
Nasci em 1975, naquele ano o Brasil ainda vivia uma ditadura militar. Quando eu era crian�a, n�o entendia muito bem o que significava isso, mas me lembro bem do programa A semana do presidente, que mostrava a semana do ent�o presidente Jo�o Figueiredo.
Quando eu tinha 9 anos, lembro-me das Diretas j�; lembro-me, em 1985, de quando terminou a ditadura, quando Tancredo Neves morreu antes de tomar posse. Meu professor, Lucas, falando para a turma que t�nhamos que nos lembrar daquele dia, pois era um marco na hist�ria do Brasil.
Eu n�o entendia como as pessoas tinham deixado a ditadura acontecer. Por que nunca fizeram nada? Quem fazia era preso. Mas se voc� n�o fizesse nada errado, ficava tudo bem. S� era preso quem queria ter liberdade de mais.
Quando eu era crian�a, isso fez algum sentido. Estava tudo bem conosco. Mas depois fui vendo que esse errado � muito subjetivo e tem muita rela��o com as viv�ncias de cada um.
Naquele tempo, o certo era ser conservador, e era errado ser progressista. Ent�o tudo bem, nasci em uma fam�lia conservadora.
Naquele tempo, era errado ser gay, mas tudo bem, a gente n�o era, e quem fosse, era s� ficar no arm�rio e fingir bem.
Era errado mulher pedir o div�rcio, mesmo se apanhasse do marido ou sofresse outros tipos de viol�ncia dom�stica. Nas fam�lias de bem, s� o marido tem voz. N�o queira ter os mesmos direitos se voc� for a esposa ou filho.
Errado ter filho deficiente e tentar inclu�-lo na sociedade, tranca em casa. Esconde. “Ningu�m � obrigado a conviver com aberra��es.”
Era errado ter liberdade. Era errado ter vez. Era errado reclamar do presidente. Era errado reclamar da infla��o descontrolada. Era errado questionar.
Liberdade de imprensa? Errado. Haja receita de bolo para preencher o lugar das mat�rias censuradas.
Viva a censura! A gente s� precisa ter acesso �s informa��es que eles acham convenientes. Qual o mal nisso? Vamos ser positivos! Vamos ver o lado bom das coisas. Deixe as Marias e as Clarisses chorando, elas n�o sabem ver o lado bom das coisas.
Eu vi as pessoas pedindo Diretas j�.
Eu vi a transi��o para a democracia. A nossa Constitui��o. Eu era muito nova, mas aquilo me parecia t�o certo.
Assusto-me ao ver agora, nessa democracia t�o fr�gil, tantos anos depois, as pessoas se apegarem a um passado ideal que nunca existiu.
A nega��o da ditadura. A apologia � tortura. E ningu�m faz nada.
Ou pior, tem gente que aplaude. Tem gente que se orgulha de ser terrivelmente crist�o e, incoerentemente, conivente com ideais eugenistas.
Eu tenho inveja das pessoas que ainda conseguem ter esse pensamento juvenil de um her�i que nos salvar� de um comunismo que nunca houve. De uma f� crist� que acha certo armar a popula��o.
Inveja que quem acredita mais no capital que no amor ao pr�ximo.
Inveja da falta de senso cr�tico.
Inveja de quem vai protestar na rua pela volta de um sistema que a impe�a de protestar.
Inveja da luta para perder direitos.
Da cren�a na falta de liberdade.
Na necessidade de ter algu�m para obedecer. D� muito trabalho pensar por si.
Hoje eu n�o tenho f� em mais nada. Em mais ningu�m.
Hoje eu temo pelo futuro do meu filho, e de todos os outros filhos que nasceram em um pa�s livre, que ainda aprendia a viver uma democracia. Mas que come�ava a dar voz aos exclu�dos. �s mulheres, aos negros, � comunidade LGBTi, aos deficientes. Come�ava, muito lentamente, mas come�ava. Engatinh�vamos e n�o querem que a gente comece a caminhar.
Hoje, s� tenho uma esperan�a. E essa esperan�a s� pode ser o fundo do po�o. A esperan�a num v�rus incontrol�vel que mata, e que muitos insistem em negar. Esperan�a na dor.
Esperan�a de que um v�rus mostre a n�s os verdadeiros valores. Que ele nos ensine que podemos caminhar lado a lado. Que precisamos ser solid�rios e emp�ticos. Que precisamos validar a dor que n�o � nossa.
Meu filho � homem e branco. O lugar dele est� garantido. Mas eu n�o quero que ele habite um pa�s onde s� homens brancos tenham voz. Quero que ela aprenda a dividir o espa�o, que hoje ele tem garantido, com os invis�veis.
Hoje eu nem queria estar viva. Mas me seguro na minha responsabilidade de ser m�e de uma pessoinha que ainda precisa de mim. Me prendo a essa fr�gil esperan�a de ser 70% dos que n�o se sentem representados. De n�o estar sozinha.
“A esperan�a equilibrista/Sabe que o show de todo artista/Tem que continuar” – Aldir Blanc/Jo�o Bosco.