
Imagine voc� enxergar um sapo em vez de um abacate, gatos em vez de sacolas pl�sticas e pelicanos passeando em alas hospitalares. Essas confus�es visuais acontecem com pessoas que sofrem de agnosia visual, que, em resumo, � a perda da capacidade de reconhecer pessoas, objetos ou cores, mesmo enxergando normalmente.
Em maio de 2019, a designer educacional Camila Fabro da Silveira teve um ataque isqu�mico transit�rio (AIT) e em seguida dois Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs): um hemorr�gico e outro isqu�mico.
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Dois anos depois, ela foi diagnosticada com agnosia visual, como sequela dos AVCs. Na �poca, Camila estava com 34 anos. Ela conta que enquanto ainda estava na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) come�ou a confundir objetos que tinham alguma similaridade e a ver coisas inexistentes.
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"Na UTI, eu vi a bota marrom de uma mulher que estava visitando um paciente ao meu lado e enxerguei uma galinha ciscando. Da� eu comecei a pedir para tirar aquele "bicho" dali. Mas o t�cnico de enfermagem disse para eu me acalmar, que n�o havia bicho nenhum e que, provavelmente, eu estava tendo uma rea��o adversa dos medicamentos. Mas a "galinha" apareceu novamente, e eu gritei apontando para ela. Ent�o, uma das enfermeiras falou no meu ouvido que eu estava apontando para a bota de franjas da visitante", recorda-se, agora, com bom humor.
A partir da�, as confus�es visuais n�o pararam mais e uma enxurrada de bichos come�ou a aparecer. "Teve uma vez que o meu pai veio aqui em casa e colocou frutas na geladeira e, entre elas, tinha um abacate. Mas quando abri a geladeira eu vi um sapo, fiquei desesperada e bati nele. Da� ele caiu embaixo da pia e foi um dos maiores pavores da minha vida, porque eu tentei matar o abacate, e depois coloquei ele num saco de lixo chorando de nervoso, porque eu estava vendo um sapo", conta.
Nesse caso, ela ficou assustada, mas, em outras situa��es, ela toca e, aos poucos, vai percebendo o que �. "Outra vez eu estava com a minha tia e vi algumas joaninhas grandes na salada, mas eu fui vir�-las e percebi que eram tomates cerejas. E tamb�m j� confundi pera com ma��", conta.
De todas as coisas, por�m, o que a deixa mais confusa e bastante aflita s�o sacolas pl�sticas brancas sem nenhum logo. Camila tem dois gatos brancos e enxerga seus animais de estima��o por todos os cantos da cidade.
"� at� engra�ado falar isso, mas eu j� vi meus gatos em v�rios locais, e se a sacola est� 'meio que voando', da� eu vejo p�ssaros e outras coisas, menos o que realmente �", conta, aos risos, pois � com bom humor que decidiu encarar sua condi��o.
E para Camila, o pior n�o s�o as vis�es, mas sim o julgamento de quem n�o sabe da sua condi��o, pois ela j� encontrou maneiras de driblar suas dificuldades, como apertar o gato, e, se miar, � porque realmente � ele.
A face das pessoas, ela tamb�m n�o identifica naturalmente, condi��o chamada de prosopagnosia, um d�ficit neurol�gico que deixa o indiv�duo com dificuldade para reconhecer especificamente rostos. "Mas eu tento reconhecer pelos detalhes em volta, o movimento do cabelo e pela voz", comenta.

Beatriz Baldivia, neuropsic�loga e especialista em reabilita��o neuropsicol�gica, diz que o impacto da prosopagnosia na vida adulta � muito dif�cil, porque, at� ent�o, a pessoa tinha uma vida comum e, do dia para a noite, precisa lidar com mudan�as radicais.
Camila conta que costuma ver animais no lugar de objetos de forma aleat�ria. Ela tamb�m chegou a conversar com uma pessoa achando que era o seu amigo, mas na verdade era o irm�o dele.
Por fim, o diagn�stico foi poss�vel gra�as � ajuda de um amigo, que levantou a hip�tese de agnosia para o seu neurologista. No ano passado, ela passou com uma neuropsic�loga, realizou v�rios testes e o diagn�stico de agnosia visual e prosopagnosia foi confirmado.
"Eu fiz tratamento psicol�gico e quase fui encaminhada para a psiquiatria. Um diagn�stico ps�quico anterior dizia que eu n�o poderia mais nem trabalhar normalmente. Se n�o fosse meu amigo m�dico dizer que eu n�o tinha doen�a mental, possivelmente, eu n�o teria mais a minha vida", desabafa a designer educacional.
Hoje Camila faz tratamento de reabilita��o, � colunista de um jornal local e no Instagram (@camiladesmiolada) publica diversos conte�dos sobre os riscos e poss�veis sequelas do AVC. "Eu zoo eternamente de tudo", conclui.
'A minha inf�ncia foi triste, mas a adolesc�ncia foi muito pior'
A cientista, bi�loga e doutora em ci�ncias pelo Instituto de Ci�ncias M�dicas da Universidade de S�o Paulo (ICB-USP) Ana Bonassa, de 33 anos, tem prosopagnosia cong�nita, ou seja, nasceu com essa condi��o.
Desde crian�a ela era tachada como uma pessoa muito t�mida e n�o tinha amigos, e durante a adolesc�ncia chegou a ser diagnosticada apenas com fobia social.
"Eu fui uma pessoa muito solit�ria na inf�ncia, mas na adolesc�ncia eu n�o ia para festas, ningu�m me chamava para nada, eu n�o fiz nada al�m de estudar. Foi bem triste, eu pensava que as pessoas n�o gostavam de mim e talvez n�o gostavam mesmo, mas se soubessem da minha condi��o, talvez eu conseguiria explicar isso e seria melhor aceita", lamenta a cientista, ressaltando a import�ncia do diagn�stico precoce.

Na adolesc�ncia, ela lembra que tinha pavor de sair na rua e chegava a tremer e a suar frio porque iria encontrar pessoas. "�s vezes, voltando da escola para casa, eu atravessava a cal�ada vinte vezes se fosse preciso s� porque via pessoas no quarteir�o � frente e pensava que n�o queria passar por elas", recorda-se.
Hoje, ela pensa que o medo n�o era exatamente de encontrar aquelas pessoas, mas sim de n�o reconhecer. "Na adolesc�ncia eu sofria bullying, tinha meninas que me batiam. Eu n�o sabia o que estava encontrando na frente, se eram pessoas que seriam hostis, se iriam me ignorar ou ser legais comigo, ent�o, eu sempre evitava pessoas", relembra.
A neuropsic�loga afirma que a prosopagnosia do desenvolvimento � muito subnotificada, e isso faz com que a pessoa cres�a sabendo que tem alguma coisa de diferente, mas n�o consegue distinguir exatamente o que �.
"O efeito psicol�gico disso pode ser a sensa��o de estranheza em rela��o aos outros, o distanciamento social, ansiedade. E as pessoas ao redor tentam justificar o comportamento dela dizendo que � metida e arrogante. Por isso, essa pessoa cresce com r�tulos que n�o pertencem a ela, mas sim � sua condi��o", explica Baldivia, que tamb�m � professora de p�s-gradua��o do Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Ci�ncias Cognitivas (IBNeuro) e do Instituto de P�s-gradua��o e Gradua��o do (IPOG).
Anos depois, Ana leu em uma reportagem sobre a prosopagnosia, e a partir da� veio a suspeita. Em 2016, j� com 26 anos, ela procurou um m�dico, fez os testes e confirmou o diagn�stico.
No in�cio, a cientista n�o sabia como explicar sua condi��o para as pessoas, e foi apenas depois de criar o canal no Youtube Nunca vi 1 cientista que ela come�ou a falar a respeito. "Um dia fiz um v�deo no canal, chorei, falei das experi�ncias e das coisas que sinto. Eu fiz esse v�deo tentando ajudar pessoas", conta.

Ela explica que mesmo se for uma pessoa da fam�lia bem pr�xima, dependendo da situa��o, n�o a reconhece pelo rosto e usa o contexto e caracter�sticas f�sicas para facilitar o reconhecimento.
"Se eu vou para a casa da minha m�e e l� eu vejo uma mulher loira e com certa voz, eu vou saber que � minha m�e. Ent�o, todas essas outras informa��es que os n�o prosopagnos�acos usam, eu tamb�m uso, s� que muito mais. Mas se, por acaso, a minha m�e cortar o cabelo e vir para S�o Paulo sem eu estar esperando, ela pode passar do meu lado na rua que eu n�o vou reconhecer", descreve. "At� eu mesma posso n�o me reconhecer numa foto, se estiver com o cabelo mais escuro, por exemplo", acrescenta.
Octavio Marques Pontes Neto, neurologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeir�o Preto da Universidade de S�o Paulo (FMRP-USP), alerta que pessoas t�m prosopagnosia (na forma cong�nita) e se adaptaram para reconhecer os outros usando outras caracter�sticas f�sicas da face ou do corpo, como o som da voz ou o formato do nariz podem mascarar o problema, caso ainda n�o tenham sido diagnosticadas.
Agnosia visual e a prosopagnosia s�o condi��es pouco faladas
A agnosia n�o � uma doen�a, mas sim um sintoma que impede as pessoas de reconhecer as coisas atrav�s da vis�o. Ela pode ser identificada atrav�s de testes de imagem e da fun��o cerebral. Estima-se que at� 3% da popula��o mundial agnosia.
Na maioria das vezes, esse dist�rbio � causado por uma les�o no lobo parietal, temporal ou occipital do c�rebro. Essas �reas armazenam mem�rias dos usos e import�ncia dos objetos, vis�es, sons familiares. Para simplificar: elas s�o respons�veis pela associa��o das imagens aos seus respectivos significados.
A agnosia pode ser adquirida como sequela de um AVC, tumores ou les�es cerebrais, abscessos (bolsas de pus) cerebrais e doen�as degenerativas, como o Alzheimer, ou cong�nita. Entre as principais agnosias est�o:
- Agnosia visual: � a incapacidade de reconhecer objetos simples do dia a dia, uma cor, um rosto e por a� vai. Por exemplo, pode ter um talher em cima da mesa e a pessoa enxergar uma caneta, ou vice-versa. Esses pacientes enxergam normalmente, o problema � a dificuldade de identificar o que se v�. Nesses casos, o reconhecimento pode ser feito atrav�s de outros sentidos, como o tato.
- Agnosia auditiva: dificuldade de identificar objetos por meio do som, como um telefone tocando.
- Agnosia gustativa: sente os sabores, mas n�o consegue identific�-los.
- Agnosia olfativa: sente os cheiros, mas n�o consegue discerni-los.
- Agnosia t�til: � a incapacidade de reconhecer um objeto pelo toque.
Al�m disso, em alguns tipos de agnosia, apenas processos espec�ficos de um sentido s�o afetados. Desses, a prosopagnosia (cegueira facial) � a mais comum.
A marca registrada desse dist�rbio espec�fico � o n�o reconhecimento de rostos. Estudos refor�am que a prosopagnosia � amplamente subdiagnosticada e apontam que cerca de 3% da popula��o sofre com ele.
"A prosopagnosia pode se desenvolver precocemente ainda nos primeiros meses de vida porque, por algum motivo, determinadas �reas do c�rebro n�o se desenvolveram adequadamente", diz Pontes Neto, neurologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeir�o Preto da Universidade de S�o Paulo.

H� duas formas de prosopagnosia. A primeira e mais rara � a forma adquirida, isto �, quando a pessoa tinha a habilidade de reconhecer faces e a perdeu. Esses casos ocorrem quando h� alguma les�o cerebral e o sintoma surge como uma sequela. Estudos apontam que o quadro pode melhorar ou n�o, dependendo da doen�a de base. Mesmo assim, os m�dicos n�o falam em cura, mas sim em reabilita��o.
Tamb�m existe a prosopagnosia cong�nita. "Cerca 2,5% da popula��o tem algum grau de prosopagnosia cong�nita, que � quando a pessoa tem dificuldade para reconhecer faces, mas sabe dizer que v� dois olhos, um nariz e outras partes do rosto. O que ela n�o sabe � capturar toda a imagem da face e juntar para reconhecer a pessoa", diz o neurologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeir�o Preto da Universidade de S�o Paulo.
O livro O Homem Que Confundiu Sua Mulher com um Chap�u (t�tulo original, em ingl�s: The Man Who Mistook His Wife for a Hat) � uma boa maneira de entender melhor a prosopagnosia. Ele foi escrito pelo neurologista brit�nico Oliver Sacks (1933-2015), que descreveu 24 casos cl�nicos.
Em particular, o estudo do caso de um homem com prosopagnosia que tenta pegar seu chap�u, mas pega a cabe�a de sua esposa e tenta coloc�-la na cabe�a, sem conseguir perceber o que estava fazendo de errado, chama aten��o de especialistas do mundo inteiro.
Segundo os especialistas, o diagn�stico de prosopagnosia cong�nita deve ser feito com cautela, pois as agnosias na inf�ncia podem ser confundidas com autismo. "� claro que as duas condi��es podem acontecer juntas, mas n�s devemos diminuir esses equ�vocos", pontua Baldivia, neuropsic�loga e especialista em reabilita��o neuropsicol�gica.
Al�m da prosopagnosia, tamb�m h� outros tipos de agnosias, como:
- Agnosia ambiental: n�o reconhecer locais familiares;
- Acromatopsia: n�o reconhecer as cores;
- Anosognosia: nesses casos, as pessoas insistem que n�o h� nada de errado ou ignoram o problema, mesmo quando um dos lados do seu corpo est� paralisado;
- Simultanagnosia: n�o consegue ver mais de um objeto, quando na verdade h� v�rios.
Breno Barbosa, professor adjunto de Neurologia do Hospital das Cl�nicas, vinculado � rede Ebserh, da Universidade Federal de Pernambuco UFPE e Vice-coordenador do Departamento Cient�fico de Neurologia Cognitiva da Academia Brasileira de Neurologia, diz que para uma boa reabilita��o, o paciente deve ter acesso a uma equipe multidisciplinar composta, em especial, por neurologista, terapeuta ocupacional e neuropsic�logo.
"O paciente vai precisar fazer as terapias de reabilita��o para estimular as �reas do c�rebro para que aos poucos consiga reaprender as coisas usando os sentidos que n�o foram afetados. �s vezes, a casa precisa ser adaptada, o trabalho, o teclado do computador", conclui Barbosa.
Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62434449
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