Prefeituras de municípios mineiros gastaram cerca de R$ 6 milhões em emendas Pix no financiamento de shows musicais sem informar ao governo federal que os recursos foram usados para essa finalidade. Os gastos com as atrações musicais não foram informados no Transferegov – portal criado para trazer mais transparência às movimentações de recursos da União. Ao todo, foram 33 apresentações pagas com verbas distribuídas pelo Congresso Nacional, mas sem qualquer rastro na plataforma do governo federal.

Na prática, esse tipo de orçamento é enviado pelos parlamentares aos municípios, geralmente com atendimento prioritário para as bases eleitorais de cada deputado ou senador. Após registrar ciência daquele repasse, o gestor municipal cadastra a agência bancária onde pretende receber o recurso e a área onde planeja gastá-lo. Nesse momento, a prefeitura precisa apresentar um plano de trabalho ao governo, com os detalhes da aplicação do dinheiro.

No entanto, 33 shows realizados em Minas com emendas Pix nem sequer aparecem no Transferegov. Para a plataforma de cadastro das movimentações financeiras com recursos da União é como se essas apresentações não tivessem ocorrido. O Núcleo de Dados do Estado de Minas chegou a essas informações a partir do cruzamento entre bases do Congresso Nacional e do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG).

Somadas, as 33 apresentações artísticas torraram R$ 5,99 milhões em dinheiro público. Entre os shows sem qualquer rastro de transparência está o mais caro realizado no estado desde 2023 com emendas Pix: uma performance do cantor Wesley Safadão em Itabirinha, cidade de aproximadamente 10 mil habitantes, no Vale do Rio Doce.

O evento, ocorrido neste ano, custou R$ 855 mil aos cofres públicos. O município tem IDH de 0,653, de acordo com o Censo de 2010 (os dados do último Censo ainda não foram divulgados), índice que o coloca em patamar parecido com o de países como a República do Congo, Honduras e Guatemala.

A lista de shows bancados com emendas Pix, mas sem transparência, também conta com outros artistas de renome nacional. A dupla sertaneja Maiara e Maraísa soltou a voz em Gurinhatã, no Triângulo Mineiro, ao custo de R$ 604 mil no ano passado. O mesmo vale para duas apresentações em Sobrália, no Vale do Rio Doce: uma do cantor Leonardo (R$ 570 mil) e outra da artista Mari Fernandez (R$ 480 mil).

Em Sobrália, inclusive, há uma emenda já paga para financiamento de uma apresentação milionária no ano que vem, no 24º Festival do Leite da cidade. O sertanejo Gusttavo Lima, que chegou a anunciar pré-candidatura à Presidência, receberá R$ 1,1 milhão em emenda Pix para se apresentar no município de 5 mil habitantes. O IDH desta cidade é de 0,631, inferior ao de Itabirinha, o que a coloca em patamar parecido com os índices de Quênia, Gana e Timor-Leste.

Ponta da tabela

Gurinhatã lidera a lista das cidades que encaminharam emendas Pix para a realização de shows e não registraram qualquer prestação de contas no Transferegov. O município gastou R$ 1,5 milhão em apresentações sem transparência. Sobrália (R$ 1,3 milhão) e Itabirinha (R$ 1,1 milhão) também ultrapassam a linha do milhão.

Ainda estão na lista Prudente de Morais (R$ 815 mil), Poté (R$ 460 mil), Divino das Laranjeiras (R$ 248 mil), São Francisco (R$ 160 mil) e Riachinho (R$ 137 mil). Municípios que realizaram shows menores também não registraram planos de trabalho dos respectivos gastos na plataforma de monitoramento do governo, como Teófilo Otoni (R$ 59 mil), Alvinópolis (R$ 50 mil) e Consolação (R$ 39,6 mil).

A reportagem procurou todas as prefeituras citadas, mas somente Alvinópolis e Teófilo Otoni se posicionaram. Segundo a primeira gestão, a emenda Pix que financiou o show da dupla Don & Juan veio do deputado federal Stefano Aguiar (PSD). Segundo a administração, o plano de trabalho "se encontra em fase de preparação" para "fins de prestação de contas".

Já Teófilo Otoni informou que seus arquivos não apresentam "qualquer informação que justifique a origem do recurso", portanto será instaurado um processo administrativo para apuração do tema.

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Especialista analisa

Após levantar os dados, o EM ouviu o doutor em direito constitucional pela USP, Antonio Carlos de Freitas Jr, para obter resposta sobre um questionamento central: a falta de plano de trabalho específico para os shows pagos com emendas Pix é suficiente para motivar uma investigação contra os municípios?

“A simples ausência de detalhamento no Transferegov não é, por si só, suficiente para caracterizar desvio de recursos ou improbidade administrativa. No entanto, qualquer aplicação de verba pública, ainda que oriunda de emenda Pix, deve ser devidamente comprovada na prestação de contas. O prefeito permanece responsável pela legalidade, legitimidade e economicidade dos gastos, sob a fiscalização do Tribunal de Contas e do Ministério Público”, afirma o especialista.

Segundo Antonio Carlos de Freitas Jr, caso o desvio fique comprovado em uma eventual investigação, os gestores públicos podem ser responsabilizados. “Por exemplo, eles podem responder em ações de improbidade, devolução de recursos, aplicação de multas e até responsabilização criminal, conforme o caso”, diz.

Outros shows

Desde segunda-feira, o Núcleo de Dados do EM tem mostrado como as emendas Pix do Congresso Nacional e da Assembleia Legislativa financiaram centenas de shows em Minas Gerais desde 2023. Foram gastos R$ 34,9 milhões desse orçamento desde então, a partir de 251 depósitos diferentes para empresas ligadas a músicos. No entanto, vale ressaltar que algumas apresentações, pelo elevado cachê, são pagas de maneira parcelada, o que gera mais registros na base de dados.

Desse recurso, R$ 17,5 milhões vêm do Congresso Nacional, dos quais R$ 5,99 milhões apresentam problemas de cadastro no Transferegov, como informa esta reportagem – aproximadamente 34% da fatia que cabe aos deputados federais e senadores. Os outros R$ 17,4 milhões, que compõem o bolo total, têm assinatura dos titulares da Assembleia.

O envio de emendas para financiamento de shows não é ilegal, mas representa mau uso do dinheiro público, na avaliação do cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Ranulfo. “Esse mecanismo dá origem a uma série de distorções. Não estou falando de corrupção necessariamente, mas é de show que uma cidade pequena precisa?”, questiona.

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