GABRIEL DE SÁ

Especial para o EM

Conversei com Lô Borges, por telefone, em uma tarde quente de janeiro de 2022, poucos dias após o aniversário de 70 anos dele. Mas o clima não era de celebração. O Brasil registrava quase 623 mil mortes pela COVID-19 naqueles dias e a média móvel de novos casos seguia em alta. A entrevista faria parte do caderno especial que o Estado de Minas publicou em março de 2022, no cinquentenário do álbum duplo 'Clube da esquina'.

“A gente está no meio de uma pandemia. Comemorar o quê? A gente não vai poder subir no palco, entende? Eu não vejo grandes perspectivas”, lançou, com certa angústia, o compositor logo no início da ligação. “Eu não sou muito fixado em datas comemorativas.”


Mas havia, sim, motivos para celebrar. E muitos. Além do aniversário de 70 anos, o lendário álbum duplo “Clube da esquina” completava meio século naquele ano de 2022, bem como o “Disco do Tênis”, o primeiro solo de Lô, ambos lançados em 1972 e responsáveis por gravar o nome do cantor e compositor mineiro no panteão da música brasileira. Lô Borges morreu no último domingo (2/11), aos 73 anos, em decorrência de falência múltipla de órgãos.



Nossa conversa, reproduzida a seguir, durou 45 minutos. Além de reiterar o orgulho de ter sido convidado por Milton Nascimento para ser o coautor do “Clube da esquina”, Lô revelou sua alta produtividade naquela fase da vida. Havia lançado quatro discos de inéditas nos quatro anos anteriores.

“Estou fazendo o que eu posso fazer para honrar as tradições de musicalidade e interesse pela música e pela arte, mesmo na pandemia”, disse ele. “Minha comemoração vai ser continuar fazendo música.” No final da nossa conversa, voltou ao assunto. Disse que as celebrações eram bem-vindas, mas ponderou: "Atualmente, não tem condições de juntar a galera para fazer show. Isso acho difícil. Sou um cara que enquanto tiver pandemia, tô dentro de casa."

Lô Borges também relembrou os momentos mais marcantes da gravação do “Clube da esquina” e confidenciou as canções preferidas daquele disco. Curiosamente, não eram de autoria dele, que compôs “O trem azul”, “Um girassol da cor do seu cabelo” e “Paisagem da janela”, entre outros clássicos.




Neste 2022 tão especial pra você, que fez 70 anos e “Clube da esquina”, 50, que comemoração você está planejando?



LB – Eu não penso muito nessa visão de comemoração, entendeu? Acho que foi uma coisa muito boa que a gente fez há 50 anos. Eu, especialmente, me sinto muito orgulhoso, muito honrado de ter sido convidado pelo Milton pra ser coautor do disco. Compus oito músicas. No mesmo ano, gravei meu primeiro disco solo, o 'Disco do Tênis'. Eu, Lô Borges, tô comemorando dois discos. Mas é o seguinte, cara: teve 40 anos do 'Clube da esquina', teve 30, teve 20... Não sou muito fixado em datas comemorativas. Eu me sinto muito orgulhoso de estarmos todos na ativa, todo mundo que participou do 'Clube da esquina'. Mas a gente tá no meio de uma pandemia (em 2022), a gente vai comemorar o quê? Não vai poder subir no palco, entende? Tá fazendo 50 anos, mas comemoração não vejo muito por onde. O show tá inviabilizado com o agravamento cada vez maior da pandemia mundial, né? Então, vou ficar fazendo o que eu sei fazer melhor, que são discos de inéditas. Eu tô fazendo disco atrás de disco no século 21. Pra você ter ideia, dobrei a minha produção de discos de inéditas, de canções novas, no século 21. E tô fazendo o que posso pra honrar as tradições de musicalidade, de interesse pela música, de interesse pela arte. E tenho feito, mesmo na pandemia. Tô lançando agora em março o meu quarto disco de inéditas em quatro anos.



Caramba...



LB – O disco “Chama viva”, com letras de Patrícia Maês. Minha comemoração vai ser continuar fazendo música, continuar fazendo discos, porque não vi a possibilidade de shows, de juntar todo mundo. Sabe essa expectativa de “ah, vamos juntar a turma da esquina, todo mundo no palco pra comemorar?”. Isso foi inviabilizado pela pandemia. 


Conversei com várias pessoas que gravaram o “Clube da esquina”. Todo mundo me falou muito do clima de liberdade dentro do estúdio. As canções estavam prontas, mas os arranjos, a coisa musical, foi meio que feita ali, o que contribuiu muito para a sonoridade do disco.


LB – Eu acho perfeito isso. O disco não teve nem ensaio. As coisas aconteciam de uma maneira assim, intuitiva, com todo mundo querendo dar o melhor de si pras músicas do Milton e do estreante Lô Borges. Então, só tenho que agradecer a Robertinho Silva, Luiz Alves, Beto Guedes, Toninho Horta, Nelson Ângelo, Tavito. Só tenho a agradecer a generosidade e a criatividade que eles colocaram não só nas minhas músicas como nas músicas do Milton. Porque o disco são dois compositores: o Milton e eu, né? Eu era um estreante, com 19 para 20 anos, o mais jovem da turma toda. Tava assinando o disco, compondo oito músicas, e o pessoal me recebeu com o maior carinho, com a maior criatividade, com a maior solidariedade, todo mundo me dando força. Às vezes, poderia estar um pouco inseguro. Eles não me deixaram ficar inseguro, entende? Devido à minha imaturidade, estava no estúdio pela primeira vez. Era uma grande responsabilidade, mas o peso dessa responsabilidade, que não é produtiva... Todas as pessoas que participaram, principalmente o Milton, foram de uma generosidade, uma coisa tão bonita. Fiquei à vontade como se fosse um músico experiente, o que eu não era, entendeu?

Por falar nas oito contribuições para esse primeiro disco, você lançou músicas ali que se tornaram clássicos absolutos. “O trem azul” foi gravada pelo Tom Jobim, pela Elis Regina...


LB – É. O maestro Tom Jobim. Lembro que estava vendo televisão na casa do meu irmão, ele deu uma entrevista, acho que pra Rede Globo, um daqueles jornais da Globo. Perguntaram o que ele via de promissor, de novidade na música brasileira. Ele me citou. Ele me citou e eu não acreditei! Então, antes de ele gravar “O trem azul”, eu já tinha sido citado numa entrevista importante, de grande alcance. Enfim, fui muito bem recebido no Rio de Janeiro, cidade da qual sempre gostei desde criança, de passar férias no Rio... Mas pra trabalhar num disco, era tudo uma grande novidade. Só foram acontecendo coisas boas o tempo todo. O Tom gravou 'O trem azul', a Elis gravou 'O trem azul', tantas pessoas... Mas a história começa um pouquinho antes, né? Porque tem um motivo para Bituca me convidar pra ser coautor do álbum. Dois anos antes, em 1970, eu e o Milton nos tornamos parceiros pela primeira vez, fazendo a música “Clube da esquina”, que ele gravou no disco de 1970 (chamado 'Milton Nascimento'). E também minha música com letra do Fernando Brant e do Márcio Borges, chamada 'Para Lennon e McCartney', fez grande sucesso ali. Então, aí o Milton apostou em mim. Falou: 'Este cara, além de ser meu parceiro, fez uma música chamada 'Para Lennon e McCartney' que deu supercerto no meu disco.'

Como foi o convite?


LB – Quando ele chegou na minha casa – ele morava no Rio, eu em Belo Horizonte –, eu estava me preparando pra fazer vestibular, já nem me lembro pra quê, entendeu? Quando ele me convidou, pensei: 'Ah, o Bituca vai me pedir mais uma música pro próximo disco dele'. Aí ele falou: 'Não, eu não vou te pedir uma música. Eu tô querendo te convidar pra ir morar no Rio comigo pra gente fazer um álbum chamado 'Clube da esquina', homenagear essa esquina em que você fica tocando violão aí com seus amigos de bairro, e homenagear a nossa parceria.’ Aí falei: 'Eu vou ter que pedir autorização à minha mãe'. Porque tinha 17 anos quando ele me convidou, sabe? Quando compus 'Para Lennon e McCartney', eu tinha 17 anos. Ele me convidou e eu estava na idade de me apresentar ao Exército, 18 anos. Falei: 'Tenho que pedir autorização à minha mãe e me resolver com o Exército'. Eu me apresentei ao Exército, fui muito maltratado, era época da ditadura militar. Falei pro capitão da minha companhia, já tava com a cabeça raspada e tudo: 'Vou fazer um disco com o Milton Nascimento chamado Clube da esquina.' E ele falou: 'Você não vai servir o Exército, e não é porque você vai gravar disco com seu Nascimento, não. Você não vai servir o Exército porque o Exército não quer pessoas da sua espécie aqui dentro.' Fui desligado dentro do 12º RI aqui em Belo Horizonte, entendeu?


Caramba!


LB – Foi até um pouco traumatizante, mas aí conversei com a minha mãe. Meu pai era mais liberal, mas a minha mãe falou assim: 'Você vai morar no Rio na ditadura militar. Você, com 18 anos de idade, vai morar com o Bituca?' Falei: 'Ô, mãe, a oportunidade que ele tá me dando pra gravar um disco chamado 'Clube da esquina', vou fazer metade das músicas e ele vai fazer a outra metade'. Então, não foi assim do nada que veio o convite, sabe? Teve a história anterior de ele ter (me) gravado (em 1970), a gente ter se tornado parceiros, fazendo a música 'Clube da esquina', que homenageava a esquina onde eu ficava sentado tocando violão com meus amigos de bairro. E o fato de 'Para Lennon e McCartney' ter dado muito certo no disco dele. Ele apostou em mim e fiquei muito feliz. Foi difícil convencer o Exército, mas a minha mãe foi mais difícil de convencer, entendeu? A minha mãe conhecia muito bem o que era uma ditadura militar. Juntar duas, três, quatro pessoas jovens morando na mesma casa podia ser considerado um “aparelho subversivo” naquela época de tanta repressão, né? Minha mãe não queria. Conversei com meu pai, que era mais liberal. Ele falou assim: 'Pera aí que vou tentar converter sua mãe.' Aí meu pai, um belo dia, convenceu minha mãe, e fui pro Rio. Eu, o Bituca e o Beto. Falei: 'Ô, Bituca, nós temos que chamar o Beto também.' Ele: 'Claro, vamos chamar o Beto, eu adoro o Beto.' Ele disse: 'Preciso de uma interlocução beatlemaníaca morando comigo, porque vou chegar no Rio e vai estar cheio de amigos meus tocando jazz, bossa nova, outras coisas que gosto muito'. Eu era beatlemaníaco e o Beto também. A gente teve até uma banda que chamava The Beavers. Aí levei o Bituca na casa dos pais do Beto. Eles já foram mais liberais do que a minha mãe, deixaram o Beto ir. E foi superimportante. Essa história do Beto foi maravilhosa, porque você pega a ficha técnica do 'Clube da esquina' e o Beto Guedes tocou em todas as faixas minhas, todas as faixas do Milton. Ele tocou no disco inteiro. O fato de ter morado junto (com a gente) em Mar Azul deixou o Beto ainda mais conhecedor das músicas que o Bituca tava fazendo e das músicas que eu tava fazendo. O cara que mais conhecia as músicas que eu tava fazendo e que o Milton tava fazendo pro 'Clube da esquina' era o Beto, que morava com a gente. Ele era testemunha diária, cotidiana, das músicas que estavam sendo feitas. Então, chegou no estúdio com muito talento que tem, multi-instrumentista, arranjador espetacular, um cara maravilhoso. O Beto foi incrível.

Garotos saídos da adolescência, Beto Guedes e Lô Borges acrescentaram a sonoridade dos Beatles à sofisticada alquimia musical de Milton Nascimento

Odeon/reprodução

Queria que você contasse um pouquinho da fase em Mar Azul, do período de criação em que você ficou com Bituca, com Beto Guedes.


LB – Esses dias foram muito legais. Foi um grande alívio pra gente. Quando a gente começou a morar no Rio, a gente não foi direto para Mar Azul, a gente foi morar no Jardim Botânico. Como era ditadura militar, a gente acabou expulso do prédio. A gente nem fazia barulho nem nada. Expulso porque era cabeludo, porque não sei o quê, porque bebia. É o que costumo dizer: em período de autoritarismo, ditadura militar, qualquer pessoa que é autoritária se reveste de legitimidade para exercer o autoritarismo, entendeu? Então, fomos itinerantes, moramos em vários lugares do Rio de Janeiro. A gente não era muito bem recebido pelos síndicos, pelos porteiros. Até que o empresário do Milton sacou isso e falou: 'Consegui uma casa para vocês numa praia paradisíaca, uma casa maravilhosa no litoral ali de Niterói, chamada Mar Azul'. Nós fomos para lá, aí foi tudo certo. Não tinha vizinho, não tinha síndico, não tinha porteiro. Era só a gente por conta da criação. O processo de criação era o seguinte: ficava o Milton num quarto compondo as coisas dele, eu ficava no outro quarto compondo as coisas minhas. O Beto ficava no quarto dele. O Beto visitava a gente. E fazíamos tudo juntos mesmo, íamos pra praia juntos, almoçávamos juntos. O Beto ia pro quarto do Bituca e ficava assim, olhando as músicas que o Bituca apresentava. Ele ia pro meu quarto e ficava olhando as músicas que eu apresentava. O Beto não foi compositor ali, mas fundamental como o cara que mais conhecia as músicas que o Milton fez e as músicas que eu fiz.

A turma do Clube da Esquina em especial para a TV Bandeirantes, nos anos 1970. À frente, Lô Borges e Milton Nascimento. Atrás, o baterista Nenê; Wagner Tiso, nos teclados; Novelli conversa com Beto Guedes; Nelson Angelo ao fundo. Sentados, à direita, os letristas Ronaldo Bastos, Márcio Borges e Fernando Brant (de boné). Mario Luiz Thompson, que fez várias fotos da carreira de Milton, registrou o momento, de acordo com o blog Clube da Esquina

Blog do Clube da Esquina/reprodução


Você tem oito músicas no disco e participou de praticamente todas as faixas. Você tem alguma lembrança especial, algo que tenha te marcado?


LB – Foi tudo muito especial, para mim era uma novidade. Eu era super inexperiente, um desconhecido. Para você ter ideia, a gravadora não queria fazer o projeto. O Milton aqui falou assim: 'Se vocês não toparem esse projeto 'Clube da esquina – Milton Nascimento & Lô Borges', eu troco de gravadora. Ofereço para outra gravadora' Porque eu era um desconhecido, muito inexperiente, muito jovem, e eles não conheciam as minhas músicas, né? Mas aí, quando começaram a ver o que a gente começou a gravar... E eles não perderam o Milton. Falaram: 'Então vamos fazer, vamos dar oportunidade para esse estreante Lô Borges, de quem ninguém nunca ouviu falar.' Aí fui, e foi tudo especial. No primeiro momento, a gravadora não queria fazer o álbum. Aí depois que começaram a ouvir as músicas... As do Milton, eles já apostavam no Milton o tempo todo, ele era artista do elenco deles já há alguns anos. Quando começaram a ouvir as músicas que eu estava gravando, não só gostaram como me ofereceram um contrato para fazer um disco solo no mesmo ano, entendeu? Foi muito incrível. Todos os momentos foram especiais: as gravações, as criações coletivas, né? Era uma oficina de criação livre. Cada um fazia o que queria na minha música, na música do Milton. E o Milton, que era o cara da história, o cara que estava capitaneando tudo, deu total liberdade para todo mundo criar. Considero um momento especial o dia em que gravei com orquestra 'Um girassol da cor do seu cabelo', porque naquela época eram dois canais só, então tudo acontecia ao vivo. Você gravava num canal todo o instrumental e no outro canal todas as vozes, não simultaneamente. Primeiro você gravava a base, o instrumental, aí em seguida fazia as vozes. E eu, inexperiente com meus 19 anos, com uma orquestra dentro do estúdio regida por Paulo Moura, arranjo do Eumir Deodato, eu tocando 'Um girassol'. Tava tudo na minha mão ali. Se errasse um acorde, se ficasse nervoso, tinha de parar tudo, porque eram dois canais só. Não tinha essa coisa de edição de hoje: você errou uma parte, emenda. Não tinha esses recursos, você tinha simplesmente que acertar mesmo.

Como foi aquele dia?


LB – Falei: quer saber de uma coisa? Vou mandar ver aqui, vai ficar bonito. E consegui não errar nada. Foi uma emoção especial gravar 'Um girassol' com uma orquestra dentro do estúdio, regida por Paulo Moura, com arranjo do Eumir Deodato. Nunca mais esqueci o momento: eu, com 19 anos, gravando 'Um girassol da cor do seu cabelo' com a base e orquestra regida pelo Paulo Moura. Também tem outros momentos especiais: o Milton e o Beto fazendo vocais pra mim em 'O trem azul', o Milton e o Beto fazendo vocais pra mim em 'Paisagem da janela'. Você vê que sorte a minha, né? Acho que eu sou um cara bem de sorte, porque tive pessoas tão talentosas e tão generosas comigo.


Falando de “Girassol”, outro clássico do disco, essa canção belíssima tem a temática do amor, o que não é tão comum nas canções do 'Clube da esquina'. O Márcio Borges fez a letra pra ex-esposa dele, pra Duca Leal, né?


LB – Acho que foi isso mesmo, se não me falha a memória. Vi ele contar isso.

Você se lembra da criação de “Um girassol da cor do seu cabelo” especificamente?


LB – Não. Para mim, fazer música, hoje ou naquela época, é uma coisa que flui com grande intuição e naturalidade. Fiz 'Um girassol' igual às outras do disco. Com inspiração, jogo rápido. Até hoje, quando tô fazendo uma música, se demora mais de 20 minutos para estar 90% pronta, já descarto. Falo assim: 'Não, esta aqui tá muito difícil de fazer.' Gosto de fazer música de súbito. As melhores músicas, eu faço muito rapidamente. Nenhuma do 'Clube da esquina' levei mais de uma hora para compor. Aí depois entram as letras, até hoje é assim. Na pandemia, já compus 40 músicas (a entrevista foi concedida em 2022). Mantenho esse negócio de isolamento social meio que à risca. Só saio de casa para ir ao estúdio. Fiz gravar minhas músicas, que faço semanalmente. Vou pro estúdio, gravo o meu instrumento. Fiz músicas de afinação do violão caipira, fiz um disco todo de afinação do caipira. Fiz um um disco todo de guitarra com distorção, fiz um disco todo de órgão, que chama 'Viva'. E tô fazendo um disco todo de piano. Isso tudo nestes dois anos de recolhimento que a pandemia impôs. Acabaram os shows, né? Os shows estão parados. Então, faço as músicas com muita agilidade. Acho que o início da carreira deixou uma marca em mim, na maneira como levo a composição. A composição é a coisa mais importante para mim como artista. Acho o show uma coisa bonita. Adoro o público, adoro fazer show, fiz grandes shows na minha vida. Mas show é uma coisa mais efêmera. Dura uma hora e meia. Acabou, você volta pra casa, chega cansado, ganhou um dinheirinho, teve o carinho do público, mas acaba ali o show. Agora, um disco... A música que você faz hoje, vai pro estúdio, grava e lança... Mesmo que os discos não fiquem conhecidos no exato momento em que estão sendo feitos, daqui a 200 anos os discos estão lá. O show dura uma hora e meia e acabou.

Atualmente, como se dá seu processo de criação?


LB – Comecei nessa febre de voltar a compor muito em 2003, com o disco 'Um dia e meio'. Agora, eu tô compondo 40 músicas em dois anos, assim. Tá uma coisa... Não gosto de deixar a música em casa, não, sabe? Fico vendo alguns artistas falarem: 'Ah, tenho baú de canções'. Eu não tenho baú de canções. Levo tudo pro estúdio e realizo as canções. Gosto de realizar as canções porque sei que elas ficam pro resto da vida. Daqui a 200 anos, meus tataranetos vão falar assim: 'Pô, meu tataravô era um cara que fazia muita música.'

No disco 'Clube da esquina', vocês gravaram a música 'Clube da esquina nº 2' só instrumental. Ela só foi ter letra anos depois, pedido da Nana Caymmi para seu irmão, Márcio Borges. O que você achou ao ouvir a letra a primeira vez?


LB – Achei uma obra-prima do Márcio. É uma das letras dele de que mais gosto, né? É uma letra sensacional. Gravei essa música no álbum 'A Via-Láctea', no ano em que a Nana gravou (1979). A letra fala tanta coisa forte, ela tem tantas imagens fortes. Vou citar aquela frase que é histórica, usada por veículos de comunicação até hoje: 'Os sonhos não envelhecem'. O Márcio inventou isso na letra, inventou essa linda frase.

Ele fez a letra sem vocês saberem, né?


LB – É. Acho que eu fui o primeiro a saber. O Bituca e eu ficamos sabendo, pouco tempo depois, que a Nana já queria gravar. E aí tem o meu disco 'A Via-Láctea'. O Milton foi o produtor deste disco. Ele não entrou como compositor, mas foi ele quem tinha me levado outra vez pra gravadora. Tive um hiato na minha carreira de seis anos, depois do 'Clube da esquina' e do 'Tênis'. Pedi um tempo. Falei: 'Preciso de um tempo pra me estruturar como compositor. Tudo o que eu não quero é fazer música por obrigação. Quero fazer música por vontade própria.' O começo da minha carreira foi muito avassalador pra mim, um jovem ali de 19, 20 anos. Tive que compor o 'Disco do Tênis' sem ter música nenhuma. Aí eu compunha de manhã, o Márcio fazia a letra à tarde e de noite a gente ia pro estúdio gravar. Valendo, pra todo sempre. Então esse negócio... O 'Disco do Tênis' me deu uma agilidade pra compor. Porque eu compunha a música de manhã, jogo rápido, o Márcio fazia a letra à tarde, jogo rápido, e à noite a gente ia pro estúdio e juntava com os músicos que estavam me esperando. Eles me olhavam com aquela cara: 'O que o Lô trouxe pra hoje?'. Esse fato é muito incrível, né? Aquela música que eu gravava não existia de manhã... Já no 'Clube da esquina' tive tempo pra compor. Naquele lugar paradisíaco onde a gente morou, tivemos vários meses pra compor. No 'Tênis', não. Era 'vamos que vamos, vamos que vamos'. O pessoal da gravadora pressionando: 'Nós temos de lançar este disco ainda este ano.' E eu: 'Mas por que ainda este ano? Preciso um pouco mais de tempo pra compor.' O ano de 1972, pra mim, teve duas fases: a fase do 'Clube da esquina', uma fase relaxada, e a fase do 'Tênis', uma fase sufocante. Mas sufocante e criativa, que me ensinou a compor com agilidade.

Os irmãos Márcio e Lô Borges na esquina do Bairro Santa Tereza que batizou o aclamado álbum de 1972. Parceria dos dois rendeu a canção de amor do disco

Renato Weil/EM/D.A Press - 24/3/2004

Recentemente, a gente teve mais uma prova do sucesso internacional do disco, que foi a execução de “Tudo o que você podia ser' num desfile de moda nos Estados Unidos, com o Quarteto em Cy. Os rappers Kanye West e Pharrell Williams curtindo muito a música. Como você se sentiu?


LB – Muito feliz, principalmente pelo meu filho Luca, de 23 anos de idade, que me ligou quase chorando, falando assim: 'Pai, meus ídolos vibraram com a sua música'. Falei: 'Ah é, cara? Que legal'. Meu filho Luca vive me aplicando em rap. Ele adora rap. Não é que ele não goste de MPB, ele até gosta das coisas que o pai dele faz e de outros artistas do Clube, mas o universo dele é o universo rap. Ele fez uma playlist para mim no Spotify do Djonga. Fiquei super fã do Djonga. Falei: 'Pô, que cara f***, que legal'. Sou bastante eclético. Na parte da manhã, tô cuidando das minhas músicas, até depois do almoço. Mais de tardinha, começo a ouvir. Para você ter ideia, sou tão diversificado, eclético e maluco que escuto Ciro Monteiro, entendeu? Escuto Cauby Peixoto, escuto Caetano, Gil, escuto Chico Buarque, escuto Djonga.


O 'Clube da esquina' é um disco cultuado no mundo inteiro. O que o tornou um clássico tão fundamental da música brasileira?


LB – São vários fatores. Muitos músicos criativos com liberdade para criar e inspirados dentro do estúdio. E tem um tempero especial: o contraponto das minhas músicas, com sotaque mais rock inglês, mais Beatles, digamos assim, com as músicas do Milton, que acenam para outro estilo. Esse contraponto das melodias é muito bem montado, esse contraponto é original. Se você for ver bem o 'Clube', são dois autores ali distintos mesmo. As músicas do Milton não têm muito a ver com as minhas músicas, e às vezes as minhas músicas não têm muito a ver com as músicas do Milton. O que mantém a unidade é a coisa que o Milton mais fala, que ele mais preza e mais preserva: a amizade. A amizade regeu tudo, sabe? O amor entre as pessoas. 'Clube da esquina' é essa originalidade dos criativos, a coisa do guitarrista tocar um contrabaixo em vez de guitarra em algumas faixas, entendeu? Esse tipo de liberdade criativa tornou o álbum diferente. Particularmente, gosto muito daquela química das misturas das músicas do Milton com as do Lô. Uma faz contraponto à outra, sabe? E o álbum não fica uma coisa só. Quando o Milton faz 'Dos povos', densa, linda, maravilhosa, é uma das prediletas minhas entre as composições do Milton, e de repente eu entro com 'Da janela lateral', uma baladinha, entendeu? Aí o Milton fez 'Cais', fez 'Canção da América', fez 'Nada será como antes', 'Cravo e canela'. O Milton é meu ídolo, cara. Meu mestre, é meu mestre desde sempre.


A gente tem um trio de letristas ali, que estão entre os mais inspirados da música brasileira: Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos. É uma coisa de... um 'trem de doido' mesmo, né? Aquelas letras, aquelas poesias.


LB – É maravilha. Maravilhosos. Todos os músicos, todos os letristas, todos os arranjadores, o fotógrafo, tudo naquele disco. Os técnicos da gravadora Odeon, os técnicos de som eram muito bons. Os caras faziam mágicas ali em dois canais. A sonoridade do 'Clube da esquina' é muito impressionante. Isso foi feito só em dois canais! Essa é uma das coisas que eu destacaria: a sonoridade do 'Clube da esquina'. Porque tem dois canais e parece que é disco feito nos dias de hoje, em ProTools, com 100 canais. Era tudo analógico, tudo idade da pedra. Mas era uma constelação de pessoas talentosas: os técnicos eram muito talentosos, os músicos, o Milton muito talentoso. Eu estava muito inspirado também.

Qual é sua faixa preferida de 'Clube da esquina'?


LB – São duas, todas duas do Milton. Uma é 'Nada será como antes', com letra do Ronaldo Bastos. E a outra, 'Dos povos', com letra do Márcio Borges. 


Você e o Bituca se encontram eventualmente? Sei que agora tá na pandemia, né?



LB – A pandemia afastou muito as pessoas. E esse lado de ficar afastado das pessoas... Quando teve a pandemia, eu estava com turnê marcada do meu disco. Aí sai uma notícia: tudo cancelado, pandemia mundial, não sei o quê, cara. Fiquei um mês, dois meses, sem tocar nenhum instrumento. Fiquei triste e falei: 'Pô, cortaram a minha onda, que coisa.' Mas durou pouco, cara. Dois meses depois, comecei a compor igual a um alucinado, fazer um disco atrás do outro. E tô com disco até para 2024 ou 25, entendeu? Todas as músicas eu posto. 


Bati um papão com o Márcio Borges há três semanas. Ele me falou que você é um criador compulsivo.



LB – O pessoal que me conhece sabe disso. Na época do 'Clube da esquina', já era um compositor assim, cotidiano. A música faz parte da minha da minha vida, entendeu? Nos tempos em que não existia pandemia, fazia muito show, eu viajava, chegava em casa meio cansado, com preguiça de sentar para compor. Agora com esse isolamento, não pode ter mais shows... Só volto a fazer show de maneira segura, tem toda uma história aí de variantes altamente contagiosas. O negócio não tá legal. 




Lô, queria te parabenizar pelos 70 anos, pelos 50 anos dos dois discos, te agradecer pelas músicas maravilhosas que você fez e faz pra gente, pela entrevista também.

 

LB – Para encerrar, queria voltar ao negócio da comemoração. Foi a primeira pergunta que você me fez. Pode ter parecido meio estranha a minha resposta. Quero repetir esta resposta. Tem todos os motivos para comemorar os 50 anos do 'Clube da esquina'. É evidente. E todos os motivos para comemorar também o 'Disco do Tênis'. Mas, atualmente, não tem condições de juntar a galera para fazer show. Isso acho difícil. Sou um cara que enquanto tiver pandemia, tô dentro de casa, cara. Só saio de casa para ir pro estúdio gravar música.

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