Engov: rem�dio usado como 'cura para ressaca' n�o tem essa indica��o

Durante d�cadas, a frase "um Engov antes, outro depois" foi um mantra entre as pessoas que iriam consumir �lcool e desejavam aliviar os sintomas da ressaca — aquela sensa��o desagrad�vel de n�usea, enxaqueca e indisposi��o que aparece no dia seguinte. A medica��o, inclusive, � um dos mais frequentes integrantes do chamado "kit ressaca" disponibilizado em bares e baladas, ao lado de solu��es contra azia ou queima��o e de protetores hep�ticos.

No entanto, em bula, este produto est� indicado apenas para tratar dor de cabe�a e alergias — e, como voc� ver� ao longo desta reportagem, n�o existe nenhum tratamento farmacol�gico com efic�cia comprovada para lidar com os efeitos de uma bebedeira intensa.

E, ao contr�rio do que o imagin�rio popular acredita, tomar Engov junto com o �lcool pode at� ser prejudicial � sa�de (saiba mais a seguir). Para entender essa hist�ria, � preciso antes conhecer o caminho que os drinques fazem pelo sistema digestivo.

Trabalho extra ao f�gado

O hepatologista Raymundo Paran�, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, explica que o �lcool come�a a ser metabolizado no est�mago e no intestino delgado.

“J� no f�gado, ele passa por uma segunda etapa de metaboliza��o. Ali, forma-se o acetalde�do, uma subst�ncia t�xica que est� relacionada aos sintomas da ressaca”, diz.

“Essa mol�cula dilata os vasos sangu�neos, o que provoca vermelhid�o na pele, dor de cabe�a e outros sintomas comuns”, exemplifica ele. Al�m dos inc�modos citados pelo m�dico, algumas v�timas da ressaca tamb�m sofrem com n�useas, v�mitos, indisposi��o e sensibilidade � luz.

As bebidas ainda promovem duas outras a��es no corpo que repercutem na manh� posterior. Primeiro, elas estimulam a diurese (a vontade de ir ao banheiro para fazer xixi). � por isso que a pessoa acorda desidratada e com muita sede.

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Segundo, h� uma perda das reservas de glicog�nio no f�gado, uma esp�cie de estoque de energia que temos neste �rg�o. “E isso faz com que o indiv�duo tamb�m acorde com fome e vontade de comer doces”, complementa Paran�.

� justamente para evitar todas essas sensa��es desagrad�veis que muita gente recorre �s supostas estrat�gias preventivas — e, entre elas, o Engov est� entre as op��es farmacol�gicas mais populares.

Hist�rico inusitado

No livro Vaudeville - Mem�rias, o jornalista e empres�rio Ricardo Amaral traz um relato curioso de como o Engov teria sido inventado. Ele conta que fazia um passeio para Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, num veleiro que pertencia a Dirceu Fontoura, o dono do laborat�rio farmac�utico que fabricava o famoso biot�nico que leva o mesmo sobrenome. Isso teria ocorrido em meados dos anos 1960.

“Por l� passavam todos os internacionais que pintavam no Rio”, destaca o escritor.

“Foi l� que assisti a um momento hist�rico para os porristas deste Brasil. Dr. Albert Sabin, o famoso inventor da vacina contra a paralisia infantil [...], vendo todo o grupo beber quantidades respeit�veis de �lcool, escreveu uma f�rmula e presenteou o anfitri�o.”

“Nascia ali o Engov, criado pelo fant�stico cientista. Coisas deste pa�s”, conclui Amaral.

A descri��o sobre as origens do produto, no entanto, n�o aparece em outras fontes hist�ricas — e a Hypera Pharma, atual fabricante do Engov, n�o respondeu �s perguntas da BBC News Brasil at� a publica��o desta reportagem.

Mas h� um fato que certamente contribuiu para a fama deste f�rmaco at� hoje: a telenovela Beto Rockfeller, transmitida pela TV Tupi entre 1968 e 1969.

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O ator Luiz Gustavo, o protagonista da trama, afirmou em diversas entrevistas que n�o recebia “um tost�o” do canal de televis�o, que passava por uma crise financeira. Por isso, criou, meio sem querer, o que � chamado hoje de merchandising. “Inventei a coisa junto com o laborat�rio Fontoura”, relatou Gustavo, numa reportagem da Folha de S.Paulo publicada em 1994. "Prometeram me pagar um 'xis', n�o lembro quanto, toda vez que o Beto [Rockfeller] citasse o rem�dio Engov no ar."

Ele passou ent�o a citar o nome do medicamento at� seis vezes em cada cap�tulo da novela. "Ningu�m entendia nada. O resto do elenco e os diretores da Tupi viviam me perguntando porque citava tanto o Engov. Eu, claro, ficava na moita, nunca abria o jogo”, lembrou o ator, que faleceu em 2021.

A dire��o da TV Tupi chamou Gustavo para uma conversa e o alertou que um dos patrocinadores de Beto Rockefeller — um outro laborat�rio farmac�utico — estava incomodado. Afinal, eles tamb�m possu�am um rem�dio que prometia curar a ressaca, chamado Alka Seltzer.

Para agradar o anunciante, a dire��o do canal de televis�o acrescentou uma fala no roteiro da novela, que foi dita pelo personagem Carlucho, interpretado por Rodrigo Santiago:

— Nossa, que ressaca! Bebi demais na festa de ontem � noite. Mas agora vou melhorar. Acabei de tomar um Alka Seltzer.

Como relata a Folha, Luiz Gustavo n�o perdeu a deixa. Ele disse em cena: "Voc� � burro, Carlucho. Devia seguir o meu exemplo. Tomei um Engov antes da festa, outro depois, e hoje estou zerinho."

Os cap�tulos da novela eram gravados poucas horas da exibi��o, ent�o a TV Tupi n�o teve tempo de editar o di�logo antes que ele fosse ao ar, detalha a mat�ria.

Um comprimido, quatro subst�ncias

De acordo com o r�tulo e a bula, o Engov � composto de quatro subst�ncias, e cada uma delas tem uma fun��o diferente. O maleato de mepiramina (15 miligramas) � um anti-histam�nico e atua contra alergias. O hidr�xido de alum�nio (150 mg) diminui a acidez do est�mago e alivia a azia e as n�useas. O �cido acetilsalic�lico (150 mg) — o mesmo princ�pio ativo da aspirina — atua contra as dores de cabe�a, entre outras fun��es. Por fim, a cafe�na (50 mg) � um estimulante, que tamb�m pode ajudar a diminuir enxaquecas.

Oficialmente, o Engov � indicado para “o al�vio dos sintomas de dores de cabe�a e alergias” — e n�o h� nada na bula que mencione diretamente preven��o ou melhora da ressaca. “Ou seja, falamos aqui de uma associa��o de subst�ncias que, na percep��o p�blica, formam um medicamento contra a ressaca, ou contra o ‘p� na jaca’, digamos assim”, avalia o farmac�utico Andr� Bacchi, professor da Universidade Federal de Rondon�polis, em Mato Grosso.“Por�m, o m�ximo que esse produto promove � um al�vio de alguns sintomas espec�ficos”, complementa o especialista.

Na vis�o de Bacchi, a vis�o popular sobre o Engov pode at� ser prejudicial. “Ao enxerg�-lo como uma solu��o contra a ressaca, a pessoa acaba bebendo mais por sentir que est� resguardada pelo efeito do rem�dio”, alerta.

Tomar este f�rmaco junto com o �lcool como uma estrat�gia para prevenir a ressaca, ali�s, � algo desencorajado na pr�pria bula. “Este medicamento � contraindicado para pacientes com hist�rico de alcoolismo cr�nico, [ou que ingerem] outras subst�ncias que deprimem o sistema nervoso central ou bebidas alco�licas”, diz o texto.

Essa recomenda��o tem a ver com dois motivos principais. Primeiro, porque “alguns efeitos do �cido acetilsalic�lico no trato gastrointestinal podem ser potencializados pelo �lcool”, ainda segundo a bula.

E isso, por sua vez, pode agredir o est�mago e levar a quadros de gastrite.

Segundo, a associa��o do �lcool com o anti-histam�nico da f�rmula (o maleato de mepiramina) potencializa o efeito sedativo relacionado �s duas subst�ncias. Ou seja: aquela sensa��o de ficar alheio � realidade causada pela bebedeira pode ficar ainda mais forte pela mistura de drinques com esses comprimidos.

Como mencionado anteriormente, a BBC News Brasil entrou em contato com a Hypera Pharma, para que o laborat�rio pudesse se posicionar a respeito das quest�es apresentadas, mas n�o foram enviadas respostas at� a publica��o desta reportagem.

Questionada sobre n�meros de vendas da medica��o, a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa), disse que o "Engov � registrado por apenas um fabricante, e portanto, por quest�es de sigilo empresarial, n�o � poss�vel repassar informa��es comerciais sobre ele".

O que fazer?

Segundo os especialistas, a �nica forma realmente comprovada de evitar uma ressaca � n�o beber — ou ao menos moderar no consumo.

“N�o existe uma f�rmula m�gica”, atesta a psiquiatra Olivia Pozzolo, pesquisadora do Centro de Informa��es Sobre Sa�de e �lcool (Cisa), em S�o Paulo.

“Vale tentar beber o m�nimo poss�vel e adotar algumas estrat�gias b�sicas, como tomar �gua entre uma dose e outra, comer algo para que o est�mago fique cheio, espa�ar o tempo entre um copo e outro…”, lista a especialista.

Embora a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) defenda atualmente que n�o existe quantidade segura de �lcool, o consumo moderado � classificado como uma dose para mulheres e duas para homens por dia — h� uma diferen�a na forma como essa subst�ncia � metabolizada no organismo masculino e feminino.

E o Engov? Ser� que ele pode ser tomado no dia seguinte, quando os sintomas da ressaca d�o as caras?

“Talvez a pessoa que usa esse medicamento at� possa sentir algum efeito e ficar mais sedada ou melhorar da azia”, responde Bacchi.

Por�m, de acordo com o farmac�utico, o mais adequado nesses casos seria o indiv�duo avaliar quais s�o exatamente os inc�modos que est� sentindo — e buscar medica��es espec�ficas para alivi�-los.

“Para a dor de cabe�a, � poss�vel tomar um analg�sico espec�fico, como a dipirona. Se h� muita n�usea, um antiem�tico reduz a sensa��o de v�mitos. E assim por diante”, exemplifica ele.

Paran� tamb�m lembra a import�ncia de outras medidas n�o farmacol�gicas nessas 12 a 24 horas em que a ressaca teima em assolar o corpo.

“� importante se hidratar bem para repor os l�quidos, comer alimentos leves e fazer repouso”, conclui o hepatologista.