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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

Nikolas Ferreira: v�tima da sociedade

Antes de questionar o que o parlamentar faz ou diz, � preciso buscar entender o porqu� das suas falas e a��es.


22/03/2023 06:00

Bandeira com as cores do arco-íris tremulando
Toda a conduta do Deputado Nikolas Ferreira apenas suscita a d�vida do porqu� de tanto inc�modo com o outro (foto: Public Domain Pictures)
 
Por Hudson Cambraia

Estamos relativamente pr�ximos do dia internacional da visibilidade trans, comemorado no dia 31 de mar�o. A data em quest�o foi idealizada em 2009 pela ativista Rachel Crandall-Crocker, atuante em Michigan, EUA. 

A data tem finalidade informativa e educativa, no sentido de conscientizar para o fato de que as pessoas transg�nero existem e que o respeito a elas faz parte do grande tema relativo ao respeito � dignidade humana. Parece simples, mas a necessidade de uma data � indicativa de que a quest�o � mais complexa do que parece.

Um par�ntesis necess�rio: tudo que precisa de data � porque tem um problema. Repara bem e voc� vai perceber que todas as datas “dia de X” escondem uma montanha de complexidades e desrespeitos hist�ricos e cont�nuos. Basta pensar no dia da mulher, dia do �ndio, dia da consci�ncia negra, dia nacional das tradi��es das ra�zes de matrizes africanas e na��es do Candombl� (que por sinal, foi ontem, dia 21/03) e etc. A lista vai longe... mas em todos os casos o padr�o � o mesmo e vale a regra: se tem placa, tem hist�ria. E, no caso, a hist�ria nunca � boa.

Retomando: Neste cen�rio, � preciso observar que o Deputado Federal Nikolas Ferreira � um dos grandes expoentes da parcela da sociedade que, abertamente, combate toda e qualquer espa�o de visibilidade, valoriza��o e respeito � comunidade LGBTQIA+. Recentemente, houve grande pol�mica no dia da mulher quando o parlamentar subiu ao parlat�rio da C�mara dos Deputados para discursar contra a comunidade transg�nero sob o argumento de defesa das mulheres “de verdade”.

Imediatamente houve grande rea��o, especialmente liderada por representantes da esquerda pol�tica, para condenar com veem�ncia a a��o do parlamentar. Houve at� representa��o no Conselho de �tica da C�mara e a��o perante o Supremo Tribunal Federal, ao argumento da pr�tica do crime de transfobia.

Mais um par�ntesis necess�rio: essas express�es transfobia, homofobia, gordofobia e etc est�o ridiculamente erradas e eu n�o entendo o porqu� de ningu�m nunca ter questionado isso. O sufixo “fobia” est� vinculado a uma condi��o cl�nica relativa a um medo generalizado e paralisante relativo a alguma coisa. As crian�as n�o v�o lembrar, mas na d�cada de 1990 fazia sucesso na sess�o da tarde o filme “Aracnofobia”, que tratava de uma invas�o maluca de aranhas mortais e que dava um baita medo.

Logo, fobia � sin�nimo de medo e, definitivamente, as condutas classificadas como transfobia, homofobia e etc n�o possuem qualquer rela��o de medo. Entretanto, considerando que muito provavelmente o impacto deste questionamento ser� nenhum, sigamos com a nomenclatura “errada” para manter o entendimento.

Retomando: antes de entrar no m�rito da an�lise da conduta do parlamentar, � preciso destacar que os representantes da esquerda demonstraram uma incoer�ncia na rea��o � conduta do Deputado que merece ser questionada. Isto porque, historicamente, os representantes da esquerda pol�tica t�m a tend�ncia de avaliar condutas tidas como criminosas a partir da perspectiva do autor da conduta, como uma forma de humanizar a resposta estatal.

Assim, um furto n�o pode ser reduzido ao simplismo de se analisar que algu�m subtraiu, dolosamente, para si ou para outrem, coisa alheia m�vel, como disp�e o art. 155 do C�digo Penal. Para esse vi�s, � preciso entender que, antes da an�lise da subtra��o, deve-se observar a an�lise da realidade social do agente, a desigualdade social em que o mesmo est� inserido, a sua vulnerabilidade social e tantos outros itens.

N�o por outro motivo, � muito bem aceita e circula com facilidade nos meios jur�dico-acad�micos a teoria da coculpabilidade, de autoria do jurista Eug�nio Raul Zaffaroni (que foi juiz argentino, membro da Suprema Corte Argentina, mas que conhece mais de Direito Penal e Processual Penal Brasileiro que muito jurista por estas terras...). E o que diz esta teoria da coculpabilidade? Em s�ntese (e j� pe�o desculpas pela singeleza aos preciosistas criminalistas de plant�o), a teoria estabelece que o correto, quando da aplica��o de uma pena criminal, � avaliar se a culpa do agente criminoso n�o deveria ser dividida com o Estado e a sociedade.

Da� o prefixo “co”, que significa “junto”, de modo que o Estado e a Sociedade seriam culpados juntamente com o agente criminoso pela sua neglig�ncia em face da pessoa (que culminou com a pr�tica do ato pun�vel). Neste contexto, se uma pessoa vulner�vel, por qualquer raz�o, agiu de forma il�cita porque o Estado e a Sociedade falharam em receber esta pessoa no meio social, ent�o a pena deveria ser dividida entre o agente criminoso e o Estado.

Terceiro par�ntesis: viu como os prefixos, sufixos e radicais s�o importantes? Usei essa teoria de prop�sito s� para falar desse prefixo. H� outras t�o legais quanto, mas as outras n�o t�m um prefixo para eu validar o questionamento acima. Al�m disso, o Zaffaroni � muito legal, vale a pena conhecer. 

Retomando: E se esta premissa � verdadeira, por uma quest�o de coer�ncia, n�o � poss�vel escolher quem vai ter a sua conduta avaliada a partir da sua realidade social e quem n�o vai. At� porque fazer isso implicaria na incoer�ncia de dizer que existem seres humanos menos protegidos pelo direito do que outros, o que n�o faz o menor sentido.

Obviamente, a pr�pria teoria estabelece que o grau de coculpabilidade do Estado e da sociedade vai variar em cada caso. N�o � sempre 50/50! Pode ser 70/30, 80/20 ou 100/0. O fato � que essa perspectiva antropol�gica deve sempre ingressar na realidade do julgador.

E como aqui estamos falando da interface entre direito e pol�tica (aquela zona gris onde ningu�m se entende), � preciso ponderar que este julgador tanto ser� o representante do Poder Judici�rio quanto todos os demais atores pol�ticos quando do julgamento pol�tico do Deputado.

E � a� que entra a t�nica do t�tulo deste singelo pensamento... Antes de analisar o que o Deputado fez, � preciso entender e buscar compreender quem o Deputado �. Em uma r�pida pesquisa sobre manifesta��es do pr�prio, � poss�vel perceber que o Deputado nasceu e cresceu em um ambiente crist�o de grande rigidez.

Nesses ambientes, a realidade � exatamente como o Deputado a exp�e: a Igreja e a B�blia s�o interpretadas sem contextualiza��o hist�rica (isto �, considerando o texto como atemporal) e os dogmas da Igreja Cat�lica ortodoxa s�o transpostos de forma ainda mais r�gida para par�metros protestantes.

Curiosamente, o Deputado � integrante da Igreja Bola de Neve (sim, esse � o nome da agremia��o religiosa), que tem um visual “descolado” e uma ambienta��o toda pensada para o “agrado” do jovem. Entretanto, as premissas religiosas s�o t�o flex�veis quanto as da Opus Dei, de modo que � preciso compreender a realidade com que o Deputado cresceu e convive at� hoje.

Al�m disso, em mais de uma oportunidade, o Deputado declarou expressamente que n�o tem vida sexual ativa, reservando-se ao grupo de pessoas que opta por ter rela��es sexuais apenas ap�s a celebra��o do casamento. Ou seja, h� um franco rep�dio a qualquer manifesta��o de liberdade sexual como sin�nimo de pecado. Este contexto � ainda permeado pela ideia de que o conceito de fam�lia � r�gido, no sentido de que a fam�lia � a express�o e venera��o da sagrada fam�lia, composta por Jos�, Maria e Jesus.

Nesta perspectiva, a sagrada fam�lia � �nica e formada por seres desiguais, mas todos santos entre si, de modo que a todos se deve rever�ncia (centralizada, obviamente, na figura de Jesus). A partir desta l�gica, tem-se que a altera��o desta modelagem de fam�lia �, em �ltimo caso, a subvers�o ou viola��o do legado modelar deixado pela sagrada fam�lia, o que implica em pecado e afronta ao pr�prio Deus.

Esse modo de interpretar e viver no mundo ainda implica na impossibilidade de igualdade entre esses membros da fam�lia. A igualdade entre homem e mulher aqui implica na viola��o das fun��es sagradas atribu�das a cada um dos seus membros, o que torna explic�vel a compreens�o sobre a necessidade de submiss�o da mulher ao marido e o absoluto rep�dio a toda a pauta feminista.

Veja-se que, ao fim, o Deputado Nikolas Ferreira � coerente com o mundo que ele cresceu e vive. Ele expressa tudo aquilo que ele �, goste voc� ou n�o dele e do que ele expressa. 

Voc� deve estar pensando agora: e o que faz dele v�tima, como eu sugeri no t�tulo do texto?

E eu te respondo: ele � v�tima da falta de adequada informa��o social de que o mundo n�o � uma bolha uniforme e monocrom�tica.

Ele � v�tima da nossa incapacidade de entender que o mundo � imensamente mais complexo do que nosso microcosmo limitado � capaz de absorver. Ele � v�tima da nossa incapacidade de furar bolhas e fazer o que Jesus Cristo fez na sua passagem pela terra: ir ao encontro do diferente, do que me assusta, do que causa revolta, do disforme, do doente, do marginal e do degredado. 

Ele � v�tima de uma sociedade que pauta a conduta do outro pela sua o tempo inteiro e quer que a sociedade inteira, em toda a sua complexidade, seja reduzida � sua pr�pria vis�o de mundo. Somos um grupamento de pessoas que n�o quer conviver no mundo, mas sim quer que o mundo se curve e se dobre � pr�pria vontade para que o mundo inteiro caiba em si.

Sim, estou falando de todos n�s. Eu, voc� e o Deputado somos incapazes de entender, de forma natural, que o mundo n�o � como eu quero e as pessoas n�o v�o agir ou ser no mundo como eu gostaria, mas sim como elas mesmos querem. Eu, voc� e o Deputado somos incapazes de reconhecer a nossa pequenez no mundo e agir de tal forma a criar mecanismos de conviv�ncia entre o que me apraz e o que n�o me apraz.

Eu, voc� e o Deputado somos v�timas de uma forma manique�sta de pensar que s� admite a exist�ncia de certo e errado, bom e mau, santo e pecador, sem entender que a vida � muito mais complicada do que uma chave que se vira para um lado ou para o outro. Antes de condenar o Deputado, precisamos entender qual foi o contexto que fez com que ele tivesse voz.

E ouso dizer que o contexto � a inexperi�ncia do outro. Ouso dizer que o Deputado nunca teve a oportunidade de conviver com um membro da comunidade LGBTQIA para descobrir (e seria com grata surpresa) que s�o pessoas comuns, com interesses comuns e sem absolutamente nada de diferente dele mesmo. � gente que estuda, trabalha, paga boletos e reclama do governo.

Ouso dizer que ningu�m (ou muito poucas pessoas) da comunidade LGBTQIA se disporia a conviver com o Deputado para conhece-lo por detr�s das c�meras, fora do cen�rio de embate e do like, desarmado (em todos os sentidos), para descobrir que talvez ele seja muito menos do que a gente imagina. Ouso dizer que talvez ele (como todos n�s) seja apenas desinformado do outro e se alimenta (e alimenta a pr�pria realidade) a partir da repeti��o da vis�o da pr�pria bolha.

E sabe o que a gente faz com o que n�o conhece? Desumaniza, afasta, agride e mata. Os Europeus fizeram isso nas suas col�nias; n�s fizemos isso com nossos ind�genas; n�s ainda fazemos isso com a comunidade LGBTQIA . N�o tem diferen�a, a n�o ser a do contexto hist�rico, pois a t�nica � sempre a mesma: o que se desconhece �, automaticamente, classificado como perigoso e digno de ser repelido.
 
A diferen�a agride, em �ltima inst�ncia, o conforto e a seguran�a da sensa��o de estabilidade e perman�ncia que a nossa pr�pria realidade alimenta em nossa mente. Saber que algu�m pode ser diferente exp�e a minha pr�pria limita��o de ser algo diferente do que sou hoje. E isso assusta. As vezes apavora, mormente quando n�o se tem total seguran�a sobre o que se � no mundo. 

A agressividade das manifesta��es do Deputado � muito t�pica desse desconhecer. E a� eu te convido a fazer esse racioc�nio as avessas. Ou seja, qual comportamento seu replica o que o Deputado fez? � sua vis�o sobre o morador do interior? Sobre bolsominion? Ou quem sabe sobre o empres�rio? Talvez sobre a Pol�cia? V� saber n�o � o PT? Ou qualquer pol�tico de forma generalizada! Qual � o seu objeto de voracidade ao sabor “Nikolas Ferreira”?

O Deputado � s� um sintoma de algo muito maior e muito mais grave do que o Deputado em si. � preciso entender que ele n�o � ele, mas um grupo imenso de pessoas que o elegeu e que est�o por a� ao nosso lado e muito provavelmente pensam e agem como ele (s� que sem aparecer na televis�o).

Talvez melhor do que classificar o Deputado como inimigo p�blico seja olhar para o lado e criar o h�bito de observar quantas vezes fazemos exatamente como ele; quantas pessoas ao nosso redor fazem exatamente como ele e a gente n�o se d� (e n�o d� ao outro) a oportunidade de superar a ignor�ncia do desconhecido. 

A pena do Deputado deve ser abrandada porque a sociedade precisa se responsabilizar por n�o ter ensinado a ele, e �s pessoas que concordam com ele, que todos (sem exce��o) t�m o direito (assim como ele mesmo) de ser e viver no mundo como acham correto. E se o modo de vida dele � l�cito (e indubitavelmente �), tamb�m � preciso que fique claro para ele que suas premissas n�o s�o �nicas e que n�o � poss�vel impor ao outro (que � t�o livre quanto o Deputado) que se paute e se dobre ao seu modo de vida.

O il�cito do Deputado (e eu, particularmente, entendo que h� ilicitude) n�o est� no desprezo a um modo de vida diferente do seu. Precisamos reconhecer que todo mundo faz isso. Inclusive eu fa�o isso em rela��o ao Deputado e desprezo de forma veemente o modo de vida dele.

A quest�o � que o meu desprezo n�o se convola em uma tentativa de impor ao Deputado o meu modo de vida, de tal forma que me reservo ao direito de discordar e n�o compactuar, reconhecendo que ele tem o direito e a liberdade de viver como entende justo e adequado. Por isso, o il�cito dele est� na tentativa de impor ao outro a sua vis�o de mundo, o seu modo de vida e a sua perspectiva de vida boa.

A vida pode ser boa de muitas formas... de tantas formas que � imposs�vel a uma pessoa sequer conhecer todas as possibilidades que o mundo entrega em uma breve vida humana. � preciso respeitar as diverg�ncias e entender que cabe a cada um de n�s vigiar com cautela nossos julgamentos para evitar fazer a mesma coisa que julgamos combater na conduta do outro.

Ao Deputado, espero que entenda, com a rea��o causada, que o Brasil � muito maior do que seus eleitores e suas ideias. Espero que perceba que s� � poss�vel conviver (do prefixo “co” que significa “junto”, logo “viver junto”) pacificamente quando a exist�ncia do outro for respeitada como ela � e n�o como eu quero que ela seja. E h� espa�o para todos, basta que a gente entenda que os meus espa�os e a minha vida n�o precisam ser alterados ou eliminados para que a sua seja vi�vel. 

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