Por Tamara Santos
O carnaval na Marqu�s Sapuca� � um acontecimento! O Rio de Janeiro para, assim como o Brasil, na expectativa de conferir as escolas de samba do grupo especial na avenida com os seus sambas-enredos, baterias, alegorias, fantasias e, claro, com muito samba no p�.
Mas, esse ano a como��o foi diferente, isto porque os desfiles, em sua maioria, abordaram as Religi�es de Matriz Africana, causando um verdadeiro burburinho nas redes sociais. Para se ter uma ideia, a Unidos do Viradouro, apresentou o samba enredo “Malunguinho: O Mensageiro de Tr�s Mundos”, ao contar a hist�ria da entidade afro-ind�gena que se manifesta como Caboclo, Mestre e Exu/Trunqueiro.
A Unidos da Tijuca apresentou o enredo “Logun-Ed�: Santo Menino Que Velho Respeita”, que contou a hist�ria do orix� filho de Oxum e Ox�ssi representado pelas mesmas cores que a escola: amarelo e azul.
A Beija-Flor de Nil�polis, vencedora do carnaval, homenageou La�la, um de seus baluartes com “La�la de todos os santos, La�la de todos os Sambas”, buscando a religiosidade e a f� em Xang�, al�m de se despedir de Neguinho da Beija-Flor, que cantou o seu �ltimo samba-enredo pela escola.
J� a Salgueiro, entrou na avenida com o corpo fechado, explorando a rela��o humana e a busca por prote��o espiritual. Por outro lado, a Unidos de Vila Isabel, apresentou o Diabo em sua comiss�o de frente, interpretado pelo ator Jos� Loreto, com o samba enredo “Quanto mais eu rezo, mais assombra��o aparece”.
Mas, por que isso � relevante? Por que isso incomoda?
O termo macumba � jogado de forma pejorativa para atacar essas manifesta��es religiosas. Mas, essa autora faz quest�o de explicar para aqueles que usam o termo de forma indevida, que a macumba t�o citada, nada mais � do que um instrumento africano que promove o batuque, batuque esse carregado de ancestralidade.
As Religi�es de Matriz Africana, como o Candombl� e a Umbanda, possuem a sua origem desde a chegada e instala��o dos portugueses no Brasil do Brasil. A popula��o negra j� chegava ao Brasil despossu�das de qualquer direito. Eles vinham em navios negreiros com popula��es de diversas etnias, na��es, povos, n�o se compondo numa identidade �nica. Os africanos eram misturados para chegarem � Col�nia em estado de grande aliena��o e viverem aqui em estado de subjuga��o permanente.
As suas ra�zes religiosas eram mitigadas. A cristandade medieval obrigava os africanos aqui escravizados a cumprirem as obriga��es oficiais do culto, que era uma forma de controle p�blico da f� e de desconstruir suas refer�ncias culturais. Mas, mesmo diante da diversidade imposta, eles conseguiram manter muitos costumes, tradi��es e ritos religiosos. Isto �, os escravizados sempre resistiram com garra e for�a todas as imposi��es do Estado/Igreja, por meio do sincretismo religioso.
Pois bem, como � poss�vel que em 2025 ainda seja necess�rio buscar recursos para justificar a manifesta��o da f�? Como � poss�vel as pessoas atacarem uma representatividade de f�, que sequer conhecem?
Presenciamos rotineiramente a tristeza, a dor, a decep��o de um povo que foi arrancando de sua cultura, que n�o pode cultuar a sua religi�o, e v� o seu terreiro destru�do, sem compreender o motivo de tamanho �dio!
O que diz a Lei
A Constitui��o de 1988, tamb�m chamada de Constitui��o Cidad�, promoveu em seu artigo 5º, a consolida��o de alguns diretos fundamentais para a vida. E mais, mencionado dispositivo estabelece os direitos que devem ser tomados como princ�pios gerais (liberdade, vida, igualdade etc.) para o entendimento da norma constitucional e infraconstitucional. E, embora o seu pre�mbulo mencione Deus, o artigo 5º, em seus incisos VI a VIII, asseguram a liberdade religiosa.
� isso mesmo que voc� leu... a liberdade religiosa � direito fundamental do indiv�duo. Temos aqui o reconhecimento normativo e constitucional da liberdade religiosa, sendo certo que ela representa um grande avan�o que consolida direitos fundamentais.
Nesse giro, um ponto que merece destaque � que a Constitui��o da Rep�blica de 1988, nos artigos 215 e 216, reconhece as manifesta��es afro-brasileiras pelo Estado. Tais artigos foram inclu�dos pela Emenda Constitucional n°. 48/2005, sob a justificativa de que a cultura n�o s� � elemento definidor da identidade nacional, mas tamb�m vetor indispens�vel ao desenvolvimento socioecon�mico do pa�s.
Ainda com o objetivo de combater a discrimina��o racial e as desigualdades raciais que atingem os afrodescendentes, em 2010 foi promulgada a Lei nº. 12.288, o Estatuto da Igualdade Racial. Entre outros objetivos, esse Estatuto adota como diretriz pol�tico-jur�dica “a inclus�o das v�timas de desigualdade �tnico-racial, a valoriza��o da igualdade �tnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira” (art. 3º).
J� no que se referente a intoler�ncia religiosa, o referido Estatuto ( Lei 12.288) prev� que:
Art. 26. O poder p�blico adotar� as medidas necess�rias para o combate � intoler�ncia com as religi�es de matrizes africanas e � discrimina��o de seus seguidores, especialmente com o objetivo de:
I - coibir a utiliza��o dos meios de comunica��o social para a difus�o de proposi��es, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao �dio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas;
II - Inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor art�stico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e s�tios arqueol�gicos vinculados �s religi�es de matrizes africanas;
III - assegurar a participa��o proporcional de representantes das religi�es de matrizes africanas, ao lado da representa��o das demais religi�es, em comiss�es, conselhos, �rg�os e outras inst�ncias de delibera��o vinculadas ao poder p�blico.
Percebe-se que a Constitui��o e as legisla��es infraconstitucionais v�m se esfor�ando para promover o combate da intoler�ncia religiosa, embora saibamos que tais medidas ainda n�o asseguram a liberdade aos praticantes das religi�es de Matriz Africana, pois seus adeptos vivenciam diariamente a intoler�ncia e viol�ncia.
E � justamente isso que torna essencial a necessidade de compreens�o da forma��o desse povo. Povo que sangrou, n�o apenas pelo trabalho escravo ou pelos a�oites, mas principalmente pelo descaso e displic�ncia de suas tradi��es religiosas e devo��es.
A avers�o est� enraizada em nossa cultura desde o in�cio. A escravid�o � o ber�o do filho feio que cresceu, virou um monstro, denominado racismo, que vem permeando sorrateiramente o cora��o das pessoas e instalando o �dio por ra�a, cor da pele, etnia e religi�o.
A intoler�ncia religiosa � alimentada tanto pelo racismo, quanto pela falta de conhecimento da popula��o acerca das pr�ticas medi�nicas e an�micas desenvolvidas pelas religi�es de Matriz Africana.
Nessa perspectiva, e coadunando com a Carta Magna, a legisla��o infraconstitucional estabelece a responsabiliza��o pelos atos de xenofobia por meio da Lei de nº. Lei 7716/89, que � exatamente essa intoler�ncia ligada ao preconceito de ra�a, cor, etnia, religi�o ou proced�ncia nacional. Traduzindo, s�o os crimes de racismo.
A intoler�ncia religiosa
Com efeito, � imposs�vel discutir a quest�o da intoler�ncia religiosa sem mencionar os crimes de racismo, vez que este est� intimamente ligado � avers�o religiosa aos cultos de matriz africana. A cor da pele foi e � motivo para distin��o, as vezes de forma velada, outras de maneira expl�cita.
S�o constantes as not�cias de destrui��o de templos e objetos sagrados de centros e terreiros como se fossem a representa��o do mal. Nesse sentido, al�m da aplica��o dos crimes envolvendo a xenofobia e a injuria racial, temos ainda os crimes contra o sentimento religioso, previsto no art. 208, do C�digo Penal.
Mas, por que a cor da pele importa tanto? Ou melhor, por que a cor da pele preta afronta tanto? Vale destacar que o C�digo Penal, por sua vez, sofreu altera��o em seu texto para em seu artigo 140, §3º, coibir a injuria racial.
Importante elucidar, apenas para fim de curiosidade, que embora a injuria racial e a lei de xenofobia sejam instrumentos de repres�lia contra as atitudes racistas, elas possuem conota��es diferentes. Enquanto a inj�ria racial consiste em ofender a honra de algu�m valendo-se de elementos referentes � ra�a, cor, etnia, religi�o ou origem, o crime de racismo ou xenofobia atinge uma coletividade indeterminada de indiv�duos, discriminando toda a integralidade de uma ra�a. Desta forma, ao contr�rio da inj�ria racial, o crime de racismo � inafian��vel e imprescrit�vel, conforme determina o artigo 5º da Constitui��o Federal.
Extirpar a intoler�ncia religiosa no Brasil e no mundo � uma tarefa muito dif�cil, entretanto � preciso manter o di�logo inter-religioso na sociedade como um todo, uma vez que os principais sentimentos que movem essa situa��o � o medo, justificado pela ignor�ncia. N�o conhecer as diversas tradi��es religiosas � uma das causas geradoras de revolta com rela��o �s cren�as diferenciadas.
Contudo, � com tristeza no cora��o que essa autora afirma que esses instrumentos legais s�o insuficientes para coibir as pr�ticas racistas e de intoler�ncia religiosa. As penas aplicadas a esses crimes s�o brandas, cumpridas em regime aberto, em uma eventual condena��o.
A verdade � que o racismo est� ligado a uma quest�o cultural, cravado em nossa hist�ria. E como cantava Elza Soares: “A carne mais barata do mercado � a carne negra”.
O Brasil � um pa�s de diversidade, de m�ltiplas culturas, ra�as e etnias. Essa miscigena��o tamb�m se aplica as denomina��es religiosas aqui existentes, imperando o sincretismo. Assim, o Brasil deveria ser o primeiro pa�s do mundo a sustentar atitudes antirracistas, fazendo valer o pre�mbulo de nossa Lei Maior, a Constitui��o: “Todos s�o iguais perante a lei”. � inconceb�vel a necessidade de leis infraconstitucionais para fazer valer algo que deveria ser t�o natural.
Tamara Santos � advogada especialista em Direito Penal entre outros
