
Relevante n�o � a iminente derrota de Trump, cuja formaliza��o ele atrasou ao pedir recontagem de votos nos estados com apura��o ainda em curso, mas a montanha de votos que recebeu.
Foram 70 milh�es, a segunda maior vota��o na hist�ria nos EUA, somente menor que a do pr�prio Biden, 74 milh�es. Tais n�meros demonstram a vitalidade da democracia nos EUA. A participa��o popular foi recorde num pa�s em que o voto n�o � obrigat�rio. O que explica essa mobiliza��o?
Do lado dos apoiadores de Biden – pol�tico moderado, habilidoso, cujos aparentes lapsos de mem�ria se devem n�o � idade, 78 anos (e Trump, com 74, tamb�m n�o � um garot�o), mas � gagueira revelada em momentos de tens�o –, est� claro o que reprovam.
Narcisista, Trump lhes deu raz�o com seu discurso golpista na quinta-feira. Depois de passar quatro anos zombando da democracia e incitando os piores instintos da sociedade, servindo de inspira��o a imitadores baratos aqui e no mundo, fez um pronunciamento criminoso como nunca um presidente fizera nos 240 anos de hist�ria dos EUA. “Eles est�o roubando”, disse.
Foi grave, levando as redes de TV a suspenderem a transmiss�o ao vivo, acompanhadas de desmentidos sobre o que disse. Ainda assim, faltam explica��es.
Como um pol�tico que sobreviveu a um impeachment, a dois div�rcios, seis concordatas, 26 acusa��es de ass�dio sexual, quatro mil a��es judiciais, um farsante inato, que � o que salta desta listagem de Scott Galloway, conhecido professor da Universidade de Nova York, p�de seduzir metade dos EUA?
“Mesmo se Trump vencer, graves amea�as jur�dicas e financeiras surgir�o em seu segundo mandato”, diz reportagem da revista New Yorker.
A explica��o da sedu��o de Trump, inclusive sobre minorias negras e latinas e n�o apenas o que a imprensa destaca – brancos com pouca instru��o, de �reas arruinadas pela migra��o industrial, sobretudo para a China, al�m de racistas e anti-imigrantes –, parece estar no que um grupo de intelectuais conservadores e senadores republicanos intuiu: a crescente pauperiza��o da classe m�dia e perda do poderio industrial.
A resposta seria uma coalis�o conservadora multi�tnica com a classe trabalhadora, a fam�lia e as comunidades.
Afli��es reais desdenhadas
Uma leitura mais objetiva sobre os motivos da ascens�o da extrema-direita e do populismo na Europa, nos EUA, no Brasil, implicando as vota��es n�o antecipadas pelas pesquisas, como o Brexit, a elei��o de personagens laterais como Trump e Bolsonaro e a onda negacionista da COVID-19, mostra que tais eventos est�o conectados.
Comum a eles � a estagna��o da economia, o desemprego estrutural, a incapacidade de os pa�ses desenvolvidos competirem com a China em ascens�o no desenvolvimento tecnol�gico, como se viu com o dom�nio de empresas chinesas no suprimento de vacinas e instrumentos de sa�de, tudo resultando em incertezas sociais e ressentimentos.
O comum �s democracias tem sido o deslocamento abrupto do eleitor de partidos tradicionais para novas lideran�as � direita e esquerda com vi�s autorit�rio, radicalizando a sociedade por meio das redes sociais e de �dios enrustidos contra minorias de g�nero, raciais.
� esse o desafio, ao mesmo tempo econ�mico, cultural e social.
Trump foi a resposta em 2016, renovada em 2020, a tais fen�menos n�o bem por ele, mas pelo alheamento da social-democracia a afli��es reais de amplas parcelas da sociedade. A quest�o � o que fazer.
Libert�rios na al�a de mira
Nos �ltimos dias, lemos e escutamos muito sobre como seria para o Brasil, em especial para Bolsonaro, entusiasta assumido de Trump, um eventual governo Biden mais preocupado com meio ambiente e com quest�es sociais, al�m de ant�tese do populismo, por exemplo.
A quest�o � mais ampla. Com certeza com Biden, mas tamb�m com novo governo Trump, as diretrizes da pol�tica econ�mica ser�o outras.
A China continuar� cercada, e com mais efic�cia por um governo Biden, j� comprometido em renovar as alian�as com a Europa e tradicionais aliados da �sia, al�m de trazer os EUA de volta ao Acordo de Paris e aos organismos multilaterais em geral. A economia ser� o piv�.
Se tiver maioria no Senado, j� que certo por ora � a manuten��o da C�mara, ele dever� inovar.
Se n�o tiver maioria no Senado, resta-lhe buscar algum arranjo com senadores republicanos que nunca foram “trumpistas” declarados nem aceitaram a influ�ncia do grupo com vi�s libert�rio aliado a Trump, os “fundamentalistas de mercado”, dizem.
� a� que est� a chance de Biden construir uma agenda bipartid�ria.
Um New Deal bipartid�rio?
O plano de tradi��o keynesiana que Biden patrocina tem liga��es com o conservadorismo renovador dos republicanos, muito mais avesso � influ�ncia dos interesses de Wall Street que os democratas. Ou ao credo neoliberal que domina a macroeconomia desde os anos 1980.
“O manual de menos impostos e livre com�rcio que domina a pol�tica econ�mica de centro-direita nos �ltimos 40 anos � inadequado para os desafios contempor�neos, e a f� do partido em uma estrat�gia do 'lado da oferta', por meio da qual a busca do lucro pelos donos de neg�cios e investidores leva automaticamente � prosperidade para os trabalhadores, provou-se equivocada”, disse Oren Cass, fundador do think tank American Compass, que est� na vanguarda conservadora.
Seus expoentes, como os senadores republicanos Marco Rubio, Josh Hawley, Mitt Romney e Tom Cotton, t�m projetos em comum com colegas democratas, defendem pol�tica industrial, Estado ativista, aumento de sal�rios.
Trata-se de princ�pios do New Deal do p�s-guerra, que tamb�m reverbera entre o n�cleo duro de Biden. Isso exige aten��o.
Se a macroeconomia transitar um pouco que seja do liberalismo e da ortodoxia dos mercados para um novo consenso keynesianista, haver� uma revolu��o com alcance global. E com �bvio impacto no Brasil.