Estudos recentes t�m mostrado que, mais importante que a for�a do impacto, a frequ�ncia de pancadas na cabe�a (e o curto espa�o de tempo entre elas) � o fator decisivo para desenvolver problemas neurol�gicos
A primeira delas foi em 1958, quando era o capit�o da Sele��o Brasileira e ergueu pela primeira vez a ta�a da Copa do Mundo para o pa�s.
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A segunda ocorreu em 2014, quando a fam�lia decidiu doar o c�rebro do ex-atleta para estudos cient�ficos, logo ap�s a morte dele.
No final da vida, Bellini desenvolveu sintomas t�picos de dem�ncia, como esquecimentos frequentes e dificuldades de racioc�nio.
A an�lise do �rg�o mostrou que, na verdade, ele foi acometido pela encefalopatia traum�tica cr�nica.
Essa condi��o afeta pessoas que sofreram pancadas repetidas na cabe�a ao longo da vida — como � o caso de jogadores de futebol e boxeadores.
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Ao lado de outros ex-esportistas, a hist�ria do capit�o do primeiro t�tulo mundial brasileiro jogou luz e revelou o impacto que os esportes de contato podem ter na sa�de do c�rebro pelo resto da vida.
Mas, afinal, o que � a encefalopatia traum�tica cr�nica? E quais s�o os meios de evitar esse problema?
A quest�o est� na frequ�ncia
A m�dica Roberta Diehl Rodriguez, do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP), explica que essa doen�a passou a ser estudada mais a fundo recentemente, nos �ltimos 15 anos. "E n�s s� conseguimos fazer o diagn�stico definitivo da encefalopatia traum�tica cr�nica depois que o indiv�duo morre, por meio da an�lise do c�rebro", diz.
Pelo que se sabe at� o momento, o quadro pode se manifestar de diferentes maneiras. Alguns apresentam sintomas parecidos ao do Alzheimer, como perda de mem�ria e dificuldades para completar o racioc�nio.
Em outros, por�m, os inc�modos se aproximam mais de quadros psiqui�tricos, como o transtorno bipolar, em que ocorrem altera��es de humor.
H� tamb�m casos descritos em que o paciente desenvolveu v�cios fortes em apostas, �lcool ou outras drogas. "Os estudos mais recentes tamb�m nos mostram que, mais importante do que a quantidade ou a for�a das pancadas, um aspecto fundamental da doen�a � o intervalo entre os traumas", informa Rodriguez. Ou seja: se o indiv�duo tem um choque de cabe�a e, poucos dias depois, passa por um acidente parecido, isso representaria um sinal de alerta maior.

O zagueiro Bellini (� esquerda) disputa a bola de cabe�a com o gal�s Ivor Allchurch e o tamb�m brasileiro De Sordi na Copa do Mundo de 1958
Getty ImagesPossivelmente, pancadas t�o pr�ximas n�o d�o tempo de o c�rebro se recuperar bem daquele primeiro impacto, o que piora ainda mais os efeitos que isso tem ao longo da vida.
� por isso, ali�s, que atletas de algumas modalidades s�o mais propensos a sofrer com a tal da encefalopatia traum�tica cr�nica: a pr�pria natureza da profiss�o os predisp�e a levar pancadas no cr�nio.
Os primeiros dessa lista s�o os lutadores, j� que a meta desse esporte est� justamente em acertar a cabe�a do advers�rio com socos e chutes — no passado, inclusive, a doen�a era conhecida como "dem�ncia pugil�stica", nome que caiu em desuso recentemente.
Grandes nomes do boxe, como Muhammad Ali e �der Jofre, por exemplo, apresentaram problemas neurol�gicos no final da vida.
Jogadores de r�gbi e futebol americano tamb�m s�o mais propensos a desenvolver o problema, j� que esses esportes s�o marcados por muitos choques e encontr�es.
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Por fim, os profissionais do futebol completam o grupo. Como cruzamentos e bolas a�reas s�o um recurso importante do esporte, as batidas de cr�nio s�o frequentes — e, como voc� vai entender mais adiante, t�m se tornado mais comuns nas �ltimas d�cadas.
C�rebro em desalinho
Mas o que acontece na cabe�a logo ap�s a pancada?
Para entender esse mecanismo, � preciso conhecer antes uma prote�na chamada TAU. "Ela ajuda a manter a estrutura dos neur�nios e auxilia no transporte de nutrientes entre uma c�lula e outra", resume Rodriguez.
S� que as pancadas repetidas parecem alterar um pouco desse balan�o neuronal. Quando ocorre o choque de cabe�a, essa prote�na se rompe e ocorre uma inflama��o. E a� entra o aspecto cr�nico das batidas. "Se outra pancada acontece logo depois, o c�rebro n�o consegue se recuperar da primeira e aquela prote�na come�a a se depositar ali", diz a neurologista. "Com o passar do tempo, esses agregados anormais de prote�na TAU come�am a prejudicar a passagem de informa��es e nutrientes nos neur�nios", complementa.
E isso, ao longo de v�rias d�cadas, pode culminar em grandes dificuldades para o funcionamento adequado do c�rebro.
Vale mencionar que esses mesmos emaranhados de prote�na TAU s�o observados em outras enfermidades neurol�gicas, como o pr�prio Alzheimer.
Na encefalopatia traum�tica cr�nica, por�m, � poss�vel identificar um fator que est� por tr�s do ac�mulo dessa subst�ncia: as pancadas repetidas na cabe�a.

O pugilista brasileiro �der Jofre (� direita) morreu em outubro de 2022 e teve o c�rebro doado para estudos na USP
Getty ImagesRodriguez conta que a USP possui um grande banco de c�rebros, que s�o conservados para pesquisas cient�ficas. "Num estudo, eu avaliei 1.157 desses �rg�os que pertenceram a pessoas que n�o tinham um hist�rico de atleta profissional." "Desses, s� encontramos a encefalopatia traum�tica cr�nica em sete homens", continua. "Depois, consegui conversar com a fam�lia de um deles e descobri que o indiv�duo era goleiro de um time amador, pelo qual disputava jogos no final de semana", revela.
O futebol mudou
O m�dico Jorge Pagura, da Confedera��o Brasileira de Futebol (CBF), avalia que o atual estilo de jogo de equipes e sele��es faz com que os choques de cabe�a se tornem cada vez mais comuns e perigosos.
"Antigamente, o futebol era mais disputado com os p�s. Se voc� pegar qualquer v�deo de uma partida dos anos 1970, poder� conferir que os jogadores tinham espa�o para trabalhar a jogada, com o advers�rio marcando a uma dist�ncia de um a tr�s metr�s", descreve.
"Atualmente, voc� v� tr�s ou quatro atletas disputando o mesmo peda�o do gramado", compara. Segundo Pagura, o futebol "saiu da era dos grandes craques para entrar na �poca dos grandes atletas".
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"Falamos de profissionais que s�o mais altos, mais fortes e que correm dist�ncias maiores", diz. "Al�m disso, a bola a�rea virou um artif�cio valioso.
Hoje, muitos gols saem de cabeceios ap�s cruzamentos na lateral ou na linha de escanteio", complementa. Estamos diante, portanto, de um cen�rio que facilita ainda mais os encontr�es de cabe�a entre atletas advers�rios (ou at� mesmo entre companheiros do mesmo time).
Prova disso s�o estudos realizados pela pr�pria CBF, que monitoram as les�es mais comuns que ocorrem nas edi��es recentes do Campeonato Brasileiro.
Em 2019, a cabe�a foi o segundo local do corpo com o maior n�mero de machucados diagnosticados (em primeiro lugar, ficaram os m�sculos das coxas). Para ter ideia, 14% de todas as les�es que ocorreram na competi��o afetaram o cr�nio dos atletas.
O que fazer?
Pagura entende que a conscientiza��o sobre a encefalopatia traum�tica cr�nica no futebol tem aumentado. "Hoje temos um protocolo bem definido e o atleta tem que ser substitu�do se o m�dico achar necess�rio ap�s um trauma", aponta.
"Essas pancadas podem ser um verdadeiro inimigo oculto, porque em 80% das vezes n�o h� altera��o de consci�ncia e o atleta acha que pode continuar no jogo", calcula.

Jogadas de cabe�a ser�o proibidas nos jogos de futebol entre os menores de 12 anos
Getty ImagesCom o avan�o do conhecimento sobre o quadro degenerativo, a tend�ncia � que as pr�prias regras do jogo passem por mudan�as.
Uma das primeiras altera��es foi recentemente promovida pelo Conselho da Associa��o Internacional do Futebol (Ifab, na sigla em ingl�s).
Os representantes da entidade recomendaram que as cabe�adas intencionais na bola devem ser proibidas nas partidas que envolvam crian�as com menos de 12 anos. Nessa faixa et�ria, as jogadas a�reas ser�o paralisadas pelo juiz, que marcar� uma falta para o time advers�rio.
Para Rodriguez, a medida faz sentido, at� porque o c�rebro ainda est� numa fase de desenvolvimento nessa idade. "N�o se trata, claro, de demonizar o esporte ou proibir a pr�tica do futebol, mas encontrar um meio termo para uma competi��o mais saud�vel e com menos riscos", pondera.
E, embora as cabe�adas sejam menos comuns entre atletas de final de semana e nos jogos amadores, Pagura recomenda que todos tomem os cuidados necess�rios para evitar traumas no cr�nio. "Ao contr�rio das les�es que acometem os joelhos ou os tornozelos, em que muitas vezes � f�cil notar o incha�o pela pele, o c�rebro pode n�o dar muitos sinais imediatos de algum problema", compara.
"Se porventura voc� sofrer alguma pancada e ficar com dor de cabe�a ou no pesco�o, � importante procurar o pronto-socorro para ver se est� tudo bem", conclui.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-636031815
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