
A ideia de o jogo do bicho ser uma atividade ilegal nunca desceu bem � goela. Tenho que admitir: sou filho de uma contraventora. Minha m�e era apostadora ass�dua do jogo, que poderia ser transformado em patrim�nio imaterial do Brasil. O higienismo pequeno-burgu�s pode afirmar um monte de coisas sobre essa pr�tica, mas � ineg�vel que ela � capaz de dar alegria �s camadas populares e, de quebra, ainda opera uma pequena distribui��o de renda.
Aprendi com minha m�e o gosto pela coisa. Com ela decifrei sonhos, talvez por isso meu gosto por Freud e a psican�lise. Em alguns dias, discut�amos a viagem on�rica dela, na maioria das vezes ela perguntava sobre minhas imagens noturnas. O movimento interpretativo era digno de um Xam�, ligando fatos, pessoas e palavras, sempre sintetizada na figura de um animal. Sonhar com garrafa dava vaca, com o pai era o urso e quando sonh�vamos com cobra a� era jogar no bicho mesmo e pronto. Me lembro desses e mais alguns. Depois, era escolher a distribui��o do dinheiro com o lugar que o bicho poderia aparecer no sorteio. Na cabe�a, do primeiro ao quinto ou milhar.
A borra de caf� tamb�m era infal�vel. Pior do que teste de psicologia, minha m�e conseguia ver cada coisa naquelas figuras indecifr�veis que eu simplesmente me rendia ao mundo de imagina��o, tentando enxergar alguma coisa ali. Pena que enxergava super-her�is, o escudo do meu time de futebol e, quando muito, algum parente pr�ximo. Talvez minha intelig�ncia imaginativa fosse muito reduzida, apontando uma certa tend�ncia ao realismo absurdo, mesmo ainda n�o sendo leitor de Nelson Rodrigues.
Ao lado desse retrato simb�lico do Brasil, para completar a dupla nacional, como arroz e feij�o, queijo e goiabada, caf� e cigarro, torremos e cacha�a, juntava-se ao jogo do bicho o r�dio de pilha, que sempre ficava ligado em cima da mesa da cozinha, esperando a hora para coletar o resultado. Boa expectativa para verificar a numera��o. Alegria com alguns raros acertos e muitas an�lises a respeito das falhas interpretativas e daquilo que poder�amos ter jogado. No entanto, sempre dormia feliz, na certeza de que algu�m estaria ali, pela manh�, � espera de meus sonhos.
Sociologicamente, j� na vida adulta, sei que o jogo do bicho tem um efeito que extrapola minhas experi�ncias infantis: � agregador, demarcando uma identidade sociocultural, contribuindo na gera��o de empregos e a afirmando a brasilidade. J� tentou explicar para um estrangeiro nossa jogatina? Os cassinos at� tentam, mas ningu�m chega aos p�s de uma das maiores loterias ilegais do mundo.
O Bicho, bem antes das bitcoins - e voc� a� acreditando ser o mestre Jedi Day Trader - j� operava na l�gica do lucro vol�til sem o controle do Estado, permeado pela confian�a constru�da entre os apostadores e a banca, que sempre se responsabilizou pelas apostas. Tendo como refer�ncia apenas minha mem�ria infantil, concluo que, diferentemente do mercado especulativo, o jogo do bicho sempre cumpriu com suas promessas, pois nunca vi bicheiro dando calote em nenhum vencedor. Pagavam em dia, de forma justa, e ainda patrocinavam o campeonato de futebol amador l� no bairro.
Sinceramente, n�o consigo entender por que as casas de apostas online, que n�o geram nenhum emprego para as camadas populares, n�o possuem v�nculo identit�rio com o Brasil, transferem capital para o exterior e ainda interferem nos resultados das partidas do futebol ainda continuem funcionando na legalidade, mas o Jogo do Bicho continue sendo visto como contraven��o.
E ainda tem um fator �tico preponderante: em toda lojinha de bairro, somente os adultos podiam jogar. Confesso que tentei muitas vezes, mas nunca fui autorizado. S� pude experimentar a gra�a do neg�cio com 18 anos. Ap�s a primeira cerveja veio, tamb�m, a aposta no primeiro terno.
Diferentemente das moedinhas juntadas com troco de p�o, hoje vemos jovens viciados em gastar o dinheiro virtual dos pais, com acesso ilimitado aos aplicativos e sites de apostas, atrav�s dos dispositivos celulares. Est�o caminhando como futuros clientes para uma demanda de mercado: acompanhamento psicol�gico para dependentes em apostas.
Por toda essa hist�ria, j� que as mais variadas bandeiras de lutas est�o sendo erguidas nesse novo s�culo, tamb�m vou construir a minha: Jogo do Bicho, legalize j�!