Mos apalpando superfcie com pontos em tecido vermelho

Cega de nascen�a, Gupta passou nove meses recebendo treinamento em exames t�cteis da mama, uma forma especializada de exame cl�nico

Priti Salian
Em uma sala vazia de uma remota unidade de sa�de mantida pelo governo na cidade de Vapi, no Estado de Gujarat (sudoeste da �ndia), Meenakshi Gupta segura o diagrama do seio de uma mulher com cinco fitas de orienta��o com escrita em Braille coladas sobre ele.

  Falando para a mulher sentada sobre a cama, ela diz: “Vou colar no seu seio estas fitas inofensivas para a pele e usar a ponta dos meus dedos para verificar se h� alguma anormalidade”.

Gupta pede � mulher que retire a parte de cima das roupas, aplica um desinfetante nas m�os e come�a o exame de rotina.

Ela divide o peito em quatro regi�es com as fitas e passa 30 a 40 minutos apalpando cada cent�metro da mama, com press�o vari�vel, antes de documentar as descobertas no computador. E, em conjunto com o hist�rico m�dico da paciente, Gupta ir� enviar suas conclus�es para um m�dico diagnosticar eventuais anormalidades e recomendar outras avalia��es.

Gupta � uma examinadora m�dica t�ctil (MTE, na sigla em ingl�s) de Nova D�li, a capital indiana. Trata-se de uma nova profiss�o em crescimento para mulheres cegas e com dificuldades de vis�o na �ndia e na Europa.

 

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Ela � formada em ci�ncias humanas. Cega de nascen�a, Gupta passou nove meses recebendo treinamento em exames t�cteis da mama, uma forma especializada de exame cl�nico. A cegueira de Gupta n�o prejudica seu trabalho — ao contr�rio, ela ajuda, e muito.

As origens

Estudos j� comprovaram que, na aus�ncia de informa��es visuais, o c�rebro das pessoas cegas pode desenvolver maior sensibilidade de audi��o, tato e outros sentidos e fun��es cognitivas.

O ginecologista alem�o Frank Hoffmann foi quem desenvolveu a ideia das MTEs. Ele descobriu que, durante seus extensos exames, as MTEs podem detectar caro�os com at� 6 a 8 mm.

E, segundo sua pesquisa ainda n�o publicada, estas dimens�es s�o menores que os caro�os de 10 a 20 mm que muitos m�dicos sem dificuldades visuais conseguem encontrar durante seus exames.

Na �ndia, 18 MTEs foram treinadas desde 2017. Algumas delas trabalham atualmente em hospitais de Nova D�li e de Bangalore, no sul do pa�s.

Outras s�o contratadas pela Associa��o Nacional do Centro da �ndia para Mulheres Cegas e Estudos sobre Defici�ncias (NABCBW, na sigla em ingl�s), uma organiza��o sem fins lucrativos de Nova D�li que tamb�m oferece treinamento.

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Mas a pr�tica de treinar MTEs � anterior � pr�tica indiana. Ela remonta �s preocupa��es de Hoffmann sobre sua pr�pria capacidade de detectar tumores.

“Sempre me preocupei porque, como ginecologista, eu n�o tinha tempo suficiente para os exames de mama e poderia deixar passar caro�os min�sculos”, ele conta.


Meenakshi Gupta mostra o diagrama da mama com as fitas de orientao

Meenakshi Gupta mostra o diagrama da mama com as fitas de orienta��o na sua sala de exames, na unidade de sa�de comunit�ria da cidade de Vapi, no sudoeste da �ndia

Priti Salian

Muitos m�dicos t�m pouco tempo para conduzir exames de 30 a 40 minutos, mas ele imaginou que um profissional t�cnico treinado, com sentido t�ctil aprimorado, poderia ser ideal para o trabalho.

Em 2010, a ideia de Hoffmann levou � cria��o da Discovering Hands, uma empresa social com sede em M�lheim, na Alemanha. Ela treina mulheres cegas e com dificuldades de vis�o para trabalhar como MTEs.

O primeiro estudo revisado por pares pesquisando a viabilidade da t�cnica demonstrou que as descobertas das MTEs s�o similares �s dos m�dicos.

A chegada � �ndia

Hoffmann acreditava que havia potencial para que o m�todo tivesse impacto maior fora da Alemanha, como t�cnica eficaz e relativamente barata. As taxas de incid�ncia de c�ncer de mama s�o preocupantes em todo o mundo — foi o tipo de c�ncer mais diagnosticado em 2020, por exemplo.

Fora da Alemanha, o pa�s com maior n�mero de MTEs � a �ndia, onde o c�ncer de mama � a principal causa de morte por c�ncer entre as mulheres na maioria dos Estados. A maior parte dos casos — 60% — � diagnosticada no est�gio 3 ou 4 da doen�a, o que reduz consideravelmente os �ndices de sobreviv�ncia.

Um estudo demonstrou que a taxa de sobreviv�ncia geral ap�s cinco anos entre as mulheres indianas � de 95% para pacientes no est�gio 1, 92% para o est�gio 2, 70% para o est�gio 3 e apenas 21% para pacientes no est�gio IV.

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J� nos pa�ses de alta renda, mais de 70% dos casos de c�ncer de mama s�o diagnosticados nos est�gios 1 e 2. Ao todo, o �ndice de sobreviv�ncia ap�s cinco anos para o c�ncer de mama na �ndia � de cerca de 52%, contra cerca de 84% nos Estados Unidos.

A falta de acesso � assist�ncia m�dica, instala��es mal equipadas e o medo dos gastos atrasam a procura pelo tratamento, o que reduz ainda mais as possibilidades de recupera��o.

Em 2017, a Discovering Hands expandiu suas atividades para a �ndia, atrav�s da NABCBW. Funcion�rias da associa��o indiana receberam treinamento para formar MTEs. Espera-se que esta nova forma de detec��o do c�ncer possa apresentar diversas vantagens em rela��o �s t�cnicas existentes.

O exame padr�o para detectar c�ncer de mama � a mamografia, que envolve o raio X da mama. No Ocidente, � um exame comum, mas o seu custo e a complexidade de uso dificultam sua implementa��o em pa�ses com renda m�dia e baixa.

E, como a mamografia � menos eficaz para as mulheres com at� 50 anos de idade, � preciso ter alternativas para as mulheres mais jovens.

Uma op��o � o ultrassom. Mas, devido aos altos custos da contrata��o de radiologistas e das pr�prias m�quinas de ultrassom, “n�o � uma op��o acess�vel para todos os centros m�dicos”, segundo o cirurgi�o oncologista Mandeep Malhotra, que trabalha em Nova D�li e em Gurugram, na regi�o metropolitana da capital.

Um estudo indiano recente, que levou 20 anos para ser feito, concluiu que o exame cl�nico da mama, realizado a cada dois anos por profissionais de sa�de, pode ajudar a detectar c�ncer de mama nos seus est�gios iniciais.

O estudo concluiu que este procedimento poderia reduzir a mortalidade pela doen�a em cerca de 30% entre as mulheres com mais de 50 anos de idade, mas n�o se observou redu��o significativa da mortalidade em mulheres com menos de 50 anos.

O exame de mama tem custos mais baixos, o que facilita sua ado��o em pa�ses com renda m�dia e baixa.

Existem programas de exame cl�nico da mama na �ndia, mas os �ndices de participa��o s�o “extremamente inadequados”, segundo uma recente Pesquisa Nacional de Sa�de da Fam�lia do pa�s, que fornece dados sobre a din�mica da popula��o e os indicadores de sa�de em n�vel nacional.

Segundo a pesquisa, menos de 1% das mulheres realizou exame de detec��o de c�ncer de mama entre 2019 e 2021 em toda a �ndia.


Mulheres fazendo treinamento ttil

A t�cnica desenvolvida pela organiza��o alem� Discovering Hands � relativamente barata e n�o exige equipamento t�cnico de alto custo

Priti Salian

� por esta raz�o que o treinamento de uma for�a param�dica de mulheres cegas para realizar exames especializados pode ser de grande ajuda, segundo Kanchan Kaur, diretora de cirurgia de mama do hospital especializado Medanta, em Gurugram.

“Significaria encontrar caro�os menores em est�gios iniciais e com maior possibilidade de cura da doen�a, atendendo uma popula��o que reluta em consultar o m�dico porque se sente saud�vel”, explica ela.

Os exames pelas MTEs n�o pretendem substituir os m�dicos, nem as mamografias. Eles s�o realizados em conjunto com equipes m�dicas treinadas, como primeiro passo para os exames de c�ncer de mama precisos de rotina. E s�o dispon�veis at� mesmo em regi�es com acesso limitado � energia el�trica.

Precis�o e confian�a

Kaur explica que, posicionando as MTEs em campanhas de exame de c�ncer de mama e nos postos de sa�de prim�rios do governo (que s�o o primeiro ponto de contato m�dico para grande parte da popula��o), as mulheres podem se familiarizar com o exame de mama e adquirir o h�bito do autoexame.

O procedimento aumentaria a consci�ncia geral sobre o c�ncer de mama, elevando a possibilidade de detec��o precoce. “Quando exames gratuitos s�o oferecidos em locais pr�ximos, as mulheres ir�o fazer”, afirma Kaur.

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Atualmente, as MTEs indianas trabalham com cirurgi�es oncologistas, examinando as mulheres que chegam para exames de rotina. Algumas das MTEs viajam com os acampamentos de exame de c�ncer de mama realizados pela NABCBW em �reas rurais, urbanas e semiurbanas de Mumbai, Nova D�li, Vapi e Bangalore.

Ao todo, 14 MTEs j� examinaram mais de 2.500 mulheres em acampamentos e cerca de 3.000 outras em hospitais. Elas tamb�m participam de campanhas de conscientiza��o sobre o c�ncer de mama em empresas, escolas e universidades, onde tamb�m oferecem exames.

Uma nova onda de pesquisas sobre o trabalho das MTEs na �ndia traz resultados promissores.

Malhotra realizou um estudo com 1.338 mulheres examinadas pelas MTEs antes da pandemia e comparou as descobertas das MTEs com os resultados radiol�gicos das mesmas pacientes.


Examinadoras durante treinamento em esqueleto

As examinadoras m�dicas t�cteis passam por um processo de treinamento rigoroso e detalhado

Priti Salian

Ele concluiu que as MTEs t�m alta sensibilidade para detectar c�ncer maligno, com 78% de “positivos verdadeiros”. J� o �ndice de c�nceres malignos n�o detectados pelas MTEs (“falsos negativos”) � muito baixo, de 1%.

Malhotra afirma que o baixo �ndice de n�o detec��o � fundamental no exame do c�ncer. “Quando uma MTE n�o encontra anormalidades, podemos ter certeza de que a mulher tem os seios saud�veis no momento e n�o precisa de exames adicionais”, afirma ele.

Um estudo austr�aco comparou as MTEs com os m�dicos e concluiu que as MTEs oferecem maior especificidade e sensibilidade. Elas foram especialmente eficientes em compara��o com os m�dicos durante o exame de tecido de mama mais denso, que tipicamente dificulta a detec��o de caro�os.

E a precis�o n�o � a �nica colabora��o prestada pelas MTEs durante o exame. Elas coletam dados importantes sobre os h�bitos de estilo de vida, como o consumo de �lcool e cigarro, lacta��o, menstrua��o e o hist�rico familiar de c�ncer antes de examinar as mulheres. S�o informa��es vitais para o m�dico sobre o potencial de risco da doen�a.

Como parte do seu trabalho, as MTEs chamam a aten��o da mulher para tudo o que elas encontram, como secre��es do mamilo e assimetria entre os seios. No final do exame, as MTEs ensinam � paciente a forma correta de fazer o autoexame da mama.

E talvez o mais importante � que as MTEs ajudam a reduzir o desconforto normalmente enfrentado pelas mulheres ao se despirem para o exame de mama, frente a um profissional sem dificuldades de vis�o. Este fator pode aumentar a participa��o das mulheres nos exames.

A dona de casa Sulekha Paswan passou por um exame de mama com Gupta em Vapi e afirma que o procedimento com Gupta pareceu mais confort�vel. E, com o tempo e esfor�os dedicados por Gupta durante o exame, Paswan acredita que o procedimento foi bastante rigoroso.

Expans�o internacional

Hoffmann j� levou o treinamento oferecido pela Discovering Hands para a �ndia, �ustria, Col�mbia, M�xico, Nepal e Su��a. Durante a pandemia de covid-19, as MTEs n�o puderam trabalhar e muitas delas migraram para outros empregos. Na Am�rica do Sul e no Nepal, o programa est� suspenso no momento.

Na Alemanha, o programa est� em opera��o desde 2010. Hoje, s�o quatro MTEs em treinamento e 53 profissionais trabalhando em 130 hospitais e cl�nicas, al�m de um centro especializado da Discovering Hands em Berlim.

A �ustria treinou MTEs em 2015, mas, nos primeiros anos, elas se envolveram apenas em um estudo. Desde 2021, tr�s MTEs trabalham em seis cl�nicas ginecol�gicas e radiol�gicas em Viena, al�m de outras tr�s em treinamento. E a Su��a tamb�m est� treinando tr�s MTEs.

Na �ndia, ao todo, 18 MTEs foram treinadas, mas as press�es da pandemia fizeram com que apenas seis delas estejam trabalhando atualmente. Outras oito MTEs est�o em treinamento em Nova D�li e Bangalore e devem se formar ainda este ano.

Resist�ncia e dificuldades

A diretora da NABCBW, Shalini Khanna, explica que o n�mero de MTEs em treinamento � pequeno devido ao alto custo do processo. Al�m disso, a maior parte das mulheres cegas do programa vem de locais de baixa renda e a necessidade de dar sustento a elas e �s suas fam�lias pode ser um obst�culo.

A dura��o e o rigor do treinamento, �s vezes, faz com que elas prefiram fazer outros cursos, de menor dura��o, ou desistam no meio do treinamento.

Khanna afirma que alguns centros m�dicos apresentaram resist�ncia � contrata��o das MTEs porque as pesquisas indianas sobre o impacto das MTEs ainda est�o em seus est�gios iniciais. Outros hesitaram por raz�es log�sticas e financeiras.

Mas muitos centros n�o consideram que estes motivos sejam obst�culos e est�o procurando os servi�os das MTEs.

Rajendra Badwe � o diretor do Hospital Memorial Tata em Mumbai, um dos maiores hospitais de c�ncer da �ndia. Ele afirma que, para ser adotado em escala, o modelo das MTEs precisa ser mais divulgado entre a comunidade m�dica e receber reconhecimento e apoio do governo.

O Hospital Memorial Tata est� trabalhando em duas frentes em prol da ado��o do modelo das MTEs na �ndia em larga escala.

“Estamos planejando formar conex�es com as organiza��es e indiv�duos que mant�m contato com as mulheres cegas para trein�-las e falar com o governo para integrar as MTEs ao programa p�blico de exames de c�ncer de mama”, afirma Badwe.

Gupta acredita que a expans�o do modelo das MTEs poder� ajudar um n�mero maior de meninas cegas a encontrar um emprego digno, al�m de desfazer os mitos sobre a sua condi��o.

“Talvez, algum dia, as pessoas parem de nos perguntar como nos locomovemos, como usamos nosso laptop, e compreendam que nem sempre vamos ao hospital para nos tratar”, afirma ela. “N�s vamos para trabalhar.”

 

Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site da BBC Future.