“Saúde é minha prioridade, mas tem outras coisas também”. A fala em questão é do prefeito de Pirapetinga, pequeno município da Zona da Mata mineira, de aproximadamente 11 mil habitantes. No vídeo gravado em 22 de maio, Luiz Henrique (PL) agradece o recebimento de R$ 600 mil em emenda Pix (transferência especial) do deputado federal Bruno Farias (Avante-MG). O que o prefeito chama de “outras coisas também” no Instagram é aplicado, na verdade, em shows de artistas renomados, como as duplas sertanejas Matheus & Kauan e João Neto & Frederico, que promoveram eventos no município durante seu mandato.
Leia Mais
Levantamento feito pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas, a partir do cruzamento de informações do Congresso Nacional, da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Contas, mostra que as cidades mineiras gastaram R$ 29 milhões com atrações musicais pagas com emendas Pix desde 2023. São 223 depósitos do tipo diferentes, sendo que alguns shows, pelo preço elevado, são pagos até mesmo de maneira parcelada.
A prática não é ilegal, mas representa mal uso do dinheiro público na avaliação do cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Ranulfo. “Esse mecanismo dá origem a uma série de distorções. Não estou falando de corrupção necessariamente, mas é de show que uma cidade pequena precisa?”, questiona.
Pirapetinga não está sozinha na lista. O cruzamento de dados mostra que 83 prefeituras diferentes usaram recursos de emendas Pix para contratação de shows desde 2023. A relação conta com cidades como Itambacuri (Vale do Rio Doce), de aproximadamente 20 mil habitantes. Em junho do ano passado, o prefeito Jovani Santos (Avante) desembolsou R$ 340 mil em única parcela para promover um show do cantor Amado Batista. Na eleição municipal realizada quatro meses depois, Jovani atropelou os concorrentes e venceu com 67% dos votos válidos.
Leia Mais
“Essa quantidade enorme de dinheiro para emenda parlamentar resulta na diminuição da renovação política. Cada deputado ou deputada pode gastar milhões por ano, enquanto o concorrente não tem isso. O mesmo vale para os prefeitos. Você vai criando uma casta política. É uma campanha de quatro anos, o que é um absurdo completo”, diz Carlos Ranulfo.
Os dados mostram uma concentração de shows pagos com emendas em 2024. Se 2023 registra 40 depósitos do tipo, o ano eleitoral totaliza 153. Neste ano, o ritmo é parecido com o de 2023: 30 repasses. “Um show de um artista famoso em uma cidade pequena tem um impacto muito grande. Fala-se sobre aquele show, num ano eleitoral, por meses”, afirma o cientista político ouvido pela reportagem.
Liderança
Entre as 83 cidades mineiras que encaminharam emendas Pix para a realização de shows, a líder é Vespasiano, na Grande BH. Os 13 shows realizados entre 2023 e 2024 totalizam R$ 2,6 milhões. A lista conta com artistas como César Menotti & Fabiano, Barões da Pisadinha e Padre Fábio de Melo. Todos aconteceram antes do pleito eleitoral de outubro passado, quando Zé Wilson (PSDB) venceu com apoio da ex-prefeita Ilce Rocha, também tucana.
Em nota, a prefeitura informou que “os recursos não tiveram destinação específica para as áreas de saúde, educação, meio ambiente e transportes, por isso foram direcionados ao fortalecimento da cultura e do turismo local”.
Leia Mais
Na sequência, aparece Pirapetinga, cidade que abre esta reportagem, com R$ 2,1 milhões em emendas Pix gastas com shows. Ituiutaba (R$ 1,7 milhão), Gurinhatã (R$ 1,5 milhão), Itambacuri (R$ 1,2 milhão) e Nanuque (R$ 1 milhão) vêm na esteira.
Apesar de não terem qualquer responsabilidade sobre o uso do dinheiro público, os artistas também faturam alto com as emendas Pix pagas pelo Congresso e pela Assembleia. Só o cantor Leonardo embolsou R$ 1,8 milhão nas cidades mineiras a partir desse mecanismo – somente a dupla sertaneja César Menotti & Fabiano também ultrapassa a marca do milhão (R$ 1,055 mi). Guilherme Silva (R$ 835 mil), Matheus & Kauan (R$ 718 mil) e Clayton & Romário (R$ 690 mil) aparecem na sequência. O maior cachê único pago com emendas foi da dupla sertaneja Jorge & Mateus com R$ 650 mil para agitar a Expopec Ituiutaba em 2023.
O cruzamento de dados não permite verificar o deputado responsável pela emenda Pix usada para pagamento dos shows. Como as cidades recebem transferências especiais de mais de um parlamentar, a prestação de contas dos municípios apenas sinaliza a origem do recurso, sem especificar o político responsável pelo envio dele.
Perpetuação no poder
Na visão da doutora em ciências políticas Juliana Fratini, o direcionamento de emendas Pix para a realização de shows é um “marketing de produto”. “Os deputados que buscam esses recursos para realização de shows querem proporcionar momentos agradáveis para o público. Querem proporcionar lembranças relativas a um típico marketing de produto que, no caso, o produto são eles próprios enquanto deputados”, diz.
Os especialistas ouvidos pela reportagem ressaltam a necessidade de uma intervenção constitucional, a partir do Supremo Tribunal Federal, para reverter o cenário e garantir maior transparência no processo de uso das emendas. Carlos Ranulfo, da UFMG, inclusive, defende o fim das emendas impositivas, aquelas que o Poder Executivo é obrigado a custear.
Leia Mais
“No Brasil, o orçamento já vem bastante carimbado. Assim, a fatia de investimento para o Executivo é restrita. Se ele precisa ceder uma parte substantiva disso para os deputados, o uso desse recurso fica muito fragmentado. O Legislativo não é feito para executar o orçamento”, diz.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
“Não existe nenhum outro país do mundo em que isso acontece. Agora, é óbvio que o Congresso não mudará isso. Uma vez que você ganha poder, raramente você devolve. Isso prejudica muito os presidentes, sejam eles de direita ou de esquerda. Se ano que vem, um candidato de direita vence a eleição, ele terá o mesmo problema (de relacionamento com o Congresso) que o Lula (PT) tem tido”, completa.