
Quando a gente vai cortar o cabelo, � esperado que a conversa no sal�o gire em torno de temas leves e corriqueiros, como a rodada do futebol, as fofocas das celebridades ou as not�cias do momento. Em 2018, por�m, eu quase pulei da cadeira quando meu cabeleireiro me disse: "Voc� pode estar com c�ncer".
Enquanto mexia e cortava o meu cabelo, ele notou uma mancha suspeita (parecida com a imagem que abre esta reportagem) debaixo de alguns fios, perto da orelha direita. Na avalia��o dele, aquilo era um sinal t�pico de melanoma, tumor que atinge a pele e costuma ser agressivo.
- O c�ncer raro que tem dor nas costas como principal sintoma
- Mulher � diagnosticada com c�ncer terminal durante ces�rea
Como rep�rter de sa�de prevenido e acostumado a ler e escrever muito sobre o assunto, resolvi agendar na mesma semana uma consulta dermatol�gica. De fato, o alerta fazia sentido: aquela mancha na minha cabe�a podia mesmo ser um tumor. Havia, inclusive, a indica��o de remov�-la numa cirurgia e enviar o material para bi�psia.
Passados quase quatro anos deste epis�dio, ainda penso nas ironias do c�ncer de pele. Afinal, falamos de uma doen�a marcada por uma les�o aparente, vis�vel a olho nu. Mesmo assim, n�o � raro que ela s� seja detectada num est�gio avan�ado, ap�s anos de desenvolvimento. Para piorar, numa parcela pequena de pacientes, o tumor brota em �reas que a gente simplesmente n�o consegue enxergar.
Poderia ser meu caso, com o aparecimento da mancha no couro cabeludo. Ou o de um indiv�duo que vive sozinho e n�o consegue ver em detalhes a regi�o genital ou as costas, as n�degas e a parte traseira das coxas por completo.
O diagn�stico tardio do melanoma � preocupante. Quando isso acontece, h� um grande risco de met�stase, est�gio em que a doen�a se espalhou para outras partes do corpo e as op��es de tratamento ficaram mais escassas.
Mas quando se preocupar com esse tipo de tumor? E quais s�o as estrat�gias que os m�dicos, os pr�prios pacientes e outros profissionais, n�o necessariamente vinculados � �rea da sa�de, podem colocar em pr�tica para detectar a enfermidade quanto antes?
Menos frequente, mais grave
O c�ncer de pele � extremamente comum. Ele representa cerca de 30% de todos os tumores que s�o diagnosticados.
Em linhas gerais, h� tr�s subtipos da doen�a que afetam a camada externa do nosso corpo: o carcinoma basocelular, o carcinoma espinocelular e o melanoma.
Os dois primeiros s�o os mais frequentes e configuram cerca de 97% dos casos da doen�a. A boa not�cia � que eles costumam ser bem mais simples e f�ceis de lidar. Nesse contexto, � poss�vel falar de cura na maioria das vezes.
J� os 3% restantes pertencem aos melanomas. E aqui a situa��o fica um pouco mais s�ria: trata-se de um tumor agressivo que, se n�o for detectado nas fases iniciais, complica e pode se espalhar pelo organismo.
"O melanoma se origina nos melan�citos, um tipo de c�lula produtora do pigmento que determina a cor da pele", explica o m�dico Renato Marchiori Bakos, coordenador do Departamento de Oncologia Cut�nea da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
O Instituto Nacional de C�ncer (Inca) estima que 8.450 brasileiros s�o diagnosticados com melanoma todos os anos — desses, 1.923 morrem devido � doen�a.
Os principais fatores de risco para o desenvolvimento dessa enfermidade s�o a exposi��o frequente ao sol sem nenhum tipo de prote��o, o uso de c�maras de bronzeamento artificial, ter pele ou olhos claros e o hist�rico familiar (quando um parente pr�ximo foi diagnosticado com o mesmo problema no passado).
T�o perto e t�o longe da vista
O oncologista Jo�o Duprat, l�der do Centro de Refer�ncia de Tumores Cut�neos do A.C.Camargo Cancer Center, em S�o Paulo, tamb�m v� com certa ironia as barreiras para o diagn�stico precoce do melanoma.
"Por um lado, trata-se de um c�ncer que est� na pele e pode ser visto a olho nu, sem a necessidade de exames de imagem complexos para o diagn�stico", diz.
"Por outro, as pessoas n�o conseguem visualizar bem ou muitas vezes demoram anos para pensar que aquele sinal na pele pode ser um tumor", completa.
Em linhas gerais, os especialistas entendem que h� uma falta de informa��o sobre quais s�o os sinais sugestivos de um melanoma e quando � preciso buscar a avalia��o de um profissional.
Para isso, eles criaram a "regra do ABCDE", que resume os cinco principais atributos de um poss�vel tumor na pele:
- A de assimetria: pintas ou manchas disformes, em que um lado � diferente do outro;
- B de borda: as margens delas s�o irregulares e borradas;
- C de cores: h� mais de um tom ali, que pode variar entre branco, preto, cinza e marrom;
- D de di�metro: pintas e manchas com mais de 5 mil�metros de extens�o;
- E de evolu��o: mudan�as de tamanho, cor, formato ou apar�ncia com o passar do tempo.

"Na presen�a de uma ou mais dessas caracter�sticas, � importante buscar um dermatologista", orienta Duprat.
"Al�m disso, manchas ou feridas na pele que fogem dessas caracter�sticas, mas n�o cicatrizam depois de um m�s, devem ser analisadas de perto", complementa.
No pr�prio consult�rio, o m�dico usa equipamentos simples (como o dermatosc�pio) para verificar o que est� ocorrendo e indicar a conduta mais adequada.
Uma les�o dif�cil de visualizar
Bakos explica que o melanoma costuma aparecer com mais frequ�ncia na face, no tronco e nos membros.
"Na maioria das vezes, eles est�o associados �s queimaduras de sol ao longo da vida", aponta o dermatologista, que tamb�m � professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Com o passar do tempo, a radia��o que vem do sol — os raios ultravioleta A (UVA) ou B (UVB) — pode danificar o material gen�tico das c�lulas da pele. O DNA corrompido gera as c�lulas cancerosas, que come�am a se replicar de forma desenfreada e provocam s�rios abalos � sa�de.
Numa parcela menor dos pacientes com melanoma, � ainda mais complicado fazer o diagn�stico precoce: as les�es se desenvolvem em locais dif�ceis de ver por conta pr�pria, como o pr�prio couro cabeludo, citado no in�cio da reportagem, na regi�o genital ou nas costas. O melanoma pode, inclusive, aparecer at� embaixo da unha.
� a� que entram em cena outros profissionais, n�o necessariamente relacionados � sa�de, mas que auxiliam demais na detec��o precoce.
"Cabeleireiros, barbeiros, pod�logos e manicures ajudam muito nesse sentido. Eles podem ser orientados a detectar as les�es e alertar os clientes", exemplifica Duprat.
Em indiv�duos mais velhos, que est�o com o cabelo branco, o melanoma pode chamar a aten��o tamb�m ap�s o nascimento repentino de uma faixa de fios escuros na cabe�a.
Isso acontece porque os melan�citos doentes, que est�o na raiz daqueles fios, acabam fabricando mais pigmento do que o usual, o que altera at� a cor daquele trecho espec�fico de cabelo.
"Os tatuadores tamb�m contribuem bastante, porque temos casos de pessoas que fazem tatuagens para esconder pintas ou manchas das quais se envergonham", complementa o m�dico.

O Grupo Brasileiro de Melanoma, inclusive, tem um projeto que d� aulas e palestras sobre a detec��o de casos suspeitos em escolas profissionalizantes ou eventos que re�nem trabalhadores dessas �reas que lidam diretamente com a pele.
Barkos acrescenta que outras especialidades m�dicas t�m um papel a cumprir nesse contexto. "Nas consultas peri�dicas, o ginecologista ou o urologista podem notar alguma mancha na regi�o �ntima, que muitas vezes passa despercebida ou est� coberta por pelos."
J� Duprat lembra de mais uma dificuldade no diagn�stico precoce do melanoma: as ocasi�es em a doen�a aparece em negros ou asi�ticos, que n�o integram o grupo de risco cl�ssico deste tipo de tumor.
"Pelo fato de esse c�ncer ser menos comum nesses grupos, muitos nem pensam na possibilidade de o paciente negro ou asi�tico estar com melanoma", lamenta.
"Neles, � mais comum que a les�o apare�a na planta dos p�s ou na palma das m�os", descreve.
Portanto, a recomenda��o segue a mesma, independentemente das caracter�sticas individuais: manchas, pintas ou feridas que apresentam qualquer uma daquelas caracter�sticas do ABCDE ou n�o cicatrizam depois de 30 dias devem ser avaliadas por um profissional da sa�de.
Boas novas terap�uticas
Se a bi�psia confirmar que a pinta ou mancha � realmente um tumor, o m�dico pode prescrever uma s�rie de condutas terap�uticas.
Nos casos iniciais, em que a les�o ainda n�o � muito profunda, o caminho mais usual � a cirurgia. Na maioria desses casos, basta retirar com o bisturi o pedacinho de pele atingido.
A detec��o precoce desse tumor � importante justamente por isso: nos primeiros est�gios da doen�a, a remo��o cir�rgica costuma resolver de vez o problema, sem a necessidade de outros tratamentos complementares.
"Agora, se a les�o j� � um pouco mais extensa, precisamos avaliar os g�nglios linf�ticos para conferir se j� ocorreu a met�stase", diz Duprat.
Como explicado mais acima, a met�stase � o processo em que o c�ncer se espalha para outras partes do corpo.

Mas mesmo nesses casos mais avan�ados, o tratamento do melanoma passou por uma verdadeira revolu��o na �ltima d�cada com a chegada dos imunoter�picos. Trata-se de uma nova classe de medicamentos que estimula o pr�prio sistema imunol�gico do paciente a atacar e eliminar as c�lulas cancerosas.
"Antigamente, ou voc� fazia o diagn�stico precoce do melanoma ou a casa ca�a e n�o tinha muito mais o que ser feito. A quimioterapia era extremamente ineficiente para tratar esse c�ncer metast�tico", lembra Duprat.
"Hoje, com a imunoterapia, voc� consegue ampliar a expectativa de vida do paciente com pouqu�ssimos efeitos colaterais. A �nica barreira desse tratamento � o pre�o, que continua muito elevado", compara o oncologista.
Se os recursos contra esse tipo de c�ncer evolu�ram consideravelmente nos �ltimos anos, as recomenda��es para prevenir a doen�a continuam as mesmas.
"A queimadura de sol � um dos principais fatores que levam ao desenvolvimento de c�ncer de pele no futuro. Portanto, quando estiver no ambiente externo, o ideal � usar camiseta, �culos escuros e chap�u para cobrir as �reas mais sens�veis", lista Bakos.
"Nas partes da pele que ficam desprotegidas, � importante passar protetor solar e reaplicar de tempos em tempos", conclui o dermatologista.
Para aqueles indiv�duos de pele clara, que possuem muitas pintas ou t�m hist�rico de melanoma na fam�lia, consultas peri�dicas com um dermatologista tamb�m s�o indicadas.
Pedir que seu cabeleireiro, barbeiro, pod�logo, tatuador ou qualquer outro profissional que mexe com est�tica alerte sobre pintas e manchas em �reas "escondidas" tamb�m � uma excelente ideia — como, ali�s, eu mesmo aprendi e senti na pele h� pouco tempo.
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