
Quanto mais um intelectual se aproxima da milit�ncia, maior � seu distanciamento de um caminho de sabedoria. L�gico que os assuntos pol�ticos interessam �s pessoas que se dedicam �s coisas humanas. No entanto, o engajamento partid�rio � capaz de emba�ar a vis�o daqueles e daquelas que se dedicam �s an�lises da realidade.
Basta lembrar a figura de S�crates, condenado a tomar uma dose de cicuta pelo status quo ateniense. Desde ent�o, a pol�tica sempre foi inimiga dos pensadores. Pol�ticos profissionais, quando se aproximam da filosofia, operam na instrumentaliza��o, na subservi�ncia do pensar a favor de causas estranhas � liberdade. Essa op��o reduz a constru��o filos�fica, pr�tica de autonomia individual, �s vontades hist�ricas de grupos especializados. Quando isso acontece, vivemos um empobrecimento do ato reflexivo.
O exemplo mais recente � o suposto conceito “lugar de fala”. Quase imposs�vel negar que determinadas pessoas, vivendo determinadas experi�ncias hist�ricas, ligadas �s identidades, g�neros ou classe social, se manifestam com maior propriedade em rela��o a assuntos que est�o na pauta do dia. No entanto, a tentativa de reduzir o debate ao posicionamento desses sujeitos hist�ricos � uma pr�tica de cerceamento.Existe aqui uma diferen�a que sempre passa despercebida, e nunca sabemos se � por inten��o ou descuido intelectual: h� um salto abissal entre falar “no lugar de algu�m” e “falar sobre um tema sens�vel a algu�m”.
Alguns pensadores digitais com tend�ncia populista tentam refor�ar pr�ticas de cancelamento, nome clean para a velha censura. � claro que essa a��o sempre nos chega com um “verniz de bondade”, focados na boa inten��o de deslocar o pensamento hegem�nico, ressignificando a participa��o das identidades no debate p�blico.
O interessante � que esse tipo de pensamento vigora, basicamente, entre a classe m�dia escolarizada, pertencente � popula��o que recebe mais de dez sal�rios-m�nimos de renda per capta e luta por espa�os e bolsas em grupos de pesquisa nas grandes universidades brasileiras. Este n�o parece ser um tema relevante nos diversos pontos de �nibus espalhados na grande metr�pole.
Talvez por fugirem da aula de l�gica, adeptos desse conceito desconsideram a sustenta��o falaciosa desse argumento. Desde a antiguidade cl�ssica, quando ganhamos de presente a l�gica formal, sabemos que os argumentos ad hominen s�o fal�cias especializadas em desqualificar “quem fala” com o objetivo de n�o discutir o teor, o conte�do do que se fala. Em certa medida, � a famosa sabedoria popular: desmerecer o carteiro para n�o receber a correspond�ncia.
O lugar de fala parte da seguinte premissa: s� � poss�vel falar de um assunto aqueles ou aquelas que, de alguma forma, est�o em posi��o desfavor�vel a esse tema. Levado �s �ltimas consequ�ncias: s� pode criticar a tortura quem j� foi torturado; s� � permitido falar sobre endividamento da popula��o quem est� endividado; s� � poss�vel criticar a opress�o quem j� foi (ou �) oprimido. Olha o cheirinho de fal�cia no ar...
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A� � que a coruja da sabedoria al�a voos questionadores sobre esse tema: ser� que a posi��o social de algu�m o garante, automaticamente, como leg�timo debatedor de determinado assunto? As condi��es hist�rico-sociais fazem de alguma pessoa, espontaneamente, portadora de argumentos verdadeiros e v�lidos?
Assumir essa postura diante do debate p�blico nada mais � que utilizar as armas da exclus�o, pr�tica abomin�vel que tentamos extirpar das rela��es sociais. Al�m disso, n�o � tarefa simples decidir, previamente, quais indiv�duos dever�o participar de cada debate. Qual inst�ncia social ser� respons�vel por essa defini��o? A quem (ou a qual grupo) ser� destinada a tarefa de delimitar os participantes? O Estado? Os movimentos sociais? Os departamentos de pesquisa das Universidades? As p�ginas das redes sociais?
� preciso ressaltar que n�o se trata de alijar a possibilidade de participa��o das camadas menos favorecidas e das minorias na constru��o do pensamento coletivo. No entanto, assumir a premissa do “lugar de fala” � caminhar, de forma contradit�ria, � constru��o de uma sociedade livre e esclarecida, onde todos podem (e devem) participar do debate p�blico, fundamento imprescind�vel de uma filosofia aut�noma e livre.