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Estado de Minas OPINI�O

D�i ser mulher no Brasil, onde um m�dico estupra uma mulher durante o parto

Acreditamos que nossos corpos n�o nos pertencem e nos tornamos c�mplices de crimes de viola��o extrema, como um estupro cometido no 'Hospital da Mulher'


11/07/2022 16:16

mostro de rede social que mostra o médico anestesista Giovanni Quintella
'N�o h� est�mago que aguente a informa��o de que o m�dico estuprou a mulher DURANTE o procedimento' (foto: Reprodu��o/Redes sociais)

� imposs�vel ser mulher/ter �tero e estar bem no Brasil hoje. Eu estou nauseada. E n�o, n�o � figura de linguagem. Venho escrevendo h� pouco mais de um ano sobre a desumaniza��o dos nossos corpos, mas nem a pior fantasia de horror seria capaz de dar conta de uma cena t�o desesperadora: uma mulher na sala de parto sendo estuprada pelo m�dico anestesista. 

Se o inferno existe, ele � ser mulher no Brasil de 2022. N�o existe pesadelo e/ou imagina��o que d� conta da realidade que vivemos. N�o existe seguran�a em espa�o algum, a gente j� sabe. Mas estupro na sala de parto praticado por um m�dico? Eu, t�o acostumada a ler e escrever sobre o ins�lito, n�o seria capaz de pensar em algo t�o ins�lito. Nem na hora de parir a mulher tem paz. 

Giovanni Quintella Bezerra, de 32 anos, foi preso em flagrante no Hospital da Mulher (a ironia do nome) em S�o Jo�o do Meriti, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. De acordo com imagens feitas por funcion�rias da unidade, ele teria colocado o p�nis na boca da paciente enquanto participava do procedimento e limpado depois. Ela estava sedada no momento.

"Se o inferno existe, ele � ser mulher no Brasil de 2022. N�o existe pesadelo e/ou imagina��o que d� conta da realidade que vivemos"



A indigna��o � tanta que sequer nos perguntamos: como est� essa mulher? Quanto tempo vai levar para que ela se recupere desse trauma ao qual foi submetida? Quem vai cuidar da sa�de mental dela?

N�s, mulheres e pessoas com �tero, n�o nos sentimos seguras em espa�o algum. Seja na escola, dentro de casa, na igreja, na balada, nas ruas, no trabalho e agora, em ambientes m�dicos. Uma mulher em situa��o de dar � luz deve ser acolhida e bem atendida.

J� somamos in�meros casos de viol�ncia obst�trica no Brasil. Dados da Fiocruz divulgados em 2021 mostram que 45% das mulheres j� sofreram viol�ncia obst�trica na rede p�blica e 30% na rede particular. 

Mas n�o para por a�. Em 2019, o The Intercept fez um levantamento in�dito que mostrava 1.734 casos de viol�ncia sexual comeditos em institui��es de sa�de de nove estados brasileiros. O t�tulo n�o poderia ser mais estarrecedor: Licen�a para estuprar. 
No entanto, jamais imaginamos assistir isso - embora eu recomenda, honestamente, que n�o veja o v�deo do esturpo que circula nas redes sociais e sites noticiosos, � horr�vel - durante um parto. Momento em que a mulher deve ser bem tratada e n�o violentada. 

O que mais assusta �: o crime foi cometido por um m�dico. Isso mesmo. O t�pico cidad�o de bem. E ele fez isso NA FRENTE DA EQUIPE. Sim. Com alguns movimentos que tentam ‘disfar�ar’ o crime, o anestesista o comete diante de uma equipe na sala de parto. 

N�o h� est�mago que aguente a informa��o de que o m�dico estuprou a mulher DURANTE o procedimento. Ela estava com a barriga aberta. Enquanto outros dois profissionais mexiam no �tero e ela trazia uma vida ao mundo, ele a estuprou. 

N�o existe rivotril, vonau, frontal, constela��o familiar, reiki, themascal, ayahuasca, psican�lise que d� conta de tamanha viol�ncia.  

A pergunta que fica �: onde mulheres podem existir em paz? 

Vi, agora pouco, no Twitter, um pedido para que psic�logos e psicanalistas que s�o presentes nas redes evitem dar o famoso diagn�stico do m�dico, j� que al�m de fora da �tica profissional, incorre-se o risco de patologizar um homem que cometeu um ato extremo de maldade contra uma mulher vulnerabilizada. 

Leia tamb�m: A escrita da monstruosidade

� importante dizer que n�o � um caso isolado de monstruosidade. N�o vai demorar a surgir um laudo alegando quest�es de sa�de mental. O m�dico n�o � um monstro. N�o � um louco. N�o � um ponto fora da curva. Ele � um m�dico. De jaleco. Que estudou para fazer o que faz. Ele � um homem comum. Ele poderia ser seu marido, seu amigo, seu colega de trabalho. Ele � um homem que, como uma infinidade de outros, estupram mulheres. 

"O m�dico n�o � um monstro. N�o � um louco. N�o � um ponto fora da curva. Ele � um m�dico. De jaleco"



No Brasil, de acordo com dados do F�rum Brasileiro de Viol�ncia P�blica, uma mulher � estuprada a cada 10 minutos. O tempo que voc� gasta para ler este texto � o suficiente para que uma nova v�tima da viol�ncia de g�nero seja feita. E nem todas entram para a estat�stica. S� as que conseguem denunciar e provar o crime. Com isso, sabemos que, infelizmente, este n�mero � bem maior. 

E � comum. � insano pensar que um m�dico se sente confort�vel o suficiente para, durante 10 minutos, estuprar uma mulher em trabalho de parto num hospital - no local de trabalho dele - e acreditar na impunidade. E vale repetir: n�o se trata de algu�m doente. Se trata de um homem comum. Poderia ser meu irm�o. Poderia ser algu�m com quem j� dei match num app de relacionamento. Poderia ser meu amigo. 

� este homem comum, que nas redes sociais avisou “Voc�s ainda v�o ouvir falar de mim” e que jurava adorar o pr�prio trabalho. Este homem comum usava as pr�prias redes sociais para mostrar a rotina nos plant�es, expor pacientes sedadas e crian�as rec�m-nascidas. No �ltimo story que fez antes de ser preso, postou uma foto da pr�pria meia decorada com camar�es e escreveu: “� aquele ditado: camar�o que dorme, rende mais no plant�o”. 

Estamos falando deste homem comum que, enquanto a paciente em trabalho de parte estava deitada na maca, insconsciente, abriu o z�per da cal�a, puxou o p�nis pra fora e introduziu na boca da mulher. ENQUANTO A MULHER TINHA UM BEB�. Ela foi estuprada inconsciente por um m�dico enquanto tinha um beb�. 

Por 10 minutos a viol�ncia foi praticada. E, enquanto a praticava, o m�dico tentou se movimentar pouco, para que os colegas, separados por uma divis�ria de pano, n�o percebessem. A perversidade segue: ao terminar, ele usou um len�o de papel para limpar a boca da mulher gr�vida, im�vel na maca.

O hospital disse que vai investigar o caso. A pol�cia disse que vai apurar se h� poss�veis outras v�timas. Agora, c� pra n�s: quem � que acredita que um homem, do nada, num dia, resolve fazer isso? E o faz com tanta tranquilidade, tanta seguran�a, se nunca fez antes? � evidente que pensemos que n�o se trata de um caso isolado e/ou que o m�dico entrou na sala e resolveu estuprar a mulher. 

Ainda n�o vi, mas pode ser que nas pr�ximas horas esbarremos com defesas do m�dico e culpabiliza��o da mulher. H� quem v� perguntar: mas que roupa ela usava na hora do parto? A fim de tentar justificar a viol�ncia absurda. H� ainda quem v� tentar relativizar o v�deo. Dizer que � montagem. H� quem v� usar o precedente do caso da Mari Ferrer, que mesmo com imagens, ela n�o conseguiu ter seu direito validado pela Justi�a brasileira. 

Outro v�deo que estarrece � o da pris�o em flagrante do m�dico. No mesmo pa�s em que policiais matam pessoas pretas nas periferias apenas porque elas existem, neste, a delegada calmamente explica todos os direitos do m�dico e o trata, basicamente, como se ele fosse a v�tima. J� estive numa delegacia para comunicar um crime de abuso e n�o fui, nem de longe, t�o bem tratada quanto esse criminoso, que, repito - foi preso em flagrante. 

� desesperador sabermos que vivemos sob o risco de sermos estupradas. N�o importa onde. N�o importa a roupa. N�o importa em que condi��es. E, caso formos estupradas, v�o tentar nos desacreditar. E, se engravidarmos, ap�s o estupro, v�o tentar impedir o aborto legal de todas as formas (falei sobre isso aqui) e se tivermos o beber, podemos ser estupradas durante o parto. E se algu�m n�o for corajoso o suficiente para peitar o criminoso e gravar, pode ser que nunca saibamos da viol�ncia e/ou que nunca acreditem na gente. 

E n�o me venham com a reprodu��o falida do argumento da castra��o qu�mica. Homens n�o usam apenas o p�nis pra estuprar e em 2022, j� dev�amos saber disso. Estupros s�o sobre poder, n�o sobre libido e/ou p�nis. N�o ser capaz de ter uma ere��o ou de sentir desejo n�o vai diminuir, em nada, o n�mero de estupros. Tal projeto bolsonarista nada mais � do que tapar o sol com a peneira. 

Ser mulher no Brasil � um inferno. Ter um corpo com �tero � ver-se ardendo cotidianamente na cumplicidade dos poderes todos - dos homens todos - do sistema de sa�de todo - das bancadas evang�licas todas - de jornalistas todos. De um mundo inteiro que banaliza den�ncias e viol�ncias, de gente que questiona como era a roupa que ela vestia, de gente que critica uma mulher com a bunda de fora rebolando feliz num baile funk, mas fecha os olhos para uma brutalidade desse ou passa pano pro cara, com a m�xima “se ele for culpado, que seja julgado e condenado”, eximindo-se ent�o do julgamento outrora praticado contra a v�tima. 

H� ainda uma parcela que vai dizer: “mas tem que ver o que ela fez pra ele”. Ou “acredito que ela tenha provocado isso”. Mesmo que estejamos falando de uma mulher, im�vel, sedada, sendo submetida a uma ces�rea, num hospital que chama-se “Hospital da Mulher”.

Vale citar aqui a coragem que as colegas do m�dico tiveram em filmar e denunciar. Desejo, de cora��o, que mais pessoas tenham esse �mpeto ao se depararem com viol�ncias t�o desumanizantes quanto. Importante dizer que, para pol�cia, o grupo que fez o v�deo informou que o m�dico j� havia participado de duas outras cirurgias e apresentado comportamento suspeito.

Precisamos nos questionar quais os caminhos exatos que nos trouxeram at� aqui e precisamos saber que, em muitos momentos, fomos c�mplices dele. Nos calamos para as viol�ncias, relativizamos. Fingimos que n�o vimos. E concordamos com a ideia de que nossos corpos n�o nos pertecem. 

Eu poderia dizer que espero que ele responda pelo crime, que prev�, segundo o C�digo Penal Brasileiro, pena de 8 a 15 anos de pris�o, mas n�o sei se isso � suficiente perto do horror do ato que ele cometeu e do medo que se instala nos nossos corpos apenas por termos �teros. N�o sei o que dizer e/ou esperar. � dif�cil corpo para tanta revolta. 

E, por acreditar nisso: nosso corpo n�o � nosso � que uma s�rie de viol�ncias contra nossas exist�ncias s�o cometidas sem que possamos sequer revidar. Sem que estejamos acordadas e l�cidas para ver. 

Hoje seria um excelente conto de terror. Um excelente conto dist�pico. Mas � a realidade: ser mulher no Brasil d�i demais.

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