
A beleza salvar� o mundo, disse Dostoievski pela voz do Idiota. E talvez seja isso mesmo que falta entre n�s. Tudo bem que o passar dos anos � mais cruel para alguns e benevolente para outros. Faz parte. Tudo � aleat�rio e indeterminado, fruto da loteria gen�tica. A �nica coisa certa nessa vida � a fome que o diabo nutre pelos vaidosos. Esses sim, sempre escolhidos como prato principal. Como disse Balzac, “deve-se se deixar a vaidade aos que n�o t�m outra coisa para exibir”.
Aquele era um domingo de sol, e eu devia me arrastar at� a urna, cumprindo meu nobre dever patri�tico de escolher o pr�ximo presidente para a associa��o de bairro. Meu filho percebia em meus olhos a minha prefer�ncia por jogar futebol. Tentou me consolar:
- Papai, ao menos nessa elei��o voc� pode tomar sua cervejinha depois. Estamos perto de casa, n�o precisa dirigir.
O menino me conhece mesmo, sabedor dos costumes que passamos de gera��o em gera��o: guardar o domingo para o sagrado of�cio do �cio et�lico.
No meio de todo esse gesto de cidadania entediante, captado pela fundamental desimport�ncia que pairava naquele lugar, fui tomado por uma cena que salvou aquele dia macabro, digna de um texto do bom e velho Nelson Rodrigues: a chegada de uma mulher, no auge de sua maturidade tardia, tentando esconder que a velhice faz mais rugas no esp�rito do que na cara.
Sua postura denunciava a heran�a de uma nobreza decadente, dessas que ainda vivem do sobrenome para conseguir algum empr�stimo consignado. No instante de sua chegada, eu, humilde interessado pelas coisas da alma humana, fui capaz de perceber a ang�stia existencial que perseguia aquela senhora, ostentadora de um indefect�vel Botox luminoso.
Ela, mais soberba que um lulu-da-pomer�nia criado em apartamento duplex da zona sul, foi desinstalada por um dilema que, com certeza, passaria a acompanh�-la pelo resto da vida: de um lado, o atendimento normal; na outra extremidade, uma placa (que algum pentelho, desses que s� podem estar a trabalho do pr�prio demo, resolveu colocar) com o s�mbolo: 60+.
Ouvi que ela chegou a comentar com seu acompanhante:
- Que saco! Tinha que ter colocado “fila preferencial”.
Mais que justo. Al�m de ser uma quest�o legal, isso ainda massagearia o ego dessa classe que gosta de ser VIP em tudo, inclusive para pagar contas atrasadas. Todo esse problema poderia ter sido evitado se o trabalhador imprudente (ou apenas sacana mesmo) n�o fizesse refer�ncia expl�cita �s primaveras contadas.
Mas nada mais adiantava agora. A escolha existencial e a ang�stia sartreana j� est� materializada ali. De um lado, o direito conquistado. Do outro, a confiss�o para o mundo (inclusive a pr�pria vizinhan�a) de que n�o era mais uma mocinha aprendiz de piano.
Confesso que cheguei a ver, pendurados junto aos c�lios posti�os, o anjinho e o capetinha em pleno ato de aconselhamento � senhora botocada. Plat�o tinha raz�o. Naqueles dois, percebi que devemos ter cuidado com as sombras da ilus�o, pois s� nos libertamos de verdade quando tomamos consci�ncia de que o corpo nada mais � do que a pris�o da alma.