
Na cultura popular, as madrastas s�o m�s e negligentes — algumas, at� assassinas. Por que esse mito persiste se suas evid�ncias na vida real s�o quase inexistentes?
O mundo da fic��o est� repleto de madrastas muito antip�ticas — algumas delas, s�o at� mesmo monstros assassinos.
A madrasta invejosa da Branca de Neve e a bruxa de Jo�o e Maria, que faz os enteados se perderem na floresta, pertencem a uma classe de mulheres malvadas com "apetite voraz pela alimenta��o humana, �s vezes at� pela carne e sangue ou pelo f�gado e pelo cora��o dos seus pr�prios parentes", segundo Maria Tatar, professora de literatura, folclore e mitologia da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, no seu livro The Hard Facts of the Grimms' Fairy Tales ("A Cruel Realidade dos Contos dos Irm�os Grimm", em tradu��o livre).
Essas vil�s s�o mostradas como frias e antag�nicas, para dizer o m�nimo. Na adapta��o de Cinderela feita pela Disney em 1950, por exemplo, a cruel madrasta obriga sua enteada a fazer trabalhos pesados e incentiva as filhas biol�gicas a rejeitar a meia-irm�.
J� o filme O Grande Amor de Nossas Vidas, de 1961, tamb�m produzido pela Disney, apresenta duas irm�s g�meas que foram separadas sem saber quando os pais delas se divorciaram. Elas unem suas for�as para derrotar a horr�vel noiva do seu pai e reunir a fam�lia.
E, no filme de terror e com�dia A Madrasta, de 1989, a personagem interpretada por Bette Davis n�o � apenas uma madrasta — ela �, literal e figurativamente, uma bruxa.
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Por tudo isso, n�o � coincid�ncia que as madrastas sejam atualmente observadas com menos simpatia do que qualquer outro membro da fam�lia.
Existem mais de 900 hist�rias escritas em todo o mundo sobre madrastas maldosas ao longo dos s�culos (sem falar na corrente intermin�vel de adapta��es cinematogr�ficas) que fazem com que elas, muitas vezes, sejam consideradas menos afetuosas, gentis, alegres e agrad�veis — e mais cru�is, injustas e at� odiosas.
O preconceito pode ser observado at� no idioma, pelos nativos de fala inglesa. "Madrasta", em ingl�s, � "stepmother" — "step" evoluiu do ingl�s arcaico "steop", que tinha sentido de perda e priva��o. Mesmo coloquialmente, descrever algo metaforicamente em ingl�s como "stepchild" ("enteado") indica inferioridade.
Fam�lias com padrastos e madrastas de todos os tipos certamente enfrentam dificuldades e conflitos que podem at� refor�ar alguns elementos desses estere�tipos. Mas n�o existem evid�ncias reais que sustentem a caricatura perversa da madrasta.
Na verdade, existem pesquisas que demonstram que as madrastas podem ser muito ben�ficas para as fam�lias, servindo como o la�o que une os familiares entre si depois de uma separa��o e fornecendo maior apoio para as crian�as que sofrem com a perda.
Por que, ent�o, esses ju�zos severos persistem? E, com as madrastas se tornando cada vez mais comuns em todo o mundo, ser� que um dia essas imagens ir�o desaparecer?
O surgimento da madrasta malvada
O estere�tipo da madrasta perversa existe h� mil�nios nos contos de fadas e no folclore em todo o mundo. Algumas hist�rias datam dos tempos dos romanos.

Outras refer�ncias podem ser encontradas na B�blia. Sara, a matriarca que deu � luz Isaac, filho de Abra�o, conseguiu com que o pai expulsasse o outro filho, Ismael, para evitar a divis�o da heran�a.
Tatar explica que a maioria dos personagens populares que inspiram os filmes e a literatura moderna remonta a 1812, quando os irm�os alem�es Jacob e Wilhelm Grimm publicaram, pela primeira vez, uma cole��o de contos. Os autores usaram fragmentos de hist�rias orais existentes e se apropriaram de outras para formar novas narrativas. Essa combina��o gerou contos de fadas como Jo�o e Maria, Cinderela e Branca de Neve.
Embora sejam obras de fic��o, o foco nas madrastas, de fato, reflete algumas verdades sobre a sociedade do s�culo 19.
"Quando esses contos de fadas foram criados, a expectativa de vida era extraordinariamente baixa", afirma Lawrence Ganong, professor em�rito de desenvolvimento humano da Universidade de Missouri, nos Estados Unidos. Ganong estudou fam�lias com madrastas por d�cadas.
Naquela �poca, as mulheres morriam frequentemente no parto, deixando as crian�as aos cuidados apenas dos pais. As madrastas malvadas que apareciam nas p�ginas dos contos de fadas ofereciam um alerta para que a fam�lia tivesse cautela. Os pais deveriam proteger e sustentar os seus filhos e as madrastas deveriam cuidar bem dos seus enteados — ou algo de ruim iria acontecer.
As hist�rias tamb�m ofereciam aos leitores solu��es terap�uticas seguras para processar sentimentos ocultos, como a raiva e o ressentimento materno, segundo Tatar.
No s�culo 19, os pais frequentemente se casavam novamente com mulheres mais jovens, que poderiam ter idade pr�xima das suas enteadas. Nessas circunst�ncias, poderia surgir todo tipo de sentimentos "intensos e estranhos", como a rivalidade pela aten��o do pai, "concursos de beleza" entre gera��es, como vemos em Branca de Neve, e "um n�vel consider�vel de disputas, raiva e conflitos", afirma Tatar.
Nos s�culos que antecederam a publica��o dos contos de Grimm, a madrasta perversa transportou-se das hist�rias para a vida real. E, mesmo quando o div�rcio, o novo casamento e a cria��o de fam�lias com madrastas e padrastos ficaram mais comuns no final do s�culo 20, diversos psic�logos ajudaram a diluir a fronteira entre a fic��o e a realidade.

Algumas pessoas acreditavam que os seres humanos s�o biologicamente programados para proteger seus filhos gen�ticos em rela��o aos enteados, segundo a psic�loga brit�nica Lisa Doodson, especializada na din�mica das fam�lias com madrastas e padrastos. Isso colocaria os enteados em maior risco de sofrer maus tratos.
Nos anos 1970, os pesquisadores deram um nome aos casos de abuso por parte de madrastas e padrastos: o Efeito Cinderela.
Desde ent�o, estudos conclu�ram que padrastos e madrastas realmente prejudicam as crian�as com mais frequ�ncia do que os pais gen�ticos, mas � importante observar que virtualmente todos os casos de viol�ncia envolvem os padrastos — n�o as madrastas.
Outros estudos tamb�m ajudaram a perpetuar o mito, talvez de forma n�o intencional. Pesquisas dos anos 1980 conclu�ram que as madrastas admitem que se sentem mais pr�ximas dos seus filhos biol�gicos que dos enteados, mesmo quando ambos t�m o mesmo pai biol�gico.
E as madrastas que t�m filhos pr�prios tamb�m afirmam que se sentem menos satisfeitas com seu papel como madrasta. Mas nada disso significa que as madrastas sejam cru�is.
Tamb�m n�o foi preciso ter evid�ncias emp�ricas para que os estere�tipos das madrastas horr�veis e negligentes fossem mantidos. Eles continuaram se proliferando pelas mesmas raz�es de s�culos atr�s, segundo Ganong. As ideias culturalmente dominantes rodeiam a fam�lia nuclear fundamental e o relacionamento sagrado entre os pais e filhos biol�gicos.
Ao longo dos anos 1990 e no in�cio dos anos 2000, filmes baseados nos cl�ssicos da Disney — como Branca de Neve: Um Conto de Fadas de Terror, de 1997, e Para Sempre Cinderela, de 1998 — continuaram depreciando as madrastas. A ideia parecia estar firmemente incrustada na psique do p�blico: as madrastas eram cuidadoras negligentes de segunda classe, na melhor das hip�teses (e assassinas abomin�veis, no pior dos casos).
'Madrastas perversas n�o aparecem nos dados'
Mas, apesar da persist�ncia dessas met�foras, existem poucas evid�ncias de que as madrastas se comportem como as imagens caricaturadas sem cora��o da cultura popular — e muitas evid�ncias demonstram que n�o � este o caso.
"A maioria das madrastas se d� bem com seus enteados", afirma Ganong. Ele leu cerca de 3 mil relat�rios de pesquisa sobre esse tema e conversou com incont�veis fam�lias com madrastas.
"As madrastas perversas n�o aparecem nos dados", concorda o professor e pesquisador Todd Jensen, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Ele estuda padr�es de relacionamento entre padrastos, madrastas e enteados.
Em uma pesquisa com 295 enteados realizada em 2021, Jensen concluiu que a maioria deles tinha relacionamentos positivos com as madrastas. Perguntou-se aos participantes o grau de proximidade deles com suas madrastas, o quanto achavam que as madrastas cuidavam deles, se elas eram amorosas e afetuosas e o grau de satisfa��o com a comunica��o e o relacionamento de forma geral.
Nesta amostra, a avalia��o m�dia da qualidade de relacionamento entre a madrasta e o enteado foi de 3,91 (de um m�ximo de 5).
Esse tipo de relacionamento positivo com a madrasta pode ser muito ben�fico para a crian�a. Em compara��o com os relacionamentos mais negativos, Jensen concluiu que ele gera crian�as com n�veis mais baixos de desconforto psicol�gico, ansiedade, depress�o e solid�o causados pela forma��o da nova fam�lia, al�m de melhores resultados sociais e acad�micos.
As madrastas realmente podem "trazer uma contribui��o �nica para o bem-estar de uma crian�a", segundo ele.
Isso � especialmente v�lido ap�s um div�rcio, segundo a psic�loga canadense Cara Zaharychuk, que estudou o papel das madrastas nas separa��es.
Ao passar tempo de qualidade com as crian�as depois do div�rcio, Zaharychuk concluiu que as madrastas podem ajud�-las a sentir-se novamente parte de uma fam�lia. Elas "podem tamb�m ser um apoio incr�vel para as crian�as mais novas que sofreram uma perda", afirma Doodson.
Pesquisas tamb�m relataram que crescer com diversos relacionamentos com adultos traz diversos resultados positivos.
Um estudo com quase mil alunos do nono ano nos Estados Unidos demonstrou que ter bons modelos al�m dos pais biol�gicos aumentou a resili�ncia emocional, melhorou o desempenho acad�mico e neutralizou os impactos da din�mica familiar negativa. As madrastas podem oferecer o mesmo sentido de apoio adicional para as crian�as.
"Ter mais pessoas que amam e cuidam de voc� � sempre positivo", afirma Doodson.
Isso n�o significa que as fam�lias com madrastas e padrastos n�o enfrentem dificuldades — e algumas delas podem definir o cen�rio para a cria��o dessas caricaturas negativas.

"Embora sejam imensamente exagerados, esses estere�tipos representam algumas das tens�es comuns enfrentadas pelas fam�lias com madrastas e padrastos", afirma Jensen. A principal delas � onde concentramos nosso tempo e energia.
O que muitos dos antigos contos de fadas destacaram foi uma esp�cie de batalha por recursos e aten��o entre a madrasta e seus enteados. S�o "desafios muito reais", que podem resultar em sentimentos de ci�mes, segundo Jensen.
No tempo dos irm�os Grimm, a maior parte das fam�lias com madrastas era formada ap�s a morte da m�e biol�gica. Jensen destaca que, atualmente, o mais prov�vel � que um novo padrasto ou madrasta ingresse na fam�lia ap�s o div�rcio. E, com a m�e ainda presente, a crian�a pode encontrar-se em um "compromisso de lealdade".
A crian�a n�o quer que sua m�e biol�gica "seja substitu�da". Por isso, ela pode resistir a formar conex�o com sua madrasta, por instru��o real ou percebida da m�e, segundo Jensen. E esta din�mica pode ser exacerbada no caso de existir conflito entre os pais biol�gicos.
E n�o s�o apenas as crian�as que podem ter problemas para ajustar-se � nova din�mica familiar. A vida tamb�m pode ser dura para as madrastas, que vivem em medo constante de serem rotuladas de perversas.
Uma pesquisa de 2018, com 134 madrastas moradoras na Nova Zel�ndia, concluiu que 22% delas alteraram ativamente o comportamento para n�o causar impress�es negativas. Isso pode trazer in�meras consequ�ncias.
"As madrastas fazem de tudo para ser supermadrastas", afirma Doodson. Mas isso � insustent�vel e pode ser contraproducente para as crian�as, que se ressentem por receberem cuidados excessivos de uma nova figura adulta.
Em �ltima an�lise, as pesquisas indicam que as madrastas n�o s�o vil�s, como os livros e filmes podem nos fazer acreditar. Seu papel percebido na fam�lia depende de muitos fatores — como a cultura �ntima na qual est�o adentrando, os comportamentos da m�e biol�gica existente e o que os enteados podem querer ou precisar em termos de cuidados e supervis�o — e os dados existentes indicam que seu impacto sobre as fam�lias, na maioria dos casos, � positivo.
"A vida na fam�lia com madrastas e padrastos � dif�cil, mas muitos indiv�duos desempenham bem os seus pap�is junto aos enteados", afirma Ganong. "� muito ruim que as madrastas tamb�m precisem lidar com esses mitos insistentes sobre elas."
Sinais de redu��o do preconceito?
Atualmente, parece que as madrastas ainda enfrentam percep��es um tanto duvidosas, enraizadas em estere�tipos antigos.
Lawrence Ganong realiza frequentemente um exerc�cio de associa��o de palavras com seus alunos. O termo "madrasta" atrai adjetivos como "malvada, perversa, m� ou desinteressada".
Muitas madrastas com quem Ganong conversou em suas d�cadas de pesquisa tamb�m relutam em adotar a denomina��o devido �s hist�rias que ouviram quando crian�as. "Para mim, esta � uma indica��o de que o estere�tipo ainda existe e � potencialmente prejudicial", afirma ele.
Mas o fato � que as fam�lias com madrastas e padrastos est�o se tornando mais comuns e isso pode estar mudando a percep��o das pessoas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, as altas taxas de div�rcio significam que cerca de 40% das pessoas tinham pelo menos um padrasto ou madrasta em 2011. Naquele mesmo ano, 10% das crian�as dependentes no Reino Unido viviam com um padrasto ou madrasta — mas Lisa Doodson suspeita que este n�mero seja subestimado. E dados do censo canadense de 2016 indicam um quadro similar, embora as estimativas n�o incluam crian�as com mais de 14 anos de idade.
Enquanto as fam�lias com padrastos e madrastas proliferam-se cada vez mais, existem sinais de que os estere�tipos negativos sobre as madrastas est�o sendo reduzidos.
"Acho que n�o h� d�vida de que o estigma real e tang�vel sobre as fam�lias com padrastos e madrastas vem diminuindo, em grande parte porque elas s�o muito comuns", afirma Todd Jensen. "Se voc� disser a algu�m que tem um padrasto ou que voc� mesmo � um padrasto ou madrasta, as pessoas muito provavelmente n�o ficar�o chocadas, nem manifestar�o oposi��o."
A ind�stria moderna do entretenimento tamb�m conta agora hist�rias mais variadas de madrastas, desde o filme Lado a Lado, de 1998, at� a s�rie de TV Fam�lia Moderna e o relacionamento feliz e tranquilo da personagem Gl�ria com suas duas enteadas quase da mesma idade; e o apoio carinhoso que a personagem Juno, gr�vida, recebe da sua madrasta no filme que leva seu nome, de 2007.
At� a Disney pode come�ar a acelerar este processo algum dia. Ela vem mostrando cada vez mais relacionamentos positivos entre mulheres, como os la�os entre as irm�s em Frozen - Uma Aventura Congelante, de 2013, e a av� amorosa de Moana - Um Mar de Aventuras, de 2016. E, em 2020, uma peti��o no site Change.org pressionou a Disney a, finalmente, apresentar uma madrasta bondosa.
Seguindo este progresso, Maria Tatar espera que possamos continuar a reescrever o roteiro das madrastas, de forma que reflita as realidades da sociedade atual. Ela defende a preserva��o dos registros hist�ricos, mas n�o acha que devemos refor�ar met�foras que podem ser prejudiciais.
"As hist�rias evolu�ram", afirma ela. "Devemos reconhecer isso, pois o folclore � nosso para recriarmos."
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) na se��o Family Tree do site BBC Worklife.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63763967