(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

A 'liberta��o' africana e o paradoxo da esquerda brasileira

As �ltimas not�cias sobre a regi�o do Sahel mostraram como h� falta de reflex�o sobre quest�es fundamentais


30/08/2023 06:00 - atualizado 30/08/2023 10:10
1537

quatro militares em pé, sendo o do centro em posição de sentido e os demais segurando armamentos, com fardas militares e rosto cobertos.
O presidente "interino" de Burkina Faso, Ibrahim Traor� (foto: Getty Images)

 

Recentemente t�m aparecido muitas not�cias sobre manifesta��es de “l�deres” de alguns pa�ses africanos, especialmente da regi�o do Sahel, como Mali, Burkina Faso, Sud�o e, mais recentemente, o N�ger. Tais manifesta��es s�o, essencialmente, sobre a necessidade de liberta��o da �frica em geral da depend�ncia de pa�ses europeus e EUA, conhecida como neocolonialismo, com um apelo forte �s riquezas do continente e � sua capacidade de se posicionar de forma aut�noma no plano global.

 

Par�ntesis 1: Sahel significa “borda” ou “margem”. E essa “borda” � a borda do deserto. Ao contr�rio do que algumas pessoas pensam, s� o norte da �frica que � des�rtico. Abaixo da borda (o Sahel) o continente tem clima tropical muito semelhante ao nosso, o que pode ser comprovado por uma olhada sorrateira no mapa.

 

Voltando: a pauta sobre o neocolonialismo do continente africano � muito relevante e precisa ser conhecida e divulgada. Eu n�o quero tratar disso aqui, mas de algo adjacente. Entretanto, n�o d� para simplesmente pular uma explica��o breve, j� que eu ando descobrindo que este tema � um ilustre desconhecido de muita gente.

 

Pois bem, no mesmo contexto em que Portugal ocupou/invadiu o Brasil e a Espanha ocupou/invadiu o restante do continente latino-americano, a Europa em geral estava fazendo a mesma coisa na �frica. A Inglaterra (de forma exponencial), Portugal (especialmente na costa oeste), Fran�a (em larga medida), Holanda (tamb�m de forma intensa, mas por meios mais grotescos) e Alemanha (em menor escala) ocuparam o territ�rio africano, dividindo-o de acordo com os seus interesses.

 

Essa ocupa��o estava umbilicalmente ligada � consolida��o dos Estados Capitalistas europeus, capitaneados pela Inglaterra, que al�m de ter iniciado esse processo primeiro (com a Revolu��o Gloriosa) ainda detinha praticamente o monop�lio do mar. N�o se pode esquecer que a hegemonia brit�nica se d� ap�s vencer a Holanda na guerra iniciada como retalia��o � institui��o das Lex Mercatoria, que nada mais eram do que legisla��es inglesas que estabeleciam o monop�lio das empresas e navios ingleses no transporte mar�timo mundial.

 

A ideia era ampliar os territ�rios de des�gue da produ��o que, pela primeira vez na hist�ria, se avolumava e, ao mesmo tempo, era preciso de cada vez mais mat�ria prima para dar conta das demandas industriais que se especializavam. Neste cen�rio, col�nias se mostram o neg�cio “ideal”, pois s�o obrigadas a comprar, pelo pre�o imposto, os produtos industrializados da metr�pole (e proibidas de comprar de outras) e a vender sua mat�ria-prima exclusivamente para a metr�pole, pelo pre�o que a metr�pole quiser pagar.

 

Acho que j� deu para entender porque a Europa enriqueceu tanto n�... Pois �. N�o por outro motivo, voc� j� deve ter percebido que os pa�ses africanos t�m muitas fronteiras retas, assim em linha mesmo, o que n�o existe na Europa. O motivo � simples: essas fronteiras foram estabelecidas em um caf� de Paris, vai por mim.

 

Par�ntesis 2:

 

a) Falam ingl�s oficial: a �frica do Sul, Botsuana, Lesoto, Nam�bia, Essuat�ni, Camar�es, G�mbia, Gana, Lib�ria, Nig�ria, Serra Leoa, Malawi, Maur�cia, Ruanda, Sud�o do Sul, Tanz�nia, Uganda, Z�mbia e Zimb�bue. Ou seja, 19 pa�ses.

 

b) Falam portugu�s oficial: Angola, Guin� Equatorial, S�o Tom� e Pr�ncipe, Cabo Verde, Guin�-Bissau (que n�o � a mesma coisa que Guin�) e Mo�ambique. Ou seja, 6 pa�ses.

 

c) Falam franc�s oficial: Camar�es, Chade, Gab�o, Guin� Equatorial, Rep�blica Centro Africana, Rep�blica do Congo, Rep�blica Democr�tica do Congo (sim, � um pa�s diferente), Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guin� (que n�o � a mesma coisa que Guin�-Bissau), Mali, N�ger (que n�o � a mesma coisa que Nig�ria), Senegal, Togo, Burundi, Comores (que n�o � a mesma coisa que Camar�es), Djibuti, Madag�scar e Ruanda. Ou seja, 20 pa�ses.

 

S� para esclarecer, a �frica tem 54 pa�ses. Desses 54 pa�ses, 45 t�m hoje, como l�ngua oficial, a l�ngua de algum (ou mais de um) dos 3 (TR�S!) colonizadores europeus. � s� para voc� entender a dimens�o desse neg�cio.

 

Voltando: Obviamente que esse equil�brio de for�as sofreria continuadas resist�ncias, dado que � muito dif�cil manter uma regi�o inteira subjugada o tempo todo (e voc� deve imaginar quanto respeito pelos direitos humanos pairava nessas incurs�es colonizadoras). Tamb�m em raz�o disso, a d�cada de 1960 � representativa de uma ebuli��o de independ�ncias de diversos pa�ses africanos. E desde ent�o, at� os anos 2000, uma a uma as col�nias foram se tornando independentes.

 

Mas voc� acha mesmo que as col�nias “ca�ram a ficha” de que n�o era legal ficar predando o quintal alheio assim e tiraram o time de campo? Seria ingenuidade pensar assim e eu espero muito que ningu�m chegue a tanto.

 

Esses pa�ses se tornaram independentes das metr�poles no plano jur�dico, mas mantiveram total depend�ncia no plano econ�mico. A Europa (especialmente a Inglaterra e a Fran�a) possui in�meros tratados de exclusividade comercial e mant�m esses pa�ses dependentes dos seus sistemas. S� para ter uma ideia, a Fran�a produz a moeda de dezenas de pa�ses africanos.

 

Junte-se neste palco os EUA que, ao assumirem sua hegemonia ap�s a II Guerra Mundial, usou muito do solo africano para consolidar o seu poder no palco da Guerra Fria. Neste cen�rio, como aconteceu muito pelas bandas de c�, criou-se a depend�ncia de produ��o de mat�rias-primas para exportar para as metr�poles e o confinamento � atividade de importa��o de produtos industrializados das metr�poles.

 

� isso que se chama neocolonialismo. Essa volta inteira foi para chegar at� aqui. Os pa�ses s�o juridicamente livres, mas seu passado consolidou uma depend�ncia econ�mica, pois passaram a sua hist�ria impedidos de se industrializar e desenvolver parque tecnol�gico. Em raz�o disso, a sua economia fica completamente � merc� de movimentos e demandas externas, com um desequil�brio absurdo da balan�a que vende barato e compra caro.

 

Par�ntesis 3: se o agro no Brasil � pop e “carrega” o pa�s nas costas (como eu sei que voc� j� ouviu), � porque n�s fomos impedidos de nos industrializar e desenvolver, porque interessa para os pa�ses “desenvolvidos” a produ��o de comida para os alimentar e mat�ria prima (tipo min�rio) para a sua ind�stria. Exemplo maior disso � a Su��a, que � terceira maior produtora de caf� do planeta sem ter um �nico p� de caf� plantado. Adivinha de quem ela compra barato e para quem ela vende caro em mini c�psulas?

 

Voltando: Feita essa volta no planeta em poucas linhas, d� para perceber que esse discurso � louv�vel e que todos os pa�ses que se enquadram nesta situa��o realmente precisam pensar a sua posi��o de submiss�o no mundo e buscar meios de melhorar as pr�prias condi��es. Isso vale para n�s e vale tamb�m para todos os pa�ses da �frica.

 

Ent�o voc� deve estar se perguntando: qual a l�gica do t�tulo deste texto que at� agora n�o fez sentido algum? 

 

Bom, depois de muito enrolar, eu vou tentar amarrar este neg�cio. Voltando l� no primeiro par�grafo do texto: sobre as manifesta��es de l�deres de pa�ses africanos com falas contundentes sobre a necessidade de independ�ncia da �frica e supera��o do neocolonialismo. Se n�o era antes, agora est� claro qual � o lugar de fala destas pessoas.

 

V�rios setores da esquerda brasileira repercutiram essas falas com contund�ncia e palminhas, bradando pela necessidade de quebra da hegemonia das metr�poles e pela insurg�ncia contra a opress�o ocidental. O discurso � t�pico e nada novo.

 

S� tem um detalhe: esses l�deres s�o militares que praticaram golpes de Estado, depondo os civis democraticamente eleitos pelo voto popular. � assim no N�ger (golpe em 2023), � assim em Burkina Faso (golpe em 2022), � assim tamb�m no Mali (golpe em 2021) e foi assim no Sud�o (golpe em 2021). O principal deles � o Ibrahim Traor�, oficial militar que “lidera” interinamente Burkina Faso desde o golpe de Estado de 30 de setembro de 2022, que derrubou o presidente Paul-Henri Sandaogo Damiba.

 

Voc� tamb�m j� deu tela azul ou estou sozinho nessa? Ent�o quer dizer que um grupo militar que tomou o poder � for�a, destituindo sem qualquer legitimidade um representante eleito, merece aplausos s� porque diz o que eu quero ouvir? Mas n�o � exatamente isso que, aqui no nosso quintal, grita-se ser um absurdo a ser evitado sob qualquer circunst�ncia, como elemento fundamental para a garantia da democracia? 

 

N�o sei para voc�, mas para mim tem um paradoxo bizarro nesse movimento! Era para todo o setor da esquerda estar aos berros sustentando que o discurso de independ�ncia dos pa�ses africanos s� teria legitimidade se fosse travado pelo seu povo e pelos seus representantes eleitos e n�o por militares golpistas. E nem se pode falar em desconhecimento desse “fato”, pois esses l�deres aparecem em suas manifesta��es fardados, para n�o ter a menor d�vida de que s�o militares no poder.

 

Ou seja, esse aplauso da esquerda brasileira �, para dizer o m�nimo, muito incoerente. E diz muito contra quem o faz, pois d� a impress�o de que o golpe militar em si n�o � o problema, mas o discurso e o “lado” que o militar est�. 

 

Olhando de um lado para o outro, nesta terra em que parece que quase todo mundo vive em uma eterna torcida de futebol apaixonada (e, portanto, cega), a coer�ncia n�o � um elemento muito importante para pensar, aplaudir e criticar. Afinal, as conversas sempre encerram com um contundente “mas e o PT?” ou “mas e as joias?”, como se isso resolvesse o nosso problema.


*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)