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Estado de Minas OBJETIFICA��O DA MULHER GORDA

'Eu vou te arrega�ar: quando a �nica op��o de afeto � viol�ncia'

A extirpa��o da subjetividade nos corpos das mulheres gordas, transformando-as em bestas que, eventualmente, transam


10/08/2022 06:00 - atualizado 10/08/2022 11:06

Jéssica Balbino deitada usando top e calcinha preta e Sá Gabriel
J�ssica Balbino e S� Gabriel: ' Mas, que tal ser tratada como uma pessoa? ' (foto: Lu �lves/Divulga��o)

 
“Oi. Que dia vamos fuder essa semana?”. Essa foi a mensagem que recebi de um ‘contatinho’ alguns dias ap�s uma transa. Longe de mim ser moralista e tudo mais, mas, quando foi que a gente entendeu que tudo bem tratar as pessoas - sobretudo as que dividimos momentos �ntimos - desta forma? 

N�o, eu n�o quero um pedido de namoro. Longe de mim, de novo, fazer qualquer tipo de cobran�a. Mas, chegando aos 40 anos, eu n�o s� quero, como preciso ser tratada como um ser humano e n�o um objetal. 

Dias depois, a mesma pessoa me mandou, numa segunda-feira , �s 22h26: “Oi. T� sozinha agora? Quer mamar? Agora”. E se espantou por ser ignorada. Fiquei, por muito tempo olhando para a tela do celular e pensando no qu�o louca eu precisaria estar para ‘mamar’ naquele momento. 

Imagina que eu tiraria meu pijama, sairia da frente do computador onde fazia meu home office nos muitos of�cios, para sair de casa e pagar um boquete pra algu�m. Algu�m que investe nada em mim, exceto mensagens espor�dicas muito diretas sobre ‘fuder’ e ‘mamar’. 

Novamente, reitero: n�o espero muita coisa. Mas, que tal ser tratada como uma pessoa? Que tal ser enxergada como algu�m que est� ali e quer mais do que ouvir sobre as frustra��es desse cara que at� transa bem, mas � mediano pra menos: emprego meia boca e sem perspectiva de futuro, sempre duro e sem condi��es de pagar sequer o motel. Sempre ouvindo as m�sicas que ningu�m conhece do Legi�o Urbana, porque ‘s�o as melhores’ e tendo que aguentar os planos frustrados de algu�m que tem quase 40 anos mas ainda t� preso nos 17. 

Logo, sei que n�o d� pra esperar muito. Mas poxa, ser� que n�o d� pra pessoa perguntar como estou e/ou imaginar que, pra eu ter desejo de abandonar minhas pantufas � preciso mais do que uma mensagem me oferecendo uma mamada. Seria preciso despertar meu desejo e esse, puramente sexual, s� funciona no dia f�rtil. E a�, tem que casar o calend�rio do gato com o meu. 

Digo isso, do meu lugar de pessoa, completa, complexa e lotada de subjetividades, mas tamb�m do meu lugar de mulher gorda. Sim. Na �ltima semana escrevi sobre “quem paga a conta de quem nunca � convidada para jantar?” e trouxe essas quest�es sobre sermos, quase sempre, objetos. 

Da�, inclusive, vem esta constata��o. Quando a mulher � magra, normalmente, o que ela recebe � “vamos sair para jantar?”, quando � gorda, o que ela recebe, via de regra, �: “eu vou te arrega�ar”. 

Isso � t�o constante, sintom�tico e naturalizado. Sim, � normalizado socialmente tratar mulheres gordas apenas como um lugar para descarregar a tens�o sexual. Um peda�o de carne que ‘merece ser arrega�ado’. Quase sempre, a express�o vem acompanhada de ‘eu vou te dar o que voc� merece’. E esse ‘merecimento’ � sempre uma rela��o sadomasoquista, cuja regra principal � bestializar a pessoa que est� ali pra al�m do que um setting de BDSM jamais sonhou e transform�-la, sexual e subjetivamente em um nada. Em apenas ‘aquela que merece ser arrega�ada’. Afinal, ela ousou desobedecer, n�?

Como ela pode teimar e existir gorda? Como ela pode, neste corpo imenso, despertar desejos sexuais t�o fortes que tornam-se imposs�veis de serem contidos, transformando-se numa fantasia punitiva. � preciso punir a mulher que ousou ser desejada, mesmo que o mundo diga que ela sequer pode existir. 

O ponto mais doloroso de todos

Curioso � que, no Twitter, comentei sobre esse tema. Uma pessoa respondeu dizendo que quando recebe um ‘vou te arrega�ar’ como mensagem, fica feliz. E a�, ela tocou num ponto extremamente doloroso. Muitas vezes, um sexo violento, seguido de pouco ou nenhum carinho ou cuidado, com mensagens como a que eu recebi e abro o texto reproduzindo, s�o tudo que mulheres como eu: gordas, v�o ter de possibilidade e caminho para ‘afeto’. 

Na maioria dos casos, uma transa violenta � a �nica chance que uma mulher cujo corpo n�o atende aos padr�es tem de gozar. Ou de experimentar sexo. Ou de estar com outro corpo que n�o seja o seu pr�prio. 

E n�o, n�o estou tirando isso da minha cabe�a. Cada vez que toco no assunto com amigas que tamb�m s�o gordas, recebo relatos t�o tristes - ou mais - que os meus. Nesta semana, conversando com a atriz M�nica Rodrigues, ela me disse que perdeu as contas de quantas vezes ouviu o ‘vou te arrega�ar’. E que nunca, nunca mesmo, recebeu convites para jantar ou flores. 

Isso s� confirma a bestializa��o com que nossos corpos s�o tratados. E vou al�m, recebi, via DM, a mensagem de uma amiga que me destro�ou. Ela me disse que, para experimentar sexo, contratou um garoto de programa. Foi a �nica chance que ela teve de ter contato �ntimo com algu�m. Sendo uma mulher preta e gorda, ela disse que nunca conseguiu namorar e que, sem paci�ncia ou jeito pra apps, investiu no sexo pago. 

E sim, saber disso me destro�ou. Mas, volto a dizer: longe de mim ser moralista. Eu acho que tudo bem uma mulher pagar pra ter sexo. E tudo bem contratar algu�m, etc. O que n�o est� tudo bem � isso ser compuls�rio. � esta ser a �nica op��o. O que n�o estpa nada bem � que uma mulher preta e gorda n�o consiga se relacionar afetivamente com quem quer que seja. 

Existe algo muito grave aqui. E � absurdamente doloroso falar sobre. Desde o texto do jantar, n�o paro de receber mensagens de pessoas, diferentes pessoas, me dizendo sobre como aquele relato as deixou triste. 

Agora, pensem voc�s: al�m de n�o receber flores e/ou ser chamada pra jantar, quando algu�m quer sair comigo, � pra me arrega�ar. 

E sabe, n�o � como se eu - ou minhas amigas que trago para este texto - n�o fosse uma pessoa interessante. N�o � como se n�o tiv�ssemos sobre o que dizer. Ou como se, no papinho coach social, ‘se a gente se esfor�asse mais, tivesse mais autoestima n�o lig�ssemos pro que os outros pensam’ esses afetos fossem chegar. 

Eu t� falando de solid�o. E � uma solid�o eterna. � um beco sem sa�da. Ou a gente se mutila pra deixar de ser quem somos e passamos a ser a �nica coisa que a sociedade tolera, ou a gente passa a viver a tristeza dos corpos rejeitados e/ou apenas bestializados. 

N�o, n�o estou falando de fetiche!

Muito se fala sobre o fetiche das pessoas gordas. Eu mesma j� escrevi sobre isso nesta coluna. E � claro que ele atravessa esse texto, afinal, estamos falando de desejos por corpos n�o padr�es e sexo na contemporaneidade. 

Por�m, penso que est� para al�m disso. No fetiche, pode existir um cuidado e aqui, estou falando apenas de uma rela��o cujo objetivo � ‘arrega�ar’ algu�m. � quase parecida com uma amea�a de briga na porta da escola e, por vezes, deixa d�vida se a pessoa quer realmente transar com voc� ou te bater at� voc� n�o aguentar mais. 

Minha pergunta �: de onde vem esse desejo pela puni��o das mulheres gordas?

E mais: por que a gente aceita isso?

Estou �s voltas comigo mesma h� algum tempo pensando: por que raios eu me meto em rela��es assim? E a resposta eu mesma j� dei ali em cima. 

Muitas vezes, essas ser�o as �nicas rela��es poss�veis. Essas ser�o as �nicas chances que uma mulher gorda ter� de transar com algu�m. 

E, sabendo - e se beneficiando disso - a sociedade segue refor�ando a gordofobia como estilo de vida. � t�o mais f�cil oprimir um grupo e gratificar outro, n�o � mesmo?

A gente aceita transar de luz apagada pra que o outro n�o veja nosso corpo. A gente aceitar ser a outra. A gente aceita convites para sermos arrega�adas e quase agradecemos por ele. A gente aceita transar sem camisinha - e nos expomos a ITS e HIV. A gente aceita qualquer migalha, porque a n�s, sempre foi negado tudo. 

Aos corpos em que tudo sempre foi negado, acredita-se que v�o topar qualquer coisa. Sexo a tr�s, sexo p�blico, sexo sem prote��o, sexo sem qualquer demonstra��o de afeto, sexo sem beijo na boca, sexo punitivo e s�. E acreditam que essa repeti��o ser� suficiente. E far�o exig�ncias: ‘n�o se depile, fa�a as unhas e pinte de vermelho, s� goze se eu deixar’. 

E diante do cen�rio, estamos, quase sempre, numa posi��o de submiss�o, dando margens para os abusos. Para ‘rela��es’ que n�o s�o rela��es, mas nos dispomos ao uso, na clara tentativa de nos tornamos, quem sabe, um objeto. Nos vemos, ent�o, for�adas a aceitar qualquer imposi��o: ‘s� saio com voc� se voc� arrumar uma amiga’, ou ‘s� vamos sair se voc� me deixar te amarrar’, ou ‘s� vamos sair pra voc� me chupar’, entre outras coisas. 

Ou aceitamos, ou ficamos sozinhas pra sempre. 

A retirada da nossa subjetividade, nos transformando em abjetos faz com que, diante de qualquer oferta que nos torne objeto, ainda que mero, aceitemos, afinal, � melhor sermos usadas e arrega�adas, do que seguirmos sendo invis�veis, ainda que imensas. 

Mas, ser� que � melhor mesmo?

E fa�o esse texto pra refletir em voz alta, no papel, que uso como div�: e se a gente disser n�o? E se a gente falar sobre? E se a gente mostrar pra sociedade que a gente sabe como esse mecanismo opressor � perverso? E se a gente disser que sabemos como funciona e que percebemos o que est� acontecendo? E se a gente come�ar a se relacionar entre a gente? E se criarmos novas formas de partilha de afeto que n�o a �nica conhecida e rom�ntica? E se a gente se recusar a ocupar o olhar de abjeto? 

J� escrevi aqui outras vezes neste tom, mas, vale pensar que ‘se eu n�o posso ser nada, posso ser tudo’. Se eu preciso fazer tantas concess�es aqui pra ter momentos de afeto, ser� que estamos mesmo falando de afeto? ou de abuso? O que eu fa�o mesmo � sexo ou � abrir m�o da minha subjetividade para atender ao desejo do outro?

Dito isso, ficamos refletindo e com o recado: a partir de agora, quer me foder? me beija! 

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