Tamb�m j� falou em "coloniza��o ideol�gica" na educa��o sexual em escolas. Como a CNBB vai tratar o tema?
Dom Jaime Spengler - Demorou para voc� trazer essa quest�o [ri]. Veja, parto de um princ�pio muito simples: s�o pessoas humanas, e merecem nosso respeito. O pr�prio Evangelho diz que h� pessoas que foram feitas assim. Como ser, junto a essas comunidades, uma presen�a evangelizadora capaz de promover uma palavra de f� sem trair aquilo que para n�s � importante? Temos que ir ao encontro dessas pessoas ajudando, se poss�vel, a pautar a pr�pria vida de acordo com aquilo que s�o os crit�rios do Evangelho.
Folha - Isso significaria o que exatamente? Querer que um gay deixe de s�-lo, por exemplo?
Dom Jaime Spengler - Como tamb�m o h�tero precisa manter um comportamento �tico a partir daquilo em que acreditamos. Dom Ricardo Hoepers, eleito secret�rio-geral da CNBB, defende o Estatuto do Nascituro, que prev� retirar o aborto legal em casos de estupro. A entidade defende a revis�o de guaridas legais ao procedimento? Precisamos de espa�os amplos para debate. Como Igreja, temos posi��o consolidada. N�o podemos n�o defender a integridade da vida desde a concep��o. Isso, para n�s, � um princ�pio basilar. � claro que existem essas situa��es que voc� traz: viol�ncia, abusos tamb�m de menores. Situa��es muito delicadas que requerem consenso. Tem uma express�o de dom Helder C�mara: quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes.
Raio-X
Dom Jaime Spengler, 62
Catarinense, entrou numa ordem franciscana 41 anos atr�s. Cursou filosofia e teologia na juventude e, mais tarde, fez doutorado em filosofia na Pontif�cia Universidade Antonianum, em Roma. Em 2013, papa Francisco o nomeou arcebispo de Porto Alegre. Seis anos depois, virou vice-presidente da CNBB e, em abril, foi eleito l�der da entidade at� 2027.