
Sabemos que a internet � uma das maiores consumidoras de vida das �ltimas d�cadas. Acho que, at� agora, nenhum soci�logo pesquisou a respeito do tempo que se esvai nessa v� ilus�o de navegar por imagens e hiperlinks, direcionados � rede algor�tmica feita para pegar peixe pequeno que nem a gente. No entanto, mesmo nessa terra-sem-lei do mundo virtual, ainda podemos encontrar algo edificante, como as entrevistas da Dercy Gon�alves.
Imposs�vel n�o imaginar como o mundo seria melhor se os v�deos da Dercy fossem indicados nos consult�rios m�dicos e nos cursos de �tica. Sa�da terap�utica para praticamente todos os males contempor�neos, sua vis�o de mundo, essencialmente nietzschiana, possui um alcance de dar inveja a qualquer palestra filos�fica.
Ao contr�rio desse moralismo rasteiro, sua �tica � capaz de arrancar risos como ningu�m, pois anuncia o viver de verdade, sem a necessidade de teorizar a respeito da exist�ncia como fazem aqueles e aquelas que j� perderam o gosto pela vida. Ela n�o recua diante da presen�a exuberante do imponder�vel, muito menos foge na imin�ncia da dor, mas enfrenta, empunhando palavr�es como sinais vitais, a hipocrisia dessa gente que insiste em dividir o mundo entre limpos e sujos, santos e pecadores, esquerda e direita e tantos outros manique�smos que desconsideram a multiplicidade das rela��es humanas.
No meio disso tudo, o �nico problema � que tenho que esperar meus filhos irem dormir para poder assistir a esse or�culo de Delfos, deliciando-me diante de cada frase, organicamente encaixada em cada express�o.

Um palavr�o bem encaixado � pura pot�ncia vital, n�o acha? Uma capacidade sonora que sintetiza a resposta en�rgica diante dos osbst�culos do mundo. Por isso que, mesmo que na l�pide, vou deixar um grande ensinamento aos meus: n�o confie naqueles que n�o falam nenhum tipo de palavr�o ao longo do dia, provavelmente est�o descontando a dureza de existir com formas bem mais perversas de insulto.
Chego a acreditar que s� irei confiar na Ind�stria 5.0, na nanotecnologia, no Green Peace, na Gera��o Z e na revolu��o tecnocient�fica, se eles conseguirem trazer a Dercy de volta. Do contr�rio, nada feito. S� ela seria capaz de nos livrar desse mundo insosso, onde as quadras de futebol viraram igreja, os botecos p�s-expediente cederam lugar �s academias e as pessoas come�aram a achar uma gra�a danada em conversar com rob�s.
O fato � que viver em um mundo limpinho, higienizado e eficiente ser� cada vez mais insuport�vel. Envolto em aplicativos capazes de medir o desempenho de cada um de n�s, do ber�o � sepultura, cercados por podcasts e v�deos que tentam explicar a rela��o entre �gua e longevidade, a origem do buraco negro e at� como enriquecer em uma semana sem sair de casa, estamos nos esquecendo que � justamente a condi��o de err�ncia, de incerteza, que nos faz seres �nicos, evitando qualquer verdade que n�o chegue acompanhada de uma boa risada.
Talvez Dercy tenha compreendido, de forma verdadeira, a moral nietzschiana e suas nuances, demonstrando que o ser humano s� chega � sua maturidade quando encara a vida com a mesma seriedade que uma crian�a encara uma brincadeira.