O grito de liberdade da artista Niki de Saint Phalle ecoa na Casa Fiat
Mostra que será aberta nesta terça (2/9) em BH reúne 67 obras da autora franco-americana, nome emblemático da arte moderna e contemporânea do século 20
Obras de Niki de Saint Phalle ficarão expostas na Casa Fiat de Cultura, na Praça da Liberdade, até 2 de novembro - (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)
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O espectro da morte e do terror sempre esteve próximo da artista plástica Niki de Saint Phalle (1930-2002). Filha de francês e americana, ela nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Aos 11 anos, foi abusada sexualmente pelo pai. Aos 23, casada com o escritor Harry Mathews (1930-2017) e mãe de duas crianças, entrou em depressão e passou a guardar facas debaixo da cama, tramando o pior. Diagnosticada com esquizofrenia, foi internada no Hospital Psiquiátrico de Nice, na França, onde recebeu eletrochoques.
Por meio da arte, Niki reagiu a esse espectro. Transformou a dor em uma das obras mais ousadas e vibrantes do século 20, inspirando-se no movimento Novo Realismo. Parte de sua produção estará em cartaz na Casa Fiat de Cultura a partir desta terça-feira (2/9), na exposição “Niki de Saint Phalle – Sonhos de liberdade”.
A mostra reúne 67 obras da artista franco-americana, 66 delas pertencentes ao acervo do Museu de Arte Moderna e Arte Contemporânea de Nice (Mamac) e a outra vinda da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 1997, a própria Niki doou “Fonte das quatro Nanas” (1974-1991) ao museu brasileiro.
A última exposição de Niki no Brasil ocorreu em 1997, mas se restringiu a São Paulo e Rio de Janeiro. Agora, a mostra chega a Belo Horizonte impulsionada pela coincidência de dois fatores: o fechamento temporário do Mamac para reformas e o projeto de intercâmbio cultural Ano Brasil-França, entre os dois países.
Montada no terceiro andar da Casa Fiat, com curadoria dos franceses Olivier Bergesi e Hélène Guenin, a mostra “Niki de Saint Phalle – Sonhos de liberdade” traça um panorama cronológico da carreira da artista, dando ao visitante a oportunidade de compreender a relação direta entre o estado psíquico dela e suas obras.
“Foi durante o período de internação no Hospital Psiquiátrico de Nice que Niki se descobriu artista”, ressalta o curador Olivier Bergesi. “Alguns amigos levaram lápis de cor e tinta para que ela se distraísse. A partir daí, começou a criar inspirada pelo próprio sofrimento, recolhendo galhos e pequenas pedras no jardim do hospital para incorporá-los às telas.”
Essas montagens – as “assemblages” – marcam a primeira fase de sua produção. Após a alta, Niki manteve a técnica, mas substituiu elementos naturais por objetos cortantes, como navalhas, facas, tesouras e agulhas, que traduzem a ideia de morte que a perseguia.
Em sua obra, Niki de Saint Phalle questiona os padrões de beleza feminina impostos às mulheres pela sociedade
Leandro Couri/EM/D.A Press
“Paysage de la mort II” (1958) é o trabalho mais emblemático nesse sentido. Na tela, o círculo contornado por uma borda dentada se posiciona próximo da navalha, de onde escorrem filetes vermelhos semelhantes a sangue.
À moda Pollock
Niki gostava de explorar a ideia do conflito – sobretudo na primeira fase da carreira – e fazia isso com a mesma violência de Jackson Pollock (1912-1956). É o que se vê em “Scorpion and stag”, tela que ela pintou em 1956 com técnica muito semelhante à do norte-americano.
Na década de 1950, Niki chamou a atenção do meio artístico americano e europeu. Algumas de suas obras integraram coletiva no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa. Mas foi a série de performances “Tirs” (1961-1964) que lhe deu maior projeção.
Em “Tirs”, ela preparava painéis brancos em relevo, nos quais escondia sacos plásticos, latas e balões cheios de tinta. Com um rifle ou revólver, atirava contra a obra. Ao serem perfuradas, as bolsas e latas de tinta se rompiam, criando composições caóticas.
“Niki exteriorizava a violência extrema que estava dentro dela há tempos”, explica o curador. “Os tiros foram uma forma de matar simbolicamente o pai abusador, o marido, a Igreja, a política, a opressão… tudo aquilo que a sufocava”, afirma Olivier Bergesi, indicando como exemplo “Drôle de mort ou Gambrinus” (1963) e “La cathédrale rouge” (1962).
Depois de “Tirs”, Niki criou as emblemáticas “Nanas”. O termo, gíria para se referir à mulher, algo próximo da “mina” de hoje em dia, refere-se a figuras com contornos oblíquos e volumosos, lembrando Vênus paleolíticas. Elas representam o grito de liberdade diante dos padrões de beleza femininos impostos pela sociedade.
Cores vibrantes da série das pinturas de Niki Saint Phalle se destacam pela vitalidade
Leandro Couri/EM/D.A Press
Depois disso, Niki se consolidou como artista, comprova a série de pinturas “O Jardim do Tarô” (1979), em que as 22 cartas do jogo ganham cores vibrantes, transmitindo energia e bom humor.
Essa vitalidade atravessa a obra da artista até seus últimos anos. Está presente nos panfletos de conscientização sobre a Aids que ela produziu na década de 1980 e nas serigrafias do “Diário californiano”, realizadas após sua mudança para San Diego, devido à doença pulmonar provocada pelas tintas. Nesse diário visual, Niki denuncia a exploração animal, o racismo e a violência urbana que testemunhou nos Estados Unidos.
“Niki Saint Phalle é extremamente importante na arte moderna e contemporânea, porque traduz de maneira singular problemas sociopolíticos que persistem até hoje”, diz o curador. “Sua obra continua extremamente atual”, conclui Olivier Bergesi.
A Casa Fiat de Cultura recebe duas atividades gratuitas dedicadas à artista. Nesta quarta-feira (3/9), às 19h30, será realizado o bate-papo “O legado de Niki de Saint Phalle: inspirações e memórias”, conduzido por Marcelo Zitelli, curador e membro do conselho da Niki Charitable Art Foundation. Zitelli compartilhará experiências vividas ao lado da artista, com quem trabalhou por 15 anos.
Em 20/9, das 14h às 18h, o minicurso “O Novo Realismo em Niki de Saint Phalle” vai a abordar a relação da autora com o movimento que marcou sua obra. Inscrições prévias devem ser feitas na plataforma Sympla.
Obras de Niki de Saint Phalle. Exposição na Casa Fiat de Cultura (Praça da Liberdade, 10, Funcionários). De hoje (2/9) até 2 de novembro. Funcionamento: de terça a sexta, das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. Entrada franca. Informações: (31) 3289-8900.