O espectro da morte e do terror sempre esteve próximo da artista plástica Niki de Saint Phalle (1930-2002). Filha de francês e americana, ela nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Aos 11 anos, foi abusada sexualmente pelo pai. Aos 23, casada com o escritor Harry Mathews (1930-2017) e mãe de duas crianças, entrou em depressão e passou a guardar facas debaixo da cama, tramando o pior. Diagnosticada com esquizofrenia, foi internada no Hospital Psiquiátrico de Nice, na França, onde recebeu eletrochoques.

Por meio da arte, Niki reagiu a esse espectro. Transformou a dor em uma das obras mais ousadas e vibrantes do século 20, inspirando-se no movimento Novo Realismo. Parte de sua produção estará em cartaz na Casa Fiat de Cultura a partir desta terça-feira (2/9), na exposição “Niki de Saint Phalle – Sonhos de liberdade”.

A mostra reúne 67 obras da artista franco-americana, 66 delas pertencentes ao acervo do Museu de Arte Moderna e Arte Contemporânea de Nice (Mamac) e a outra vinda da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em 1997, a própria Niki doou “Fonte das quatro Nanas” (1974-1991) ao museu brasileiro.

A última exposição de Niki no Brasil ocorreu em 1997, mas se restringiu a São Paulo e Rio de Janeiro. Agora, a mostra chega a Belo Horizonte impulsionada pela coincidência de dois fatores: o fechamento temporário do Mamac para reformas e o projeto de intercâmbio cultural Ano Brasil-França, entre os dois países.

Montada no terceiro andar da Casa Fiat, com curadoria dos franceses Olivier Bergesi e Hélène Guenin, a mostra “Niki de Saint Phalle – Sonhos de liberdade” traça um panorama cronológico da carreira da artista, dando ao visitante a oportunidade de compreender a relação direta entre o estado psíquico dela e suas obras.

“Foi durante o período de internação no Hospital Psiquiátrico de Nice que Niki se descobriu artista”, ressalta o curador Olivier Bergesi. “Alguns amigos levaram lápis de cor e tinta para que ela se distraísse. A partir daí, começou a criar inspirada pelo próprio sofrimento, recolhendo galhos e pequenas pedras no jardim do hospital para incorporá-los às telas.”

Essas montagens – as “assemblages” – marcam a primeira fase de sua produção. Após a alta, Niki manteve a técnica, mas substituiu elementos naturais por objetos cortantes, como navalhas, facas, tesouras e agulhas, que traduzem a ideia de morte que a perseguia.

Em sua obra, Niki de Saint Phalle questiona os padrões de beleza feminina impostos às mulheres pela sociedade

Leandro Couri/EM/D.A Press

“Paysage de la mort II” (1958) é o trabalho mais emblemático nesse sentido. Na tela, o círculo contornado por uma borda dentada se posiciona próximo da navalha, de onde escorrem filetes vermelhos semelhantes a sangue.

À moda Pollock

Niki gostava de explorar a ideia do conflito – sobretudo na primeira fase da carreira – e fazia isso com a mesma violência de Jackson Pollock (1912-1956). É o que se vê em “Scorpion and stag”, tela que ela pintou em 1956 com técnica muito semelhante à do norte-americano.

Na década de 1950, Niki chamou a atenção do meio artístico americano e europeu. Algumas de suas obras integraram coletiva no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa. Mas foi a série de performances “Tirs” (1961-1964) que lhe deu maior projeção.

Em “Tirs”, ela preparava painéis brancos em relevo, nos quais escondia sacos plásticos, latas e balões cheios de tinta. Com um rifle ou revólver, atirava contra a obra. Ao serem perfuradas, as bolsas e latas de tinta se rompiam, criando composições caóticas.

“Niki exteriorizava a violência extrema que estava dentro dela há tempos”, explica o curador. “Os tiros foram uma forma de matar simbolicamente o pai abusador, o marido, a Igreja, a política, a opressão… tudo aquilo que a sufocava”, afirma Olivier Bergesi, indicando como exemplo “Drôle de mort ou Gambrinus” (1963) e “La cathédrale rouge” (1962).

Depois de “Tirs”, Niki criou as emblemáticas “Nanas”. O termo, gíria para se referir à mulher, algo próximo da “mina” de hoje em dia, refere-se a figuras com contornos oblíquos e volumosos, lembrando Vênus paleolíticas. Elas representam o grito de liberdade diante dos padrões de beleza femininos impostos pela sociedade.

Cores vibrantes da série das pinturas de Niki Saint Phalle se destacam pela vitalidade

Leandro Couri/EM/D.A Press

Depois disso, Niki se consolidou como artista, comprova a série de pinturas “O Jardim do Tarô” (1979), em que as 22 cartas do jogo ganham cores vibrantes, transmitindo energia e bom humor.

Essa vitalidade atravessa a obra da artista até seus últimos anos. Está presente nos panfletos de conscientização sobre a Aids que ela produziu na década de 1980 e nas serigrafias do “Diário californiano”, realizadas após sua mudança para San Diego, devido à doença pulmonar provocada pelas tintas. Nesse diário visual, Niki denuncia a exploração animal, o racismo e a violência urbana que testemunhou nos Estados Unidos.

“Niki Saint Phalle é extremamente importante na arte moderna e contemporânea, porque traduz de maneira singular problemas sociopolíticos que persistem até hoje”, diz o curador. “Sua obra continua extremamente atual”, conclui Olivier Bergesi.

Bate-papo e minicurso

A Casa Fiat de Cultura recebe duas atividades gratuitas dedicadas à artista. Nesta quarta-feira (3/9), às 19h30, será realizado o bate-papo “O legado de Niki de Saint Phalle: inspirações e memórias”, conduzido por Marcelo Zitelli, curador e membro do conselho da Niki Charitable Art Foundation. Zitelli compartilhará experiências vividas ao lado da artista, com quem trabalhou por 15 anos.

Em 20/9, das 14h às 18h, o minicurso “O Novo Realismo em Niki de Saint Phalle” vai a abordar a relação da autora com o movimento que marcou sua obra. Inscrições prévias devem ser feitas na plataforma Sympla.

“NIKI DE SAINT PHALLE – SONHOS DE LIBERDADE”

Obras de Niki de Saint Phalle. Exposição na Casa Fiat de Cultura (Praça da Liberdade, 10, Funcionários). De hoje (2/9) até 2 de novembro. Funcionamento: de terça a sexta, das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. Entrada franca. Informações: (31) 3289-8900.

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