
"A m�e solo tem muita coisa na cabe�a: alimentar, vestir, arrumar fralda, levar no m�dico, dar rem�dio, encontrar vaga na creche. S� de morar aqui, na ocupa��o, sofre preconceito e n�o consegue emprego. Se consegue, n�o tem com quem deixar o filho. E tem a ansiedade, a depress�o, medo de reintegra��o de posse... E tudo isso sozinha, ela e Deus."
Quem descreve a situa��o � Let�cia Souza, de 31 anos, ela mesmo uma m�e solo — se separou h� poucos meses, dois filhos dentro de casa. Todo dia, ela cuida e leva as crian�as � escola, administra um pequeno com�rcio de lanches, al�m de percorrer a zona sul de S�o Paulo procurando bicos como locutora e animadora de eventos no com�rcio.
Outro trabalho � na comunidade onde mora: Let�cia � uma das lideran�as da ocupa��o Anchieta, comunidade com cerca de 1.200 fam�lias no bairro do Graja�, distrito do extremo sul e o mais populoso da cidade com 360 mil habitantes.
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Ela faz reuni�es, orienta e recebe reclama��es de moradores, conversa com advogados sobre a situa��o legal da ocupa��o e se mobiliza para conseguir doa��es de alimentos para outras m�es como ela.
Nos moradias divididas por lotes, vivem cerca 2.500 crian�as. Segundo Let�cia, a maioria � criada por m�es solo, sem ajuda financeira ou participa��o dos pais. "Os homens desaparecem, fogem, largam os filhos", diz.
"Tem mulher com cinco, seis filhos. A maioria est� desempregada. Muita gente n�o tem o que comer, n�o tem dinheiro nem para colocar no Bilhete �nico. A gente ajuda como pode, mas nem sempre consegue", explica Let�cia, sentada em frente � lanchonete em uma rua de terra na entrada da ocupa��o.
Na Anchieta, al�m de cuidar dos filhos e de todas as outras tarefas di�rias, algumas mulheres como a l�der comunit�ria tamb�m est�o construindo suas pr�prias casas — trabalham como pedreiras em um mutir�o que est� urbanizando a comunidade.
Na semana retrasada, Let�cia percorreu a ocupa��o ao lado da reportagem. Recebeu carteiros e recenseadores do IBGE, verificou material para constru��o que acabara de chegar, al�m de orientar os homens e mulheres que estavam trabalhando nas obras.
"Aqui, a gente faz urbaniza��o no bra�o, abre ruas, constr�i casas. N�o tem prefeito, n�o tem ningu�m, � a gente mesmo", diz Let�cia, mostrando um mapa com o desenho do pequeno bairro que est� surgindo no terreno.
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Nas ruas de terra da Anchieta, a grande maioria dos barracos � de madeira, com fossas s�pticas e liga��es irregulares de �gua e energia el�trica. Fios e canos atravessam as pequenas vielas. "Aqui � uma uma �rea de risco por causa dos inc�ndios. Tomamos muito cuidado com as liga��es, mas sempre existe o risco", diz Let�cia.

'Um futuro melhor'
As casas de alvenaria est�o surgindo nos lotes s�o resultado de doa��es e de uma parceria do movimento de moradores com a Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e com a ONG Peabiru, que assessora a comunidade em quest�es de urbanismo e regulariza��o fundi�ria.
Priscila Santos, 30, � uma das pedreiras que est�o erguendo 42 casas no terreno — as mulheres trabalham em esquema de duplas com homens mais experiente no servi�o.
A jovem ergueu a pr�pria casa, que ainda est� em fase de acabamento enquanto ela e a filha mais nova vivem em um barraco de madeira. Ela pena para conseguir dinheiro.
Priscila tamb�m � uma m�e solo. A filha tem tr�s anos — e os dois mais velhos moram com os av�s em outro bairro
"Deixei com meus pais porque n�o tinha condi��es de cuidar e ficar com eles. Estava sozinha", diz Priscila.

O pai de um de seus filhos foi assassinado em 2013. Outro ex-companheiro, pai da menina, desapareceu quando Priscila estava gr�vida de dois meses.
"Ele disse que precisava sair para resolver um neg�cio, e nunca mais apareceu. Eu procurei, fui na delegacia, mas ningu�m sabia o que aconteceu. Desisti de procurar, porque eu tinha um beb� na barriga, tinha de me virar", diz.
Desempregada, recebe o Aux�lio Brasil, mas os R$ 600 do benef�cio s� ajudam mesmo na alimenta��o, diz. O restante de sua renda vem do trabalho como pedreira na ocupa��o — ganha R$ 180 por semana.
"Eu fa�o massa, abro buraco, amarro ferragens, mexo no concreto. Fui aprendendo com os pedreiros e hoje fa�o tudo", diz Priscila, usando mexendo na terra com uma p�.
Sua futura casa ter� quarto, cozinha e banheiro em pouco mais de 30 metros quadrados. Al�m do acabamento, um problema a resolver � o que fazer com o esgoto que corre ao lado. Para terminar a obra, ela depende de doa��es.
Priscila diz que a experi�ncia nas obras na ocupa��o fez crescer sua vontade de voltar aos estudos para tentar cursar uma faculdade.
"N�o fiz ensino m�dio, mas agora quero voltar. Estou gostando muito de arquitetura, de mexer em obra, gosto muito de matem�tica. Mas tamb�m penso em gastronomia, n�o sei. Preciso me movimentar, dar uma vida melhor pra minha filha, um futuro pra ela. Sonhar n�o custa nada", diz.

'Eu e Deus'
Em outro ponto, mora Suzane de Oliveira, 33, m�e de cinco crian�as — de cinco meses a 14 anos de idade. A fam�lia vive em um pequeno barraco de madeira com apenas uma cama — quatro crian�as dormem em colch�es no ch�o.
Quando chove forte, a �gua escorre de um barranco e alaga a moradia. "A for�a da �gua j� abriu at� um buracos no cimento", diz Suzane, apontando para alguns deles espalhados pela casa.
Recifense, Suzane chegou em S�o Paulo em 2019, depois de se separar do primeiro marido. Trouxe com ela quatro filhos e a esperan�a de uma vida melhor, mas nunca conseguiu emprego e acabou engravidando novamente.
Os dois pais das crian�as ajudam muito pouco financeiramente, e n�o participam do cotidiano dos filhos.
Suzane recebe R$ 600 do Aux�lio Brasil, mas o valor n�o d� conta de alimentar a fam�lia com seis pessoas - falta carne e falta g�s de cozinha. A fam�lia depende de doa��es.
As crian�as comem principalmente na escola, mas o beb� mais novo ainda aguarda uma vaga em alguma creche p�blica do Graja�.
"Aqui em casa n�o tem nada. � arroz e feij�o. S� tem carne e ovo quando sobra dinheiro ou algu�m doa. Mas n�o � todo dia", diz, mostrando a geladeira e os arm�rios praticamente vazios.

Para conseguir dinheiro, Suzane faz pirulitos e tenta vend�-los em shoppings centers da zona sul paulistana enquanto os filhos mais velhos est�o na escola. "Estou comendo o p�o que o diabo amassou. Sou s� eu e Deus", diz.
O caso de Suzane n�o � incomum na ocupa��o Anchieta. Todas as mulheres com quem a reportagem conversou recebem o Aux�lio Brasil, mas ainda assim elas estavam em estado de vulnerabilidade social — algumas em situa��o de inseguran�a alimentar.
O programa do governo federal paga R$ 600 por benefici�rio, independente da situa��o familiar. No antigo Bolsa Fam�lia, por exemplo, o n�mero de filhos determinava qual era o valor que a fam�lia receberia.
O presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva (PT) prometeu retomar o modelo e renomear o programa novamente como Bolsa Fam�lia, que dar� R$ 600 fixos e mais R$ 150 por filho de at� seis anos de idade.
Para o economista Naercio Menezes Filho, professor da c�tedra Ruth Cardoso do Insper, embora o Aux�lio Brasil tenha o m�rito de ter aumentado o valor do benef�cio, o "programa foi mal desenhado porque n�o leva em considera��o a situa��o das fam�lias nem o local onde elas est�o inseridas."
"O custo de vida em S�o Paulo � muito maior do que no interior do Piau�, mas o valor � o mesmo nos dois lugares. No Bolsa Fam�lia, havia regras como um benef�cio maior a depender da situa��o de vulnerabilidade", explica.
"Hoje, um homem sozinho, de 25 anos e que esteja na linha da pobreza, recebe a mesma coisa que uma m�e solo com cinco crian�as em uma ocupa��o", diz.
Para o pesquisador, programas de transfer�ncia de renda n�o s�o os �nicos respons�veis por quebrar o ciclo de pobreza. Segundo ele, o acesso a servi�os de qualidade, como educa��o, sa�de e moradia, � necess�rio para enfrentar esse problema que afeta milh�es de brasileiros.
"� muito dif�cil sair da extrema pobreza sem programas de acesso aos servi�os p�blicos. Sem alimenta��o correta, por exemplo, a crian�a n�o desenvolve seu potencial de habilidades cognitivas e sociais. Ela acaba repetindo de ano, depois sai da escola e, quando adulta, cai na informalidade. Ent�o esse ciclo de pobreza se repete", diz.

Do in�cio do ano at� 31 de outubro, 140.032 crian�as foram registradas nos cart�rios sem o nome do pai - 6,5% dos 2,1 milh�es de beb�s nascidos no per�odo. Os dados s�o do Portal da Transpar�ncia do Registro Civil, da Associa��o Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil)
A taxa anual tem se mantido no patamar de 160 mil crian�as registradas sem o nome do pai.
Hiperperiferias
A ocupa��o Anchieta, nascida no Graja� em 2013, est� em um terreno particular. Hoje, ela tem 1.200 fam�lias, mas chegou a ser bem maior, segundo a l�der comunit�ria Let�cia Souza.
Uma parte dos moradores foi removida para a constru��o de uma escola municipal, inaugurada em 2020. Uma das reclama��es dos moradores � que o col�gio n�o recebe muitas crian�as do assentamento, que precisam estudar em locais mais distantes.

O assentamento � uma das 516 ocupa��es irregulares de movimentos de habita��o monitoradas pela prefeitura de S�o Paulo — entre fevereiro de 2020 e setembro deste ano, o n�mero dessas �reas cresceu 136% na cidade.
A gest�o do prefeito Ricardo Nunes (MDB) diz ter realizado dezenas de opera��es para combater ocupa��es ilegais, al�m de combater o crime organizado em loteamentos de mananciais junto ao Minist�rio P�blico e � Pol�cia Civil.
Anchieta tamb�m pode passar por uma reintegra��o de posse em breve, embora uma decis�o definitiva sobre o caso esteja parada na Justi�a.
Remo��es coletivas de ocupa��es irregulares foram novamente autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no in�cio deste m�s — elas haviam sido proibidas durante a pandemia.
Segundo a campanha Despejo Zero, que re�ne organiza��es e movimentos sociais que atuam contra remo��es for�adas, 201 mil fam�lias est�o amea�adas de despejos coletivos no pa�s — 81 mil delas em S�o Paulo.
A decis�o do STF ocorre no momento em que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) reduziu em 95% as verbas do Casa Verde e Amarela para o pr�ximo ano. Ser�o apenas R$ 34,1 milh�es para o programa de habita��o em 2023.
Nos �ltimos anos, um dos efeitos do agravamento da crise econ�mica foi a forma��o de "hiperperiferias" em bairros nos extremos de S�o Paulo, conforme mostrou reportagem da BBC News Brasil em outubro.
Em suma, as hiperperiferias s�o ocupa��es recentes, mais distantes e com estrutura mais prec�ria do que os bairros perif�ricos consolidados.
"Elas retomam esse padr�o de casas de madeira, rua de terra e sem infraestrutura b�sica. � como se fosse a periferiza��o da periferia", diz o urbanista Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de S�o Paulo.
Em um galp�o da ocupa��o Anchieta, constru�do por meio de doa��es e que � usado para reuni�es e aulas de refor�o para as crian�as, a comerciante Let�cia Souza comenta sua experi�ncia como m�e e l�der comunit�ria do novo e pequeno bairro no interior do Graja�:
"Mesmo sendo muito dif�cil, eu me sinto muito forte."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63684766